Ser médico, oncologista, sobrevivente de cancro e aceitar a eutanásia

No Hospital do Barreiro, por duas vezes foi confrontado com pedidos de doentes. Como explicar que viola o código da deontologia?
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Jorge Espírito Santo é médico oncologista e um sobrevivente do cancro. A sua história é igual à de tantos outros a quem a doença deixou marcas e que, talvez por isso, defendem a eutanásia. Mas a sua história tem uma nuance, é médico oncologista, há anos que acompanha o sofrimento expresso e intolerável de outros. "Não tenho dúvida de que a minha experiência profissional e pessoal modelaram um bocadinho as minhas convicções", assume. "A minha doença oncológica deixou-me uma sequela para a vida, o facto de ter permanecido e de me ter limitado, embora não me tenha condicionado a nenhuma situação de risco de vida iminente, já me obrigou a fazer diferentes procedimentos evasivos. Agora, isso não é nada comparado com o sofrimento que vejo nos outros. Mas a projeção da situação dos outros em mim faz-me perguntar: o que é que eu gostaria que me fizessem, como é que eu gostaria de ser abordado ou o que pediria a quem me abordasse?" Jorge Espírito Santo defende a despenalização da eutanásia.

Médico no hospital do Barreiro, conta que já foi abordado duas vezes, por doentes em situações de grande sofrimento, com pedidos de eutanásia, "independentemente de estarem a receber os melhores cuidados disponíveis", conta. Mas sabe também que estes são a minoria da minoria, até porque "não é uma opção e, por isso, não a expressam livremente". No momento, o importante foi explicar-lhes que aquilo que pediam não podia ser feito, porque a legislação não o permite e o Código Deontológico dos Médicos também não. Depois, foi arranjar-lhes todo o apoio, todos os cuidados alternativos até ao fim.

"Os doentes hoje sabem bem o que está no testamento vital, ou o que querem e o que não querem para si", diz. Basicamente, há dois tipos de doentes: "os que nos dizem 'quero fazer os tratamentos, não me deixe morrer', ou os que pura e simplesmente assumem que não vale a pena continuar".

O médico torna-se fiel depositário do desejo e vontade de cada doente. Confiam mas, argumenta Jorge Espírito Santo, "têm o direito de ser informados e devidamente esclarecidos do que se está a fazer, dos benefícios, dos riscos, das alternativas que existem, ou de como não continuar tratamentos ativos, etc. As pessoas têm de tomar decisões, de optar". É isso que deve ser feito no debate que está em jogo. O médico considera que um debate destes nunca está completo, mas ao mesmo tempo defende que "já há muito debate feito. Há muita coisa que se discutiu, muita informação que passou. Se há quem diga que não houve debate suficiente, eu não sei o que isso é, qual a escala de medida. Provavelmente, será sempre insuficiente, mas tal não é só para esta questão, será para tudo na vida".

Para o oncologista é óbvio que "qualquer lei para a despenalização da eutanásia ou do suicídio assistido estará em contradição com o Código Deontológico da Ordem dos Médicos, mas não é por causa disso que a legislação não deve ser produzida", argumenta. Por outro lado, argumenta que não deverá ser por existir uma lei que se deve mudar à pressa o Código Deontológico. "Uma coisa não implica a outra, é evidente que mais cedo ou mais tarde vai ter de haver um método que permita a salvaguarda de todas as partes, mas não vejo que seja por causa disso que as leis não se possam votar."

Em relação ao juramento de Hipócrates, admite ter uma interpretação diversa da maioria dos colegas: "A diferença é que eu vejo o juramento hipocrático na sua justa medida, essencialmente como um código de comportamento, não como uma tábua de lei." Ou seja, "o que ele nos diz é que o médico tem um conjunto de deveres que acabam todos na defesa do seu doente, como o respeito que nos deve merecer a vida humana, a defesa intransigente daqueles de quem tratamos, o respeito pela sua autonomia. E o que estou a dizer não tem nada que ver com a morte assistida, tem que ver com tudo, com o direito à recusa de terapêutica, com o direito e a salvaguarda das opções de cada um dos nossos doentes em relação às situações que se apresentam, tem que ver com a nossa capacidade de comunicar e de explicar aos nossos doentes as situações em concreto".

Quando falo "no respeito pela vida dos nossos doentes, é a vida não entendida num sentido restrito, mas num sentido lato. A vida não é apenas um conceito biológico simples, uma vida humana é muito mais do que o livre arbítrio. É tudo o que a rodeia, é o prazer, os sentimentos, a alegria, a tristeza, as escolhas, a capacidade de relação. Uma vida é tudo isto, se nós queremos preservar a vida, é restrito ficarmos só na vida enquanto conceito biológico", justifica, acrescentando: "A possibilidade de alguém antecipar a sua morte em determinadas condições é apenas uma consequência de se estar vivo no sentido lato do termo." Não tem dúvidas de que os colegas "irão dizer o contrário, mas esta é a minha interpretação".

Volta a invocar os preceitos hipocráticos, que são "preceitos de respeito absoluto pela vida humana, o defender os interesses dos nossos doentes como a nossa primeira preocupação e garantir a autonomia e a expressão da livre vontade dos nossos doentes é o núcleo central deste nosso Código Deontológico. Somos as pessoas a quem nos legaram essa responsabilidade. E nós queremos legar essa nossa responsabilidade aos próximos, aos colegas mais novos. Desde há dois mil anos que é isso que nos define como médicos".

Mas há algo que não aceita, "que a morte medicamente assistida se possa aplicar fora do contexto estrito do que está definido", diz. "Noutras situações não seria adequado, não me parece que se possa aplicar a quem não tem capacidade para decidir, por ser muito velho ou muito jovem, ou por estar numa situação de incapacidade cognitiva, ou a alguém que simplesmente teve uma desilusão grande e de repente diz que está a sofrer e que não quer continuar a viver. Não me parece que isso se enquadre nestes pressupostos da defesa da vida e dos interesses do doente e do respeito pela sua autonomia."

Se a legislação não passar, também considera que "o debate deve continuar. Isto é uma corrida de fundo. Mudar mentalidades e perspetivas é um processo demorado".

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