Tortura e racismo na PSP: "Sentia mais medo que tudo. Estava sozinho"
Duas pequenas lágrimas e três estrelas estão tatuadas junto à sobrancelha de Bruno Lopes, um dos jovens, que o Ministério Público (MP) acredita ter sido violentamente agredido por agentes da esquadra da PSP de Alfragide, a cinco de fevereiro de 2015. "Sentia mais medo que tudo. Estava sozinho e desgastado", confessou ao tribunal, depois de relatar todas a violência que sofreu. Foi o primeiro dos seis rapazes da Cova da Moura ouvido esta terça-feira, pelo tribunal de Sintra, como testemunha dos crimes de tortura, sequestro e ofensa à integridade física agravados (entre outros), alegadamente cometidos por 17 polícias, com motivação racista, cruel e desumana.
As lágrimas, explicou ao DN, "são em memória de dois familiares muito próximos" que perdeu e as estrelas "para recordar três amigos de infância que também morreram quando éramos crianças". Bruno, 27 anos, músico de hip hop, chegou ao tribunal vindo da gravação de um anúncio de uma conhecida operadora de telecomunicações, onde o seu grupo interpretou um tema dos Xutos e Pontapés. Durante mais de três horas foi questionado pela juíza presidente, Ester Pacheco, sobre todos os pormenores de uma versão da história que contraria em toda a linha aquela que foi apresentada pelos polícias. Bruno foi o "mote" de todos os acontecimentos desse dia, como recordou a juíza, e esclarecer tudo é fulcral para o julgamento.
Este jovem foi detido na Cova da Moura e levado para a esquadra de Alfragide e foi por isso que os outros cinco ali se deslocaram. Na versão destes, para pedir informações sobre o que se passara, tendo depois sido espancados. Na descrição da PSP para invadir a esquadra e resgatar o amigo, sem que os polícias tivessem usado mais que a força adequada, perante a sua resistência.
Bruno passou uma borracha em tudo o que os agentes contaram naquele tribunal, ponto a ponto, sereno e firme. Não foi detido na rua da Cova da Moura onde os polícias dizem que foi, nem houve pedras contra a carrinha policial, como alegam os agentes. Contou que se estava a rir da conversa com o primo e que um agente o questionou sobre o motivo do riso. Explicou e este mandou-o encostar à parede, partindo-lhe o nariz com uma bastonada, deferida do lado do punho de ferro. "Perdi os sentidos momentaneamente e quando acordei estava a ser arrastado pelos braços para me meterem na carrinha", relatou.
De joelhos no chão, com as mãos algemadas atrás das costas, afirma ter sido agredido com "socos e bastonadas" todo trajeto até à esquadra, que lhe pareceu mais "longo" do que o normal. Contou que já na esquadra, dois agentes "deram remates" (pontapés) no seu peito. Durante o dia e a noite (já nos "calabouços" de Moscavide) ouviu insultos racistas ("tens sangue de macaco", "devias ir para o Estado Islâmico, que estão lá à tua espera") e os "gritos" dos amigos que o tinha ido procurar e acabaram também, segundo o MP, violentamente espancados e detidos.
Apesar de tudo isto, nos seus olhos não há revolta e refutou que nas suas músicas se expressasse contra a PSP, conforme tinha sido afirmado por alguns dos agentes em tribunal. "Se isso fosse verdade acham que nos convidavam para agravar anúncios como o que fizemos hoje? A minha música é sobre a nossa cultura, a vida, os problemas", asseverou.
Vítimas "especialmente vulneráveis"
Logo no início da audiência, o procurador do MP, Manuel das Dores, surpreendeu a sala quando pediu que as seis vítimas, as quais se constituíram assistentes no processo, e duas das testemunhas, fossem inquiridas na ausência dos arguidos na sala de audiências, com base no estatuto das vítimas de criminalidade violenta, consideradas especialmente vulneráveis. A lei prevê que possam ser ouvidas sem a presença dos arguidos, para que não se sintam constrangidas quando estão a prestar depoimento.
Apesar da oposição dos advogados dos arguidos, Hélder Cristóvão e Isabel Gomes Silva, que contrapuseram com a presunção de inocência e o direito de os seus constituintes acompanharem as sessões de julgamento, o coletivo de juízes aceitou o requerimento do MP de forma a "evitar constrangimento e desconforto" das vítimas e das testemunhas durante os respetivos depoimentos. Ester Pacheco convidou os agente a sair da sala
Para a defesa, assumindo o estatuto de vítimas de crimes violento, era admitir que o que está na acusação do MP era verdade. Daí a sua recusa em aceitar a decisão. A juíza contrapôs, dizendo que independentemente da decisão final do julgamento, as testemunhas devem ser protegidas. Todos os 17 polícias que estão a ser julgados negaram que tivessem agredido, ameaçado ou injuriado, motivados pelo racismo, os seis jovens da Cova da Moura.
"Sinto pela primeira vez que possa ver justiça"
Bruno Lopes, tal como os outros cinco jovens, foram inicialmente constituídos arguidos, por resistência à autoridade, e só quando saiu acusação, em julho de 2017 contra os polícias, foram despronunciados.
Num pequeno depoimento que deu ao DN nessa altura, a sua satisfação era evidente: "Hoje graças a Deus estou um pouco mais aliviado. Consigo acreditar cada vez mais que possa ser feita a verdadeira justiça e provar que nada fiz, que nada fizemos para que tivéssemos de passar o que passamos. Estive 2 anos em apresentações periódicas (Termo de Identidade e Residência) sem nada ter feito, limitado de puder viajar. Ainda hoje me lembro quase todos os dias desse dia. Hoje sabendo que conseguiram ver ao certo o que se passou naquele dia sinto-me cada que pela primeira vez possa ver justiça.
Fiquei satisfeito com a noticia do despacho e espero que sejam punidos pelo que fizeram", assinalou.
O MP tem cerca de três dezenas de testemunhas que considera que confirmam a versão dos jovens da Cova da Moura, além de prova pericial e documental.