"Temos o governo mais idealista e mais reacionário da Europa"
O encontro estava acertado para a Tasca da Esquina, um projeto do chef Vítor Sobral logo ali à entrada de Campo de Ourique, e foi precisamente por isso, pelo sítio, que acabei por chegar ligeiramente atrasado - não é fácil encontrar lugar para estacionar naquele bairro à hora do almoço e num dia de chuva.
Resolvido o estacionamento, algo a que Luís Pedro Mota Soares está imune porque teima em navegar a cidade com uma pequena scooter - mesmo debaixo de chuva -, chego ao restaurante com uns 15 minutos de atraso. O espaço é pequeno, acolhedor e o deputado do CDS e antigo ministro da Segurança Social no governo de Passos Coelho já estava sentado a beber um copo de água numa mesa num dos recantos do restaurante.
Optámos logo ali por entregar o destino da refeição às sugestões do chef. Ainda estávamos longe de desconfiar que íamos ter uma surpresa de Vítor Sobral no final do almoço, mas ficámos a saber logo de início que o percurso entre entradas, pratos principais e sobremesas tinha sido desenhado, à distância, pelo próprio chef.
Mota Soares começa por confessar que o que ali estava a acontecer era uma raridade. Gosta de comer, é ele quem cozinha lá em casa, "durante a semana e ao fim de semana", e valoriza o sentido cultural da refeição, da mesa. "Nós somos um país que tem menos de mil anos de história e que já é um bocadinho mais que um país, estamos a caminho de ser uma civilização, e eu acho que uma das coisas que caracteriza muito o que é ser português e o modo de estar português é muito a união das pessoas em torno da mesa, uma coisa latina mas que em Portugal é uma coisa muito evidente. As festas da família são todos em torno da mesa, os grandes momentos, nós estamos muitas vezes com os nossos amigos, com a nossa família, em torno da mesa e valorizo muito essa parte social, essa componente social da mesa, da gastronomia".
O grande problema é o tempo. "Infelizmente não consigo fazer isso todos os dias ao almoço, às vezes almoçar é a correr, é de pé, mas com pena, porque acho que é muito estrutural na nossa sociedade, na nossa forma de encararmos o mundo, de estarmos com os outros". Daí que tente cumprir uma liturgia diária: "para mim é quase religioso conseguir jantar em casa com a família".
A Tasca da Esquina tem um posicionamento geoestratégico quase perfeito na vida de Mota Soares e é essa a principal razão da sua escolha para este almoço - fica a meio caminho entre o Parlamento e o escritório.
É por esta altura que chega à mesa o primeiro prato, uma entrada - tártaro de atum com ovas de salmão e lascas de banana da terra frita. E é também este o momento em que expulso dali uma tábua com azeitonas, manteiga e um minúsculo queijo alentejano que estava a dominar a mesa e tudo à volta com um cheiro intenso. Mota Soares defende a sua escolha afirmando que Vítor Sobral consegue o equilíbrio perfeito entre as tradições e as bases da cozinha tradicional portuguesa com um toque de inovação e requinte.
Deixamos a conversa sobre comida e os elogios ao peixe português - "Temos um Atlântico fantástico, um mar absolutamente fantástico que nos dá um peixe que poucos países têm" - para deixar entrar a política. Chega entretanto mais uma entrada - terrina de javali com maçã. Entro no tema com uma ligeira provocação. Quero saber como é que o CDS, famoso por congressos animadíssimos, com intervenções madrugada fora e muita atenção mediática, estava a preparar a reunião de Lamego, este fim de semana? Ou, melhor, como é que iam chamar à atenção do país com um congresso de confirmação administrativa da liderança de Assunção Cristas? Mota Soares tem uma resposta simples: "Acho que falamos no congresso do que as pessoas querem ouvir. Os partidos servem muito para apresentar soluções para os problemas que as pessoas têm e por isso mesmo eu acho que um congresso onde nós tenhamos essa capacidade de discutir de forma franca, aberta, ideias, discutir o que é que queremos para o país, discutir que reformas é que queremos apresentar aos portugueses, discutir o que é que nós queremos que Portugal seja para o futuro, é um congresso com muito interesse à cabeça".
