A água que falta "na grande Região Centro, com uma floresta totalmente desordenada"
Helena Freitas, professora catedrática da Universidade de Coimbra, alerta para um problema que vai fazer-se sentir cada vez mais no combate aos fogos, e que já esta terça-feira se notou: a falta de água.
Dezenas de incêndios mantinham-se ativos esta terça-feira à noite na Região Centro, onde quase todos os distritos continuam em Aviso Vermelho devido às temperaturas elevadas e risco máximo. Por esta altura é nesta zona que reside a maior preocupação para a Proteção Civil, bombeiros e populares, embora todo o país se mantenha em estado de contingência. De resto, este alerta obrigou à deslocalização do Festival Super Bock / Super Rock da zona do Meco (Sesimbra) para o Parque das Nações (Lisboa) e também, do parque de campismo, da Concentração Motard de Faro para uma zona considerada mais segura, com menos árvores - e por isso menos risco de incêndio.
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Já o Distrito de Leiria voltou a ser o mais fustigado pelas chamas, e desta vez foi até o próprio concelho, obrigando o município a fazer um alerta à população residente entre as localidades de Figueira e Mata dos Milagres, no sentido de se deslocarem para o Pavilhão dos Pousos (uma freguesia próxima da cidade) ou para o Estádio Municipal, porta 7. As autoridades acabaram por fechar ao trânsito a A1 e o IC2, numa extensão de vários km entre Leiria e Pombal, concelhos atingidos por vários focos de incêndio, obrigando à evacuação de aldeias e mobilização de muitos meios. Só que os fogos em localidades como Figueiras, Colmeias, Caranguejeira ou Regueira de Pontes eram apenas alguns dos muitos que requeriam meios, no dia mais quente de que há memória naquela região nos últimos anos. Os termómetros marcavam 43º, o vento soprava com bastante intensidade, e a partir do meio dia formou-se a "tempestade perfeita" para reacendimentos também em Alvaiázere, Ansião e Ourém. Ao final do dia cerca de 1400 bombeiros, apoiados por 426 meios terrestres e 20 meios aéreos combatiam as chamas, mas todos eram poucos. Afinal, eram premonitórias as palavras de António Nunes ao DN, no dia anterior. E uma das maiores dificuldades sentidas no terreno pelas corporações - que chegavam de todo o país - foi precisamente a falta de água, num ano que Portugal está em seca extrema.
"Vivemos uma situação dramática no que diz respeito à água. O nosso problema é crónico e muitíssimo complexo. Resolvê-lo é tremendamente difícil", disse ao DN Helena Freitas, professora catedrática, especialista na área da Biodiversidade e Ecologia no Departamento de Ciências da Vida da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.
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"É uma das questões estruturais que teimamos em não resolver. Empurramos com a barriga. A maioria das nossas bacias hidrográficas nascem em Espanha - estamos dependentes sempre de uma boa relação para termos caudais nos nossos rios. Continuamos a pensar que aumentando albufeiras resolvemos o problemas, como se isso significasse mais água. Não é verdade. Temos que aprender a geri-la. E isso significa desde logo corrigir uma coisa que fizemos há 10 anos, que foi centralizarmos a gestão das bacias hidrográficas", afirma. Segundo esta especialista, o problema é ainda mais vasto: "Nós hoje em dia nem sequer temos dados disponíveis sobre a quantidade e qualidade das água, até para os técnicos fazerem uma melhor gestão. Centralizámos na APA (Agência Portuguesa do Ambiente) esses serviços".
Helena Freitas nota ainda outra falha, que se prende com a falta de diálogo entre ministérios [da Agricultura e do Ambiente] no que diz respeito à água: "A Agricultura a grande consumidora da água - 70% dos recursos hídricos -, os maiores níveis de desperdício estão aí. E por isso temos que encontrar aqui uma racionalidade entre utilização da água e o tipo de produção que temos. Hoje temos já o setor agropecuário numa aflição ainda maior, por causa da guerra. Tipicamente, quando chegávamos ao verão e não tínhamos água disponível nas albufeiras, o que é que fazíamos? Importávamos forragens para alimentar os animais. Mas com a situação da guerra na Ucrânia, não é possível". Esse cenário leva-a a antever um outro, dantesco. "Se calhar vamos assistir a uma grande desgraça, que é ver os animais a morrerem nos prados".
Helena Freitas, que há muitos anos tem vindo a alertar para a necessidade de uma reorganização do território como forma de prevenir a questão dos fogos florestais - que está intrinsecamente ligada a esta problemática da água - sublinha ainda outro aspeto. "Não vamos continuar a trabalhar a jusante e pensar que a dessalinização é que vai resolver o problema. Isso poderá ser parte da solução. Mas a carga que nós temos sobre os ecossistemas é tal, que é provável que venha a surgir. Só que tem custos, e não é a solução a montante. Os nossos problemas estruturais estão-se a descobrir. Não é possível continuar a tapar o sol com a peneira. Isto é o grande elefante no meio da sala - nós não temos uma gestão efetiva do território, eliminámos os serviços de extensão na Agricultura, na Floresta, na Conservação da Natureza", conclui.
Uma floresta frágil, desordenada e pouco resiliente
"A floresta de uma forma geral está frágil, temos uma composição florestal muito desordenada, com um número crescente de espécies exóticas - com comportamentos muito diferentes daqueles que são os das nossas espécies nativas - não estão preparadas para responder de forma resiliente ao fogo", afirma Helena Freitas, ela que insiste tantas vezes, em diversos fóruns, na mesma tónica: "O que estamos a perder de forma progressiva é a nossa biodiversidade, a produtividade dos nossos ecossistemas florestais - porque também perdemos solo. Sempre que temos estes fogos recorrentes perdemos solo. Significa que a capacidade regenerativa é cada vez menor, num tempo em que os cenários climáticos se tornam cada vez mais exigentes". Ainda assim, a professora deixa uma janela para o futuro, que na sua opinião o país deveria abrir. "O que estão a fazer os países que pensam com alguma inteligência na organização do território, é procurar soluções locais, articuladas com associações de desenvolvimento local, de gestão do território". Nos últimos anos, o desordenamento é associado "a um profundo abandono do território, das práticas que o mantinham resiliente. Sobretudo a grande região centro, que tem uma floresta totalmente desordenada, uma biologia que não corresponde àquela que deveria ter, e vamos ter cenários que tornam esta questão ainda mais complexa", como se está a ver por estes dias.