Se não podes acabar com as drogas, legaliza-as
"O efeito positivo da liberalização do comércio das drogas - ainda que controlada pelas autoridades estaduais - (...) não apenas retiraria dos circuitos do crime comum os 50 ou 60% de drogados e pequenos traficantes que para ele contribuem, como reduziria drasticamente a expressão do crime organizado! Este sofreria o mais rude golpe! (...) A ideia faz o seu caminho. Mas só seria viável ao nível de grandes espaços. O mundo ocidental, por exemplo. Ou a UE, por que não?"
O excerto faz parte da alocução preparada pelo juiz Carlos Alexandre para um debate ocorrido terça-feira nas Conferências do Estoril. Convidado para falar sobre justiça, o magistrado parece ter surpreendido o país ao defender a legalização de todas as substâncias qualificadas como "drogas". Junta assim a sua voz ao crescente coro de individualidades e organizações que a nível internacional - e também nacional - pugnam pelo fim da política conhecida como proibicionismo. Este assenta em três convenções da ONU, assinadas em 1961, 1971 e 1988, que elencam o conjunto de substâncias cuja produção, distribuição, venda e consumo os estados signatários se comprometem a proibir.
Os argumentos utilizados pelo juiz coincidem por exemplo com os do milionário americano George Soros, que terá investido mais de 200 milhões de dólares, desde 1994, para apoiar iniciativas no sentido da legalização das drogas. A seguir ao 11 de setembro, uma organização associada a Soros, o Senlis Council, fez campanha - sem sucesso - para que a produção de ópio no Afeganistão fosse legalizada, de modo a cortar essa fonte de rendimento aos talibãs e Al Qaeda; depois de ter, em 2010, num artigo no Wall Street Journal, defendido a legalização da canábis nos EUA, o magnata financiou esforços nesse sentido em vários estados.
Outras vozes de peso que a nível internacional têm defendido a alteração da política da droga agrupam-se na Global Commission on Drug Policy (Comissão Global em Matéria de Drogas), criada em 2011 com o objetivo de "avaliar o impacto da atual estratégia de controlo de drogas e de propor medidas inovadoras e eficazes que protejam os direitos humanos, incrementem a redução de danos e promovam o desenvolvimento". Dela fazem parte o ex presidente da República Jorge Sampaio, assim como o ex secretário-geral da ONU Kofi Annan, entre outros ex líderes mundiais.
"Estamos mais longe que nunca de um "mundo sem drogas". (...) Pelo contrário, multiplicam-se os "efeitos negativos das políticas punitivas": a criação de um mercado negro avaliado em 300 mil milhões de dólares anuais, um crescimento da violência e da corrupção. (...)", escreveu Sampaio em 2014, num artigo assinado com a ex presidente da Suíça Ruth Dreifuss, também membro da comissão. "Advogamos fortemente o fim da criminalização dos consumidores de drogas e apelamos aos países para que continuem a explorar as diferentes opções em termos de saúde e de redução de riscos, incluindo regular, de maneira rigorosa, certas substâncias que hoje são ilegais".
No mesmo ano, o ex PR apresentou, na ONU, o relatório da Comissão. Intitulado "Assumindo o controlo: Caminhos para Políticas de Drogas que funcionam", pede "uma mudança de política urgente" porque "o atual sistema não está a funcionar." Essa mudança, preconiza o relatório, deve incluir a regulação dos mercados das drogas. "Mercados regulados não são mercados livres", advertiu o ex chefe de Estado. "Regulação significa tomar o controlo, para que sejam os governos e não os criminosos a decidirem sobre a disponibilidade ou indisponibilidade das diferentes substâncias, em diferentes contextos".
No mesmo sentido foi a argumentação de Carlos Alexandre: "É sabido que o flagelo da droga constitui a principal fonte de financiamento do crime organizado e a mais expressiva fonte de criminalidade comum. É fonte de financiamento do crime organizado porque o comércio de drogas é proibido. E sendo proibido exponencia o seu preço no mercado negro. (...) Estima-se que o lucro global do tráfico de drogas é hoje da ordem da economia global do crude. Quantos responsáveis políticos têm consciência disso?"
A revolução da canábis
De facto, são cada vez mais os responsáveis políticos que demonstram ter essa consciência. As iniciativas no sentido da legalização do uso recreativo da canábis, iniciadas pelo Uruguai e pelo estado americano do Colorado em 2012, multiplicam-se: não só outros sete estados imitaram o Colorado (muitos outros permitem já o uso medicinal) como o governo canadiano, que já legalizou o uso medicinal da substância, apresentou, em abril, duas propostas de lei no sentido de legalizar e regular a produção, distribuição e venda da mesma para