Será uma matéria para ir conferindo durante este fim de semana. Mota Soares fala do congresso de Lamego como "uma janela aberta para o país", no fundo, uma montra das ideias do CDS. Como partido que tem como ambição "voltar ao governo", o CDS quer "permanentemente, em cada tema, em cada assunto, dizer onde é que concorda, dizer onde é que discorda e propor a sua alternativa".
Aterra na mesa a última das entradas - empadão de legumes e puré de batata-doce. Luís Pedro Mota Soares já tinha engatado o modo "deputado da oposição" há largos minutos, falava a um ritmo desenfreado, apaixonado - quem o conhece sabe que fala quase sempre assim - e, não sei bem como, conseguia sempre terminar os pratos antes de mim. Devem ser os anos de treino, de almoços de campanha e o hábito de aproveitar todos os segundos para passar a mensagem, presumo. "Nós temos o governo mais idealista e mais reacionário da Europa", dispara a meio de uma resposta a uma pergunta sobre o congresso de Lamego, "é um governo que, por causa da solução governativa que tem, não apresentou até ao momento uma ideia estrutural para o futuro do país, uma reforma estrutural para conseguirmos garantir que se alavanca o crescimento económico para os próximos anos".
Sem abrandar o ritmo, Mota Soares continua: "Portugal fez muitas reformas nos últimos anos que hoje continuam a dar resultados, mas o mundo não parou e portanto nós também não podemos parar". É aqui que entra um argumento recorrente da oposição: o país poderia estar a crescer um pouco mais. "Se os outros países continuam permanentemente com capacidade de ir melhorando um conjunto de indicadores, de terem mais crescimento, mais produtividade, mais criação de riqueza, Portugal se parar vai ficar para trás". O deputado do CDS afirma que esta seria a altura ideal, até por o país está em crescimento, para "apresentar um conjunto de reformas que devem ser feitas em crescimento económico e não num momento de dificuldade económica, para continuarmos a ter crescimento económico no futuro. É sempre muito mais difícil fazer isto em momentos de decréscimo da economia".
Já estávamos a conversar com meio camarão tigre grelhado pela frente, acompanhado de uma salada de ananás. Luís Pedro Mota Soares dispara algumas perguntas: "o que é que nós temos de fazer? O que é que Portugal pode fazer para, nos próximos anos, crescer sólida e sustentadamente acima dos 2%? Que reformas é que temos de fazer, o que é que nós temos de mudar na estrutura da nossa administração, o que é que nós temos de mudar na estrutura da nossa economia, o que é que nós temos de mudar no nosso sistema legislativo, na justiça, na segurança social, para podermos efetivamente ter mais crescimento?"
E, já agora, sublinha, é preciso que se aproveite o crescimento para influenciar positivamente a vida das pessoas. "Com esse crescimento, como é óbvio, termos mais condições para, do ponto de vista social, chegar às pessoas porque ter crescimento económico mas depois não ter dinheiro para pagar medicamentos nos hospitais, não ter dinheiro para andar aqui a regatear análises clínicas a pessoas só porque têm mais idade como vimos recentemente no Diário de Notícias, é um total contrassenso". Mota Soares reforça a mensagem: "tem de ser um crescimento económico que tenha, do ponto de vista social, uma finalidade, uma finalidade de distribuição, uma finalidade de o Estado poder fazer as matérias em que o Estado é essencial e o Estado é essencial em muitas áreas, como na saúde, na educação, na dimensão social, depois podes contextualizar respostas, pode encontrar aqui novas formas de responder com mais qualidade, agora não pode é deixar de estar presente por opção ideológica ou por opção financeira, porque também quando o Estado todos os anos vai aumentando a dívida da saúde como está a acontecer muito recentemente, o Estado está a fugir às suas responsabilidades".
