Solene e poético nos Jerónimos, militante junto ao PS, familiar nos Prazeres
Mário Soares repousa agora ao lado da sua companheira de sempre, Maria de Jesus Barroso, no jazigo da família no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa
Juntar o passado e o futuro
"Adeus, querido pai." As palavras em nome próprio dos dois filhos de Mário Soares emocionaram as cerca de cinco centenas de convidados que ontem se sentaram no claustro do Mosteiro dos Jerónimos, para a cerimónia oficial que marcou a despedida ao antigo Presidente da República. "Ensinou-nos desde muito pequeninos a não ter medo do escuro", lembrou Isabel Soares.
Com a urna do ex-Presidente ao centro, coberta pela bandeira, os principais líderes políticos portugueses, figuras da sociedade e dignitários estrangeiros - o rei de Espanha, por exemplo - ouviu-se a voz do próprio Soares no discurso que, naquele mesmo lugar, em 1985, marcou a adesão de Portugal à CEE: "Nestes claustros junta-se hoje o passado e o futuro de Portugal", "inspirador lugar este", diria depois Marcelo.
Nos claustros também se ouviu António Costa, através de uma gravação feita na Índia, homenagear "o rosto e a voz da nossa liberdade". "Desse título, que era certamente aquele que mais lhe agradaria, raros homens se podem orgulhar", disse, falando de um "génio político que alcançava o que parecia impossível". "Mário Soares construiu a história e, por isso, a história guardará o seu nome." De Soares, Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, disse que "tinha a coragem dos grandes, sempre presente, nos momentos bons e menos bons".
Mas foi também a voz de uma ausência que emocionou a plateia. Escolhido pelos filhos, ouviu-se nos claustros "Os dois poemas de amor da hora triste", de Álvaro Feijó, declamado por Maria Barroso, companheira de 66 anos de Soares, falecida em 2015, e evocada ontem em todos os discursos. Foi então o tempo das lágrimas. E foi também com a voz embargada que Isabel Soares falou do pai: "Era o nosso herói. Quando o pai estava tudo parecia seguro e tranquilo."
"Foi o melhor político"
Maria Teresa Mendes esteve ligada a movimentos maoistas e andou "em coboiadas" antes do 25 de Abril sem ter ido presa, ao contrário de Mário Soares. Agora, "é a memória das lutas em que o ex-Presidente participou" e o "lembrar amigos que foram presos" naquele tempo que a leva até ao Parlamento. "Devemos-lhe muito", frisa. Evocando "as cartas simples para a família que eram extraviadas" pelo regime salazarista, garante que "é importante passar o testemunho aos mais novos" porque a liberdade "não caiu do céu".
Vinda de Braga, Maria do Céu Maciel pergunta onde vai passar ao certo o cortejo. Chegada a Lisboa às 07.00 da manhã num autocarro com umas 60 pessoas, foi primeiro deixar uma mensagem no livro de condolências na sede do Rato. Agora está ali "em memória do pai". "Tinha de vir", exclama, enquanto, ao lado, o "militante do PCP" Mário Pereira declara que o ex-PR "foi o melhor político que existiu em Portugal".
Com a guarda ao Palácio de São Bento perfilada na base da escadaria do edifício, com 15 militares da GNR armados de espingardas Mauser (anos 1940) com sabre-baioneta e envergando o grande uniforme honorífico, o cortejo faz duas breves pausas sob uma forte e longa salva de palmas do público, dos deputados e funcionários parlamentares presentes.
"Soares é fixe, Soares é fixe!"
Vindo do Parlamento, o cortejo subiu a Rua de São Bento e chegou à sede nacional do PS, no Largo do Rato, pelas 15.30. Muitas centenas de pessoas acorreram ao local, muitas delas vindas de várias partes do país, por mobilização do PS, em camionetas que ficaram estacionadas no Parque Eduardo VII.
Até que chegasse, o cortejo foi seguido pelas muitas centenas de pessoas que ali aguardavam a sua passagem num ecrã gigante colocado no exterior que transmitia a emissão da RTP. Assim que o armão da GNR com o caixão, puxado por quatro cavalos, assomou à esquina da Rua de São Bento com o Largo do Rato, iniciou-se uma prolongada salva de palmas. E depois o povo começou a gritar o slogan imortalizado na campanha que, em 1986, levou Mário Soares a Presidente da República: "Soares é fixe, Soares é fixe, Soares é fixe." E depois outro grito, "PS! PS! PS!", com muitas pessoas empunhando rosas amarelas, as flores preferidas do ex-Presidente.
Em colunas de som colocadas no exterior da sede nacional do PS ouviu-se então a voz do próprio Mário Soares, numa gravação antiga: "Viva o socialismo! Viva a liberdade!" E viram-se lágrimas nos olhos de muitos dos presentes, desde o cidadão mais anónimo ao mais destacado dirigente.
Rosas amarelas no jazigo familiar
As flores preferidas de Maria de Jesus Barroso, que a filha Isabel leva aos domingos até ao jazigo da família, multiplicaram-se ontem em mil coroas e arranjos de flores que, já as portas do Cemitério dos Prazeres se fechavam, foram alinhadas pela alameda a marcar o caminho até à derradeira morada de Mário Soares: "Família Barroso Soares." E lá estavam antes 12 flores, que Isabel cuidou de deixar, como as três que também deixou no túmulo de Jaime Cortesão, também socialista e republicano, e outra no do poeta Mário Cesariny.
Isabel e João, os dois filhos, receberam das mãos do Presidente da República a bandeira nacional que, nos dias de honras de Estado, cobriu a urna. Isabel beijou-a, sob um silêncio solene que percorria o cemitério - só a cidade de fundo se fazia ouvir. Para trás, o cortejo deixou essa cidade e ali, na alameda defronte da capela do cemitério, repousa o olhar de Soares numa foto a preto e branco, acompanhada da frase: "Unir os portugueses, servir Portugal."
Mais ou menos anónimos querem despedir-se. Como a mulher idosa, exuberante no casaco branco com que procura disfarçar a idade, que quer junto do jazigo deixar os cravos e as rosas que traz. Não a deixam: a hora é da família, amigos, dignitários e camaradas socialistas. Junto ao jazigo, há mais aplausos. Mais tarde, já Marcelo Rebelo de Sousa saiu, já a família deixou o cemitério, ouve-se um "viva a liberdade". E há aquele homem, casaco pouco quente para o frio que aperta a tarde tingida de negro, que pergunta como pode ir até lá. Não traz flores, elas acompanham-no pelo chão.