Todos os governos usam e abusam das almofadas orçamentais
Pode dizer-se que todos os anos é a mesma coisa. Na reta final de cada ano, sobretudo em novembro e dezembro, os sucessivos governos (PS e de coligação PSD-CDS) usam intensivamente as duas maiores almofadas de segurança orçamental - dotação provisional e reserva orçamental - para pagar despesas correntes e "previsíveis", como salários.
Problema: na opinião do Tribunal de Contas (TdC), a maioria desses gastos não tem carácter imprevisto. A instituição tem censurado a prática reiterada ao longo dos últimos anos, considerando-a "indevida" e em "desrespeito" pelos princípios da lei (Enquadramento Orçamental).
Diz mesmo que as Finanças fazem "suborçamentação": aprovam um orçamento com pressupostos irrealistas, inscrevendo, assim, menos despesa inicial. No fim do ano, acertam as contas.
As duas almofadas juntas valem quase mil milhões de euros neste ano. Mas, até novembro, o governo PSD-CDS consumiu 67% dessa margem de segurança. Na dotação provisional sobram apenas 61,2 milhões de euros.
Recuando até 2008, percebe-se que é quase sempre assim. Nesse ano, estava o PS no governo, foi consumido 97% da dotação provisional. E 85% em 2009; e 98% em 2010. Juntando-lhe a reserva orçamental, que no fundo é uma parte das cativações impostas pelas Finanças aos orçamentos dos serviços, o panorama é semelhante: 80% foi usada para cobrir despesa que devia estar devidamente identificada e orçamentada.
Com a chegada da direita ao poder, pouco mudou. À exceção do ano de 2014, em que se consumiu apenas metade das duas almofadas, a margem orçamental para emergências e derrapagens inesperadas foi sempre amplamente consumida. Os anos 2011 e 2014 são notórios nesse aspeto: 95% e 90%, respetivamente, do dinheiro posto de lado foi usado.
A polémica de 2015
E parece que neste ano há nova reedição do assunto. A polémica recorrente voltou a estalar na semana passada quando a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), que assessora o Parlamento, revelou que só "no mês de novembro a reafetação da dotação provisional foi de 278,3 milhões de euros, essencialmente para despesas com pessoal do Ministério da Educação e do Ministério da Justiça".
Será o resultado de vários efeitos: rescisões amigáveis que não se verificaram, menos saídas para a reforma, mais contratações.
A UTAO diz inclusivamente que o défice pode estar em risco porque "a dotação orçamental aprovada no OE 2015 para as despesas com pessoal deverá revelar-se insuficiente para o período novembro-dezembro".
O PSD assegura que deixou tudo encaminhado para que o défice fique abaixo de 3% (entretanto a meta de 2,7% tem sido gradualmente esquecida). O PS diz que não há garantias de que assim seja.
A Unidade Orçamental mostra num estudo retrospetivo (2009 a 2014) que a despesa com pessoal é, invariavelmente, a rubrica que mais recursos exige à dotação provisional. Entre 2008 e 2011, consumiu 43% da verba de segurança. Neste ano volta a acontecer.
Avisos constantes
Ano após ano, o Tribunal de Contas tem feito considerações muito negativas sobre esta prática.
No parecer à Conta Geral do Estado de 2013, os juízes observam que "a dotação provisional, destinada a despesas imprevisíveis e inadiáveis, voltou a ser significativamente utilizada (447 milhões de euros) para reforçar diversas dotações suborçamentadas". Isto "evidencia a sua utilização indevida e o desrespeito pelo princípio da especificação".
Em 2012, tinha havido um aviso igual. Na altura, a ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, defendeu-se assim perante o tribunal: "A dotação provisional é um instrumento de gestão orçamental disponível para fazer face a situações imprevisíveis. A situação económica e financeira que temos vivido nos últimos anos tem conduzido a um aumento de incerteza e, consequentemente, à necessidade de uma gestão orçamental mais exigente." E rejeitou a existência de suborçamentações. O TdC ripostou que a sua análise "corrobora a utilização da dotação provisional para reforço de dotações suborçamentadas".
Os executivos PS também foram repreendidos. Em 2009, o tribunal anotou que "o reforço das dotações para despesas com pessoal em 8,3%, superior ao registado no ano anterior (6,2%), continua a revelar suborçamentação". "Não se compreende a sua crescente utilização para o reforço de despesas com pessoal."
Quem não alinha no tom crítico dos juízes é Miguel Beleza, ex-ministro das Finanças do PSD.
"O uso da dotação provisional e da reserva orçamental é algo que considero normal, que tem aliás acontecido muitas vezes ao longo dos últimos anos", declarou ao DN/Dinheiro Vivo. "Não vejo grande mal no uso dessas dotações. Elas estão lá para isso", acrescenta.
Segundo o professor, não se trata de dinheiro novo. São verbas que estão incluídas na autorização de despesa corrente anual e que, se forem usadas, "acabam por permitir maior flexibilidade na gestão orçamental" de final do ano.
Haja suborçamentação ou não haja, a verdade é que a utilização da margem de segurança orçamental serve quase sempre para amortecer deslizes que se tornam evidentes e inevitáveis... na reta final do ano. Quando isto acontece, o efeito é imediato: impede-se poupança orçamental que poderia ser usada para reduzir o défice ou aliviar a pressão sobre despesa ou receita.