Pergunto se os objetivos que o CDS está a traçar para as legislativas de 2019 não podem cair por terra devido aos bons resultados da governação socialista, quer na frente da economia, quer nas finanças do Estado. Sobretudo quando os eleitores têm agora mais dinheiro no bolso. Mota Soares sorri e volta a rodar o punho acelerador do argumentário. "Nessa matéria não há nenhuma mudança. Como é que há diferença entre um programa político e outro programa político? Não havia nenhum programa político a dizer que não se queriam repor rendimentos. Convém nós lembrarmos que o primeiro governo que retirou rendimentos em pensões ainda foi em 2011 no início da crise, portanto quando se dizia "ah, afinal havia outro caminho" não havia nenhuma diferença no caminho relativamente a matérias como a reposição de rendimentos, o crescimento económico... Onde é que havia diferenças?"
O deputado lembra algumas tiradas de quem estava na oposição e está agora no governo ou no seu apoio no Parlamento: "Diziam que "com este Código de Trabalho o emprego nunca mais vai subir, este Código de Trabalho é para despedir", a verdade é que não se alterou nada estruturalmente no Código de Trabalho e o emprego felizmente está a recuperar de forma muito sustentada e portanto afinal, pelos vistos, não havia outro caminho". Mais memórias. "Lembro-me de muita gente dizer que sem renegociar a dívida pública é impossível que Portugal cresça; esse era outro caminho, nós renegociámos a dívida pública e Portugal cresceu. Lembro-me de haver gente a dizer que com o atual tratado orçamental Portugal nunca mais vai conseguir crescer porque tem o espartilho das contas públicas; Portugal, com o tratado orçamental, tendo contas públicas equilibradas, conseguiu crescer. Portanto esse suposto outro caminho, essa suposta outra alternativa, sinceramente não estou a ver onde é que ela está".
Não embarcando em previsões com diabo no horizonte, Mota Soares sempre vai dizendo que Portugal tem como certo que um dia destes tudo pode voltar a correr muito mal. O importante, argumenta, seria o governo estar a preparar o país para esse choque inevitável. O problema é que este "é o governo mais imobilista de toda a União Europeia". Faz uma pausa para saborear um pedaço de camarão: "esta é a parte difícil dos almoços em que também queremos falar, alguma coisa fica prejudicada. Está ótimo isto..." E continua sem que algo tenha ficado prejudicado na conversa: "Essa é a parte em que nós precisamos de trabalhar e eu acho que aí o CDS tem hoje a enorme responsabilidade de ser o partido que põe novos temas em cima da mesa, pela preocupação de olhar um bocadinho mais para a frente. É muito curioso que, quando o governo disse que queria iniciar um debate sobre o próximo quadro comunitário, o CDS apresentou logo um documento com as suas ideias, um projeto de resolução com quase 20 páginas em que nós colocamos um conjunto de observações e preocupações".
Significa isso que o CDS está disponível para sentar-se à mesa com o governo e com o PSD, num esforço de convergência em matérias estruturantes? Mota Soares não diz sim, nem não. "Nós apresentámos aquelas que são as nossas alternativas, nós apresentámos aquelas que são as nossas ideias. Se houver convergências, acho que o CDS tem essa obrigação de não se colocar de fora. Agora, é muito importante percebermos do que é que estamos a falar. Dizermos que estamos a repor rendimentos quando, ao mesmo tempo, aumentamos impostos como o imposto sobre os combustíveis, que pesa directamente sobre as famílias e sobre a economia?"
No essencial, fica o compromisso de não abdicar do papel do partido na oposição. "O CDS faz oposição através das propostas. Estamos sempre disponíveis para olhar para temas, não estamos é disponíveis para deixar de fazer oposição, nomeadamente a um governo que promete com uma mão mas tira com as duas mãos". E neste jogo convém que fique claro que, para o CDS, falar com o PSD ou com o PS não é a mesma coisa. Até porque, do lado dos socialistas falta muita coisa. "Há muito pouca coragem, há muito pouca ambição, há muito pouca visão estratégica" Chega o último prato - frango com couve portuguesa e farinheira. Mota Soares havia de dizer mais adiante que está a treinar para a sua primeira maratona e que o treino para esses 42 quilómetros compensam perfeitamente excessos como este.
