Um olhar que se fecha, um boné que se tira, uma saudação calada e funda

Ainda à porta do mosteiro, já as cerimónias anunciavam que cabia lá tudo. Já Alegre tinha erguido o braço esquerdo e cerrado o punho e o cónego dos Jerónimos se mostrava de cabeção alto e barrete preto com borla violeta
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Uma varanda de passagem, um corpo presente, uma jovem de negro, palmas batidas, choro agarrado e o bilhete escrito à mão: "Obrigado Mário Soares", de uma vizinha, no Campo Grande. Um chão da Baixa lisboeta, pedras negras e brancas. Uma rua de histórias: "Doutor, defende o meu irmão?" (Rua do Ouro, n.º 87, 2.º andar, escritório de presos políticos quando os havia.) Montras gratas, com cartaz de um homem feliz e uma frase que lhe fala: "Obrigado Mário Soares". Um homem triste que passa. Um olhar que se fecha, um corpo que se curva e um boné que se tira. Uma saudação. Calada e funda.

Na Praça do Município, uma carreta funerária recebe a urna envolta na bandeira. De facto, é um armão, viatura puxada a cavalos que noutros tempos tinha uma lança prendendo-a a peças de artilharia - o civil impenitente que foi Soares haveria de achar insólito este seu último meio de transporte, e gostar. Os quatro cavalos são brancos e assim também as coroas de rosas. O presidente da câmara juntou-lhes um cravo vermelho - o próprio do cravo, o melhor dele, não é aos molhos, é guardar a identidade. O dia vai radioso como a liberdade. O Tejo brilha como Lisboa.

Os cavalos param à porta da igreja dos Jerónimos. Do passeio do mosteiro, o olhar, recuando, traz o rio, as pessoas, a parada militar, banda que toca uma marcha fúnebre e seis militares da GNR levam a urna aos ombros. Marcelo Rebelo de Sousa, Ferro Rodrigues e Maria Manuel Marques Leitão - o Presidente, o Parlamento e o Governo - aguardam na passadeira vermelha, por onde vai entrar o cortejo com a urna. Antes, esta passa por outro pequeno grupo: os socialistas Manuel Alegre, Miranda Calha e Carlos César.

Quando a urna passa por ele, Alegre levanta o braço esquerdo e cerra o punho. Saudação antiga dos socialistas, talvez demasiado radical para a evolução do mundo (e dos socialistas) - mas feita por quem ganhou o direito a fazê-la. O homem que ia dentro da urna também haveria de gostar do gesto do camarada. Recuado, na passadeira vermelha, o cónego dos Jerónimos, José Manuel Santos Ferreira, paramentou-se com cabeção alto e barrete preto com borla violeta. Ainda à porta, as cerimónias anunciavam que cabiam lá todos.

A urna vai para a Sala dos Azulejos. Motivos florais, azulejos antigos azuis e amarelos, em salão longo: espaço certo para o que ele servia no velho mosteiro, era lá o refeitório. Como não sorrir por esta homenagem, involuntária, a Mário Soares, frequentador do Gambrinus mas também dos rissóis da Tendinha do Rossio?

A família aguardava no topo da sala. Os filhos de Soares, Isabel e João, recebiam as personalidades e povo que se juntavam na fila. Esta fazia a volta à urna antes de retomar a porta por onde tinha entrado. Um homem tinha o cachecol da primeira vitória nas presidenciais, em 1986: "Soares é fixe", em letras azuis no fundo branco. Querida lembrança, pois guardada durante 30 anos.

Outros encontros terão sido mais seguidos, já que permitiram ver neles uma tendência: "Sempre estivemos do mesmo lado", diz um velho, muito velho. A bengala e mão amiga ajudam-no a subir os poucos degraus e alguém lhe tira o boné ao chegar à urna: Edmundo Pedro, 98 anos, mas já foi o mais jovem preso no campo de concentração do Tarrafal (era Soares garoto). Mas Edmundo Pedro esteve com Soares sempre do mesmo lado: foram comunistas, saíram do PC, foram socialistas.

Os comunistas chegam em delegação, Jerónimo de Sousa e dois deputados. Depois de cumprimentarem os familiares de Soares, o líder do PC não retoma o andar lento da fila, faz questão de recolher-se perante a urna. Três é o número preferido das delegações partidárias, Passos Coelho e Assunção Cristas trazem cada um dois colegas de partido. Quando Passos cumprimenta a família, João Soares não estava na sala, saíra a despedir-se de Sampaio e de Maria José Ritta, que, como também Ramalho e Manuela Eanes, foram ao velório. A ausência de Freitas do Amaral - o adversário de um combate que marcou (o slogan desses tempos "Soares é fixe" foi ontem gritado dos passeios) - explica-se por uma cirurgia que o impediu de um último adeus a Soares, amigo há décadas.

Bagão Félix, bom de frases, soube fazer a melhor do dia sobre o homem do dia: "Mário Soares foi o político português que melhor encarou o mais profundo resultado da política, que é: saber perder é igual a saber ganhar." E até isso Bagão resumiu, e bem: "Ele perdeu com a mesma naturalidade com que muitas vezes venceu." E de Luanda veio outra homenagem a Soares: "Uma perda que abre um vazio difícil de preencher", disse José Eduardo dos Santos. E, porque um funeral são ritos e simbologia, o presidente angolano assinou com uma ponte entre os dois países ao referir-se a Portugal como "pátria de Camões", afinal, um ponto comum.

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