Sharenting. Vai pôr essa foto do seu filho online?

Os guardiões de uma criança devem ter em conta um grau de autonomia e questionar se devem mesmo usar a sua imagem num formato tão público e definitivo
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A miúda de três anos que faz vídeos hilariantes sobre crises existenciais. O miúdo a chorar envergonhado que se tornou um meme. O bebé que faz a sua estreia nas redes sociais com uma ecografia a preto e branco antes mesmo de nascer. Há os blogues, as contas de Instagram, os canais de YouTube, as contas de Facebook onde as caretas e peripécias das crianças fazem as delícias de todos os adultos. Tem tudo imensa piada para eles. Mas não necessariamente para os protagonistas desta tendência que virou praga: o sharenting.

A expressão designa o comportamento dos pais que partilham todo o tipo de fotos, vídeos e histórias dos filhos online. Em muitos casos, conseguem mesmo monetizar essa exposição – mas esse nem é o principal problema deste comportamento.

Tudo bem. É verdade que as crianças são o melhor do mundo. Inspiram-nos, fascinam-nos, fazem-nos rir. Tornam-nos melhores seres humanos. O que as crianças também são? Futuros adolescentes, cuja percepção e imagem de si próprios está a ser moldada pela forma como os pais os vêem e expõem nas redes sociais, e pela reacção de quem está do outro lado.

Isto é problemático a vários níveis. O primeiro é o da segurança, com inúmeros especialistas a avisarem que expor os filhos pequenos online abre as portas a vários riscos, desde o olhar indiscreto de pedófilos à tentativa de rapto. São casos extremos, é verdade, mas não tão raros quanto isso. Ou não seria necessário fazer alertas.

Há ainda o facto de os pais partilharem o nome completo, data e local de nascimento, escolinha e mais informações que não deviam andar a circular. Fazê-lo em grupos privados ou contas de Instagram protegidas pode parecer inócuo, mas é contraproducente porque dá uma falsa sensação de segurança. Repetir muitas vezes: o que é publicado online multiplica-se e não tem retorno. Qualquer um de nós poderá atestar isso com publicações menos felizes que fizemos no passado.

Por isso mesmo, existe o nível crítico do direito à privacidade. Embora um bebé não tenha noção da sua individualidade nem consiga expressar uma vontade específica no que toca a redes sociais, um dia ganhará essa consciência. E o facto de não ter sido tido nem achado na exposição da sua vida em plataformas que ficam para sempre coloca questões pertinentes. Um filho não é pertença absoluta e irrevogável dos pais. Os guardiões de uma criança devem ter em conta um certo grau de autonomia e questionar se devem mesmo usar a sua imagem num formato tão público e definitivo.

Houve uma pesquisa, aqui há uns anos, que indicava que mais de 90% dos bebés de dois anos nos Estados Unidos já tinha presença online. E isso foi antes das super estrelas do Instagram e do boom dos influenciadores. Até que ponto esta “persona” digital vai influenciar a formação da personalidade das crianças? Até que ponto ficarão obcecadas com os likes e os shares ou ressentirão os pais por as terem exposto de tal maneira?

Não me refiro, como é óbvio, ao post ocasional em que os pais professam o seu amor e declaram que o seu filho é o mais bonito do mundo, ou mencionam algo engraçado que ele fez. O ‘sharenting’ requer uma actividade contínua de partilha, cheia de pormenores, em que a cara e o corpo da criança são sempre bem visíveis e identificáveis.

Manter uma criança presa a uma imagem digital que ela não escolheu e não moldou é algo que deve deixar muitas reservas. Talvez ela não queira que a vizinha do colega de escola veja que fez birra no shopping à hora de jantar. Talvez não queira que, quinze anos depois, essas imagens sejam desencantadas pelos bullies lá da escola.

Nesta era das redes sociais omnipresentes e nos fenómenos virais a cada esquina, uma criança não pode fazer opt-out. Só isso devia fazer-nos, a todos, pensar duas vezes.

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