Já com o almoço a terminar, falámos da qualidade do debate público e dos confrontos no Parlamento, entre oposição, governo e partidos que apoiam o executivo socialista. Mota Soares afirma que "há momentos e momentos" e que nem tudo é mau na Assembleia da Repúnlica. Aproveita para recordar a posição de partida do CDS: "As pessoas querem muito olhar para o país e olhar para os políticos e para os partidos como alguém que se coloque junto do lado da solução e não junto do lado do problema e portanto se o CDS quer ser a solução, em nome dos seus valores, em nome do que representou sempre historicamente na sociedade portuguesa, tem de apresentar muitas das suas alternativas. Isso também se pode fazer e faz-se às vezes até acrescidamente no próprio parlamento e portanto é um desafio interessante".
Lembro uma recente entrevista de um companheiro de partido - Nuno Magalhães que nas páginas do DN teve alguma dificuldade em definir com precisão qual o atual posicionamento ideológico do CDS. Mota Soares não hesita. "Acho que quer a Assunção quer eu podemos ter muitas coisas, mas somos comprovadamente dois democratas-cristãos, isso acho que ninguém questionará. E acho que o CDS nesse sentido continua muito fiel a esta matriz identitária da democracia cristã". E o reposicionamento do PSD com a nova liderança de Rui Rio, não vem alterar as regras do jogo? O deputado afirma que "o CDS não saiu da sua zona natural". O partido, diz, está onde sempre esteve, com os temas de sempre. "Se não fosse o CDS muitas vezes não há discursos sobre o tema da segurança, o que se passa com as forças de segurança, o que se passa com a soberania do Estado, o que se passa com a autoridade do Estado, o que se passa com a Defesa, e portanto o CDS não saiu da sua zona natural".
Numa altura em que já começam a delinear-se estratégias para a pré-campanha eleitoral, Mota Soares anota uma diferença substantiva para o partido dele no mercado do voto: "há uma coisa que mudou efetivamente, que é a questão do voto útil". O CDS sempre perdeu com o voto útil no PSD e agora, assume, é preciso preparar o partido para aproveitar o novo clima. Mas, alerta, "há uma coisa que não pode acontecer: os votos do CDS não podem servir para manter o PS no governo". No fundo, esta pode ser uma boa oportunidade para o partido, afirma Mota Soares: "hoje há mais pessoas com capacidade de nos ouvirem, mas eu acho que esta circunstância de ter acabado o voto útil também aumenta essa capacidade de as pessoas olharem para o CDS e portanto acho que temos de saber aproveitar essa circunstância".
Já com as sobremesas na mesa - três pequenos pedaços de farófias, creme queimado e mousse de chocolate com ginja e nozes laminadas -, entra o tema que faltava: o Benfica. Mota Soares recusa falar das recentes polémicas com o clube. Argumenta que gosta do desporto pelo desporto e que desliga do futebol mal acaba o jogo. Desportivamente falando, ainda acredita. "Sendo benfiquista, que vai ao estádio e que gosta muito do Benfica, só falando no plano desportivo: isto quando nós não preparamos bem as transições, as coisas às vezes são um bocadinho mais complicadas, a transição de uma época para a outra não foi a mais fácil, mas o Benfica hoje conseguiu superar isso e estamos, como alguém dizia, o pior Benfica dos últimos anos está à frente do melhor Sporting dos últimos anos e a cinco pontos do Futebol Clube do Porto. Eu acredito que o Benfica até ao final do ano vai ser campeão".
Tasca da esquina
> Tártaro de atum com ovas de salmão e banana-da-terra frita
> Terrina de javali com maçã
> Empada de legumes com puré de batata-doce
> Camarão -tigre grelhado com salada de ananás
> Frango com couve portuguesa e farinheira
> Sobremesas: farófias, creme queimado e mousse de chocolate com ginja e nozes laminadas
Nota: a refeição foi oferecida pelo chef Vítor Sobral