Numa foto captada para a revista Life em agosto de 1950, o comediante e ator norte-americano Danny Kaye não esconde o seu regozijo. Kaye, a protagonizar na época filmes como The Inspector General e A Song Is Born, acabara de derrotar a máquina com a qual se lançara numa acesa competição. Bertie the Brain, possante, com os seus quatro metros de altura, interagia com os visitantes da Exposição Nacional Canadiana. A centenária mostra de Toronto, de 25 de agosto a 9 de setembro, apresentava os avanços na tecnologia e no comércio. Fazendo uso da sua inteligência artificial arcaica, Bertie the Brain desafiava humanos a empreenderem uma partida de um jogo com origens milenares. Aos dois competidores de Tic-Tac-Toe basta-lhes munirem-se de lápis, desenharem uma grelha de três por três campos numa folha de papel e, revezando-se, inscreverem um X e um 0 nesses campos. O jogador que conseguir alinhar na horizontal, vertical e diagonal o seu símbolo, sai vencedor da partida. O Tic-Tac-Toe dos norte-americanos encontra congéneres europeus, como o nosso Jogo do Galo e o Noughts and Crosses britânico, assim como na América do Sul, com o brasileiro Jogo da Velha. No caso de Bertie the Brain, o jogo de cruzes e zeros abandonava os seus territórios ancestrais, com grelhas desenhadas no solo, em pedra e no papel, para se apresentar aos praticantes num ecrã animado por um tubo de vácuo, janela para o cérebro artificial da máquina. Para a história, Bertie the Brain inscreve-se como a primeira máquina, fora dos laboratórios de investigação, a correr um jogo de computador acessível ao público..Danny Kaye precisou de algumas dezenas de partidas para levar o seu X, o "cérebro humano" a derrotar o 0 do "cérebro eletrónico" que apresentava vários níveis de dificuldade. Um momento acompanhado por Josef Kates, engenheiro computacional, nascido em 1921 em Viena, na Áustria, mentor e executor de Bertie the Brain. A fotografia captada por Bernard Hoffman, repórter da revista Life significava mais do que notoriedade para o computador de Josef Kates. No momento em que Danny Kaye disputava, à vez com o computador, os seus movimentos na grelha de jogo, através de um dos nove botões de que dispunha, Kates aspirava ao sucesso do seu invento, o tubo de vácuo a que chamou Additron (vinha substituir uma rede de dez tubos de rádio). Bertie the Brain fazia o papel de Cavalo de Troia de Kates na Exposição Nacional Canadiana, para "infiltrar" o seu Additron junto de potenciais compradores da área das tecnologias..Nas três décadas anteriores, o cientista radicado no Canadá concluíra um percurso notável. Quinto de seis filhos de uma família austríaco-judaica, Josef Kates viajara sozinho, em 1938, rumo a Itália. Com 17 anos, o jovem fugia à perseguição Nazi perpetrada aos judeus na Áustria. Josef juntar-se-ia à família já em Inglaterra em 1939. Nesse ano, alistou-se no exército britânico, embora não tenha chegado às linhas de combate. Visto como um estrangeiro inimigo, Kates foi enviado para um campo de internamento no Canadá, nas províncias de Nova Brunswick e Quebec. Aí, ficou detido dois anos, os quais dedica aos estudos com vista a um futuro ingresso na universidade. Após a libertação, em 1942, Josef Kates mudou-se para Toronto onde casou com Lillian Kroch e inicia a sua carreira profissional na Imperial Optical Company. Em 1944, com os estudos universitários concluídos em matemática e física, Kates contribuiu com o seu trabalho para a tecnológica Rogers Vacuum Tube Company e, mais tarde, no centro de computação da Universidade de Toronto, então envolvido na construção do primeiro computador canadiano, o UTEC (Universidade de Toronto Electronic Computer Mark I). De permeio, Josef Kates reunia conhecimento. Queria com o seu tubo de vácuo revolucionar em dimensão e complexidade o futuro dos computadores..Longe do sorriso sardónico de Danny Kaye na sua vitória contra Bertie, a Inglaterra também dava os seus primeiros passos na ciência computacional. Na década de 1940, a Universidade de Cambridge, laborava no seu computador, o portentoso Electronic Delay Storage Automatic Calculator (EDSAC), a ocupar uma sala no laboratório de matemática da referida instituição. Na década de 1950, os computadores assemelhavam-se a enormes máquinas de cartões perfurados e com resultados impressos em tiras de papel. O EDSAC apresentava uma singularidade, ao possuir saídas gráficas em três monitores de tubos de raios catódicos. Nos ecrãs desfilava o estado da memória do computador. Uma porta aberta para o cérebro da máquina utilizada por Alexander Shafto Douglas, professor de ciência computacional da Universidade de Cambridge. Servindo-se de um dos monitores do EDSAC, Alexander programou um jogo como parte da sua tese sobre interação humana com computadores. Um trabalho seminal que espicaçava no cérebro da máquina construída pelo cientista computacional britânico Maurice Wilkes, o potencial para disputar com um oponente humano uma versão de Tic-Tac-Toe. O OXO, assim apelidado mais tarde o jogo pelo historiador de computação Martin Campbell-Kelly, entregava o X ao contendor humano e o 0 à máquina. O utilizador digitava a sua entrada recorrendo ao disco rotativo de um telefone. Cada número correspondia a uma posição na grelha. Ao contrário de Bertie the Brain com exposição pública, OXO nunca saiu do laboratório de matemática da Universidade de Cambridge. A 11 de julho de 1958, o EDSAC entregou através dos seus monitores os últimos relatórios de estado da memória. Depois, foi desligado e com ele expirou a curta existência de OXO, tido como um dos primeiros exemplos entre os jogos de vídeo (uma tese discutida, visto não apresentar gráficos em movimento e em atualização continua)..No Canadá, Josef Kates viu esboroar-se o sonho de sucesso à boleia do seu Additron. O advento da era dos transístores, muito mais pequenos e menos ávidos de energia, anulou as perspetivas comerciais para o tubo de Kates. Ao falecer em 2018, aos 97 anos, a Josef Kates foi tributado um invento que mudou a forma como interagimos com as cidades. Em 1954, o cientista projetou o sistema automatizado de sinalização de trânsito de Toronto, o primeiro no mundo..dnot@dn.pt