"Falamos facilmente nas Raspadinhas, mas não dos jovens que jogam Fortnite até às tantas da noite"
Manuel Cardoso, o subdiretor-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e Dependências lidera a organização da conferência europeia que esta quarta-feira arrancou em Lisboa. Um evento que diz estar "a pensar macro".
Mais de 1000 apresentações, 1800 participantes, quase 100 países, 16 salas a funcionar em simultâneo. O que vem a ser este Lisbon Addictions?
Tenho dito a brincar que é o Web Summit das drogas. Mas não é só drogas, são as outras coisas todas.
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Até porque há adicções que não envolvem substâncias.
Sim, hoje discutimos claramente a internet e as dependências das redes sociais, dos ecrãs. Mas há outro tipo de comportamentos adictivos - relacionados com o trabalho, o sexo, as compras - que estão sempre incluídos. É realmente uma montra da investigação nesta área. Os problemas existem em todo o mundo e é importante que os investigadores estejam presentes, bem como os decisores políticos. Só para perceber como é incrível a adesão, do Reino Unido temos mais de 200 participantes; do Canadá mais de 100; da Austrália, 95; dos EUA, 84; Espanha, 85; da Noruega, 116.
A que se deve tanto interesse?
O facto de o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência estar em Lisboa é uma mais-valia. Depois, quer queiramos, quer não, o modelo português em relação às drogas ilícitas é reconhecido em todo o mundo. Todos os anos, temos 50/60 delegações que nos visitam e que querem conhecer a política portuguesa nesta matéria.
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As participações são só presenciais?
Foi assumido que seria apenas presencialmente. O grande objetivo da conferência é a partilha, o networking, que os investigadores se encontrem e cara a cara e discutam o que cada um faz. A ideia é que as pessoas apresentem a sua investigação em qualquer das adicções - substâncias ilícitas, novas substâncias psicoativas, álcool , o jogo (a dinheiro ou não), o tabaco, os ecrãs - e partilhem as experiências.
São problemas a nível global.
Nesta edição vamos discutir a globalidade dessas adicções nas várias vertentes. Estamos a pensar macro e não apenas na heroína, cocaína, álcool ou tabaco, mas a pensar em termos globais.
Falou em adicções que não implicam o consumo de substâncias ilícitas. Essas são mais toleradas ou desvalorizadas?
Não estão na ordem do dia, eventualmente porque as dimensões podem ser menores. Vamo-nos preocupando à medida que sentimos os problemas. Falamos facilmente das Raspadinhas, mas não falamos, ou falamos menos, dos jovens que ficam a jogar Fortnite [videojogo] até às tantas da noite. Não é a mesma coisa em termos de consequências negativas, mas são dependências e criam problemas.
Podemos falar em novas adições?
Podemos dizer que são novas adicções ou comportamentos adictivos, que começam a ser identificados, não serão propriamente novos. Sempre ouvimos falar de workaholics (viciados no trabalho) - já as adicções ao ecrã e aos jogos online são novas.
A abordagem clínica é idêntica às outras adicções?
Não temos nada tão específico para as outras adicções. Nas redes de centros de respostas integradas [CRI] que atendem as adicções ligadas à droga, ao álcool, ao jogo, ao tabaco, é natural que a abordagem seja feita de forma semelhante.
Há uma transferência de dependências?
Não obrigatoriamente. Aquilo que pode acontecer é que, havendo uma matriz comum, haja sobreposições ou desvios. Por exemplo, aquilo que vemos na prática - e os estudos científicos confirmam - é que entre os utilizadores de droga ou dependentes de substâncias ilícitas uma grande parte usa tabaco e outra grande parte usa álcool. Há os policonsumos, com dependências de várias coisas. Há, também, uma relação com o dinheiro ou os problemas do jogo e o consumo de álcool e de drogas. Há cruzamentos de várias adicções, mas não é obrigatório que haja o escalar de uma situação para outra.
As novas dependências estão mais associadas aos jovens?
Depende, os jogos sociais estão distribuídos pela população toda, como a dependência de ecrã. O jogo é realmente entre os mais novos, que têm mais afinidade com as novas tecnologias, é evidente. As questões das redes sociais estão mais relacionadas com as faixas dos 20, 30 anos, que podem não desenvolver dependência (ficar sem comer ou sem dormir), mas ter depressões e outros problemas psicológicos.
Como é que Portugal se posiciona em relação aos outros países?
Comparamo-nos relativamente bem com quase todas as dependências das drogas ilícitas. No álcool comparamo-nos pessimamente, somos dos países do mundo com maior consumo per capita. Mas, em comparação com outros países, não é ao mesmo nível. Temos um padrão de consumo mais associado às refeições, somos seguramente o país no mundo que mais consome vinho. Em relação ao jogo, porque temos o monopólio do jogo, os problemas não são tão grandes, ainda que nos últimos anos tenha aumentado, com a legalização do jogo online. Em relação às redes sociais não há dados comparativos mundiais.
E as drogas ilícitas?
Apesar do investimento ser cada vez menor - está tudo um bocado esquecido - e estarmos a perder o controlo, ainda nos comparamos muitíssimo bem, particularmente em termos da Europa.
Quando diz que estamos a perder o controlo, significa que os consumos estão a aumentar?
Vai havendo mais casos de consumos até de heroína - não é nada muito significativo, mas vão acontecendo - e a cocaína está a aumentar com alguma significância. A capacidade de atendimento vai diminuindo, há alguma falta de investimento no setor, e vai-se perdendo o controlo muito grande que tínhamos sobre as situações.
Houve uma diminuição das verbas atribuídas nesta área?
Investimento aqui não significa só dinheiro, significa clarificação de situações. Desde que o IDT [Instituto da Droga e da Dependência] foi extinto nunca mais houve uma estrutura idêntica. O SICAD [Serviço de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e nas Dependências] tenta agregar, mas depois todas as estruturas de resposta estão independentes e à espera de uma definição mais clara. Toda a gente reconhece que foi um erro extinguir o IDT, mas isso foi há dez anos e ninguém deu um passo para o alterar. As comunidades terapêuticas estão desde 2008 sem atualização dos valores de tratamento. Não podem ter capacidade para trabalhar bem se não tiverem condições, sem haver um investimento nas pessoas, em quem está no terreno. Há necessidade de clarificação.
ceuneves@dn.pt
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