1,7 milhões sem médico de família e número "aumentará enquanto não formos capazes de os reter no SNS"
Continua a aumentar o número de portugueses sem médico de família: em maio, eram já 1,7 milhões os cidadãos nessa situação, indicam os dados do portal da transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS), num aumento de 80 mil face ao mês de abril.
Um fenómeno preocupante, que nem a recente contratação de 314 novos médicos servirá para colmatar, alerta Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, para quem o número de portugueses sem médico de família vai "continuar a aumentar enquanto o Governo não tomar medidas para reter médicos no Serviço Nacional de Saúde".
Com a famosa promessa do primeiro-ministro António Costa, em 2016, de não deixar nenhum português sem médico de família, a ecoar agora como utopia distante, o número de utentes sem essa assistência tem vindo a aumentar desde que, em setembro de 2019, atingira o número mais baixo: 641.228 pessoas.
De então para cá, o número cresceu para 1.757.747 de cidadãos em maio de 2023, representando um aumento de 174%.
No último mês de maio foram lançadas a concurso 978 vagas para medicina geral e familiar, o que corresponde a todos os lugares em falta em Portugal. Desses lugares em aberto, foram colocados 314 médicos. O que, segundo a direção executiva do SNS, vai permitir que cerca de 500 mil utentes passem a ter médico de família. Desse total, 113 foram colocados em Lisboa e Vale do Tejo, correspondendo a 29% das colocações, 109 foram colocados no Norte, 73 no Centro, 14 no Algarve e cinco no Alentejo.
Nuno Jacinto admite que "no imediato vai haver uma redução do número de utentes sem médico atribuído". No entanto, adverte, "a questão é que ao longo deste ano vai continuar a haver sobretudo muitas reformas, muitos colegas a abandonar o SNS e, portanto, se nada for feito, este número de 314 médicos vai ser anulado por essas saídas".
O diretor executivo do SNS, Fernando Araújo, já reconheceu que o aumento de utentes sem médico de família se deve a várias razões, como o elevado número de aposentações em 2022 e 2023 e que vão continuar no próximo ano, mas também o facto de "muitos profissionais terem desistido do SNS".
Na prática, o preenchimento destes 314 postos de trabalho conseguido no último concurso corresponde a cerca de um terço das necessidades do SNS na área da medicina geral e familiar.
Para Nuno Jacinto, o panorama dificilmente melhorará enquanto não for resolvido "o essencial", que passa por melhorar a remuneração dos médicos e, neste caso, dos médicos de família. "Tem que haver uma clara revisão das grelhas salariais, isso é uma questão que anda a ser arrastada há muito tempo e a negociação com os sindicatos parece não dar os frutos que seriam desejados". Aliás, ainda esta sexta-feira um dos sindicatos anunciou mais uma greve, após nova reunião inconsequente com o ministério da Saúde .
Além da revisão da grelha salarial, o médico entende que é necessário criar carreiras com uma progressão baseada no médico e que origine uma diferenciação nos seus vários graus e categorias.
A redução da burocracia, uma maior flexibilidade e autonomia por parte das unidades de saúde e o ajuste das listas de utentes são outras medidas consideradas necessárias. "Tem que haver um ajuste da dimensão das listas de utentes. Os médicos de família, na esmagadora maioria dos casos, têm listas de 1900/2000 utentes. É exagerado para todas as tarefas que têm de cumprir e impossibilita que seja dada uma resposta atempada, mesmo aos utentes que têm médico de família, na maioria dos casos".
O presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar relembra que estamos longe de atingir o objetivo acenado por António Costa em 2016 pois não estão a ser tomadas medidas para atrair os médicos para o SNS.
"Formamos médicos de família de enorme qualidade porque eles são procurados por toda a gente. São procurados no estrangeiro, pelo setor privado, e portanto essas alternativas existem. E de forma esquisita não os conseguimos fixar no Serviço Nacional de Saúde".
Nuno Jacinto espera que os médicos que escolheram concorrer ao SNS mantenham a sua decisão de ficar no setor público, mas "para isso são necessárias medidas que os fixem".
sara.a.santos@dn.pt