"Adorava levar os políticos ao espaço. Depois iam ter políticas diferentes. O primeiro? O senhor que manda na Rússia"

Em Beja para participar no Zero-G - Astronauta por Um Dia, iniciativa da Agência Espacial Portuguesa que dá oportunidade a 30 estudantes dos 14 aos 18 anos de voarem em condições de microgravidade, o astronauta alemão Matthias Maurer falou ao DN dos seus 177 dias na Estação Espacial Internacional, da nova corrida ao espaço e dos "astronautas" privados que pagam milhões por uns minutos no espaço.
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Quando era criança na aldeia de Sankt Wendel onde nasceu, no estado alemão do Sarre, e via na televisão os astronautas a irem ao espaço considerava-os mais como "super-humanos" do que como um exemplo que gostaria de seguir, como disse há uns tempos numa entrevista. O sonho de se tornar astronauta acabou por só surgir mais tarde?
Sim, eu venho de uma zona onde há muitas aldeias e não há grandes cidades, por isso é bom para os pilotos fazerem voos de teste. Fica perto da maior base militar americana fora dos EUA, Ramstein. Por isso havia sempre aviões a passar e eu queria muito ser piloto. Nunca sonhei ser astronauta, porque era algo tão longínquo que eu achava que eles eram super-humanos.

Mas o sonho acabou por acontecer... Já depois de ter uma carreira como cientista de materiais.
Foi o sonho de um adulto. Eu sou cientista de materiais. É uma área importante. Se olhar para a inovação, 70% vem de um novo material. Por exemplo, se hoje tem um telemóvel melhor é porque lá dentro está uma bateria melhor, e melhores baterias exigem melhores materiais para armazenar energia. O mesmo acontece para termos carros mais rápidos, mais eficientes.

O que o fez decidir, a certa altura, que queria tentar ser astronauta?
Em criança tinha a ideia de querer ser piloto e enquanto estudante aprendi a pilotar um avião sem motor, um planador. Inicialmente pensei em estudar engenharia aerospacial, mas na hora da decisão pesou o facto de as hipóteses de emprego serem tão poucas depois do curso - é muito específico, por isso é muito limitado. Acabei em engenharia de materiais, o que é muito interessante. Mas quando em 2008 vi nas notícias que as ESA [Agência Espacial Europeia, na sigla em inglês] estava à procura de astronautas, pensei: "Espera aí, o que é afinal o trabalho de um astronauta?" Aparentemente é realizar experiências no espaço. E na Estação Espacial fazemos muitas experiências ligadas à ciência dos materiais. Pensei: "Uau, é exatamente o que eu faço." A segunda coisa é que os astronautas trabalham com a melhor tecnologia. E eu adoro tecnologia. E em terceiro lugar, os astronautas têm equipas internacionais e eu estudei em quatro países diferentes. Adoro isso. E depois há o entusiasmo, a excitação de estar no espaço. Por isso me candidatei.

E como foi ter de derrotar mais de 8000 candidatos?
8500! Olhando para o ano passado, quando a ESA abriu um novo concurso, até foi fácil para mim - porque no ano passado foram 22 500 candidatos.

Em 2021/2022 passou 177 dias no espaço. Fez muitas experiências, um pouco como fazia na Terra, mas o que foi mais difícil durante esse tempo todo que passou na Estação Espacial Internacional?
Quando se vive tanto tempo no espaço, a parte mais desafiante é mesmo dar-se bem com os colegas. Porque estamos num ambiente fechado, confinados. No passado houve momentos em que os astronautas tiveram pequenas discussões. Por isso quando selecionam os astronautas, escolhem apenas os que são socialmente compatíveis, os que não vão começar logo a discutir. E mesmo depois da seleção, antes de voarmos, recebemos muito treino para sermos uma equipa harmoniosa. Eu tive muita sorte, a minha equipa era toda muito simpática. Não tivemos qualquer problema e quando voltámos, a NASA disse-nos que tínhamos sido a tripulação mais simpática que já tinham tido no espaço, a equipa perfeita. Para nós, portanto, não foi a parte mais difícil, apesar de muitas vezes ser. Para nós o mais complicado foi perder toda a liberdade - de manhã à noite, todos os nossos minutos estão contados. Somos um macaquinho numa máquina, temos de trabalhar, trabalhar, trabalhar. Quando tudo corre bem, tudo bem, mas quando há um problema com uma experiência, ou quando temos de ir à casa de banho inesperadamente, ficamos logo com um atraso de cinco minutos na nossa agenda. Há muita pressão em relação ao horário.

Não há tempos livres?
Temos tempo livre...

Mas está na agenda.
Exatamente! Começamos às 7h30 e trabalhamos até às 19h30 - 12 horas. Mas pelo meio temos duas horas e meia de desporto. E uma hora de almoço.

Que tipo de desporto é que se faz no espaço?
Bom, estar no espaço é súper, súper relaxante porque flutuamos. É mais relaxante do que estar deitado na cama. Estar deitado na cama é um trabalho árduo comparado com flutuar no espaço. É mesmo. Portanto o corpo é esperto e percebe que, para estar no espaço, não precisa dos músculos ou dos ossos. Portanto o corpo muda. Perde-se massa muscular, perde-se estrutura óssea. Por isso é importante praticar desporto para proteger o nosso corpo. Se não o fizermos, haverá consequências. A perda muscular, por exemplo, é 30% mais rápida do que aqui na Terra. Se eu ficar um ano no espaço, envelheço o equivalente a 30 anos na Terra. É como quando olhamos para um idoso ou uma idosa, por vezes caem e partem a anca - é osteoporose. E é o que acontece a uma velocidade acelerada no espaço. O osso que perdemos, pode formar pedras nos rins, o que é muito doloroso. Ora se um de nós tiver uma pedra num rim e estiver com dores isso significa que todos temos de ser imediatamente trazidos para Terra. Portanto, se não praticarmos desporto, somos um risco para a missão. E o que fazemos como desporto? Fazemos levantamento de pesos. Que não é bem levantar pesos porque não há gravidade e nada tem peso, portanto empurramos contra a resistência, o que tem o mesmo efeito que levantar pesos na Terra. Temos uma bicicleta e temos uma passadeira para correr.

Quando voltou do espaço, que diferenças encontrou no seu corpo?
As diferenças começam logo ao chegar ao espaço. A primeira diferença que se sente é que o líquido no nosso corpo está a flutuar. Mais uma vez, quando pensamos nos idosos, muitas vezes têm as pernas e os pés inchados. É porque a gravidade puxa tudo para baixo e o coração já não tem força para puxar os líquidos para cima. No espaço é ao contrário. Como não há gravidade os líquidos sobem portanto fiquei com a cara inchada. Se olhar para as minhas fotografias no espaço e comparar com fotos minhas na Terra parece que engordei cinco quilos. Não engordei, mas parece. E provoca dores de cabeça devido à pressão no cérebro. Coloca pressão no nervo ótico, a visão fica mais turva. E isso dura até depois do voo. O olfato também fica afetado porque o nariz fica congestionado. Estas são as mudanças imediatas. Depois há os músculos e os ossos. Também o sistema vestibular é afetado, o sentido de orientação. No espaço podemos andar à roda, à roda, à roda, sem ficarmos enjoados. É porque o cérebro percebe que o que vê com os olhos não corresponde ao que sente com os ouvidos internos, por isso o cérebro deixa de ouvir os ouvidos internos. No espaço, tudo bem. Mas quando voltamos à Terra e nos inclinamos, ficamos enjoados. Quando regressamos à Terra, temos de fazer alguns testes, como andar em linha reta com os olhos fechados. E é quase impossível. Sentimos como se estivéssemos bêbados. Quando nos deitamos e nos levantamos, é como se enjoássemos no mar. Foi como se estivesse a ser torturado. Depois melhora, mas na altura sentimo-nos péssimos.

Neste momento vemos a Índia, a China, a Rússia a enviar missões para o espaço. Os EUA querem voltar a colocar homens - e a primeira mulher - na Lua. Como vê esta nova corrida ao espaço das grandes potências?
Adoro. É uma competição saudável, em que todos procuram ser os melhores e isso faz florescer a inovação, mas também faz florescer a cooperação entre todas estas potências, que não podem fazer tudo sozinhas. E sem dúvida que eu prefiro que compitam de uma forma científica e técnica em vez de lutarem em guerras na Terra, o que seria outra forma de competição. Uma competição nada saudável.

A Rússia continua a cooperar no espaço, na Estação Espacial Internacional?
Sim continua. Eu estava no espaço quando a guerra começou.

Há também cada vez mais empresas privadas a levar pessoas ao espaço. Como é que olha para estas pessoas que passam uns minutos no espaço? Podem considerar-se astronautas?
"Astronauta" é um título que não está protegido. Toda a gente se pode considerar astronauta. Não está errado. O próprio planeta Terra é uma grande nave espacial, por isso até a Helena se pode considerar uma astronauta. Eu sou um astronauta mesmo quando estou aqui. Acredito que todos temos o entusiasmo, que todos sonham em ir ao espaço. Mas nem todos têm os meios financeiros para o fazer. E eu gostava que todos tivessem a possibilidade de experienciar aquela sensação. Porque acredito que depois de ter estado lá em cima, todos nos tornamos melhores seres humanos - que queremos proteger a Terra, que queremos colaborar com os outros para tomar conta dela. Só há um sítio onde sabemos que podemos viver e o que estamos a fazer a este planeta é horrível. Acredito que estar lá em cima a olhar para baixo, para este planeta lindo e maravilhoso, muda tudo o que aprendemos e percebemos que temos de o proteger. Por isso adorava que pudéssemos levar todos os políticos no poder até ao espaço. Porque depois disso eles iam ter políticas diferentes.

E qual desses líderes levaria primeiro?
Levava o senhor que manda na Rússia. Podia ser que mudasse a sua perspetiva.

Esteve em Beja para participar no Zero-G - Astronauta por Um Dia, qual a importância de iniciativas como esta que junta estudantes do país todo para um voo de gravidade zero? Como é ver a cara deste miúdos depois de terem cumprido este sonho?
É maravilhoso. Eu fui escolhido para astronauta por ser emocionalmente estável, mas no ano passado quase chorei aqui. Os miúdos estavam tão entusiasmados e no final algumas das raparigas estavam a chorar e a dizer "foi maravilhoso, este foi o melhor dia da minha vida!" Foi muito emotivo.

Pelo segundo ano consecutivo, a Agência Espacial Portuguesa levou, no âmbito da iniciativa Zero-G Portugal - Astronauta por Um Dia, 30 estudantes portugueses do Ensino Básico e Secundário vindos de todas as regiões do país, incluindo Madeira e Açores, num voo parabólico que lhes permitiu experimentar a sensação de gravidade zero que os astronautas sentem no espaço. O voo, que decorreu a bordo do Airbus A310, da empresa francesa Novespace, partiu ontem de manhã da Base Aérea n.º 11, em Beja, e foi antecedido, na véspera por uma conversa com o astronauta da ESA Matthias Maurer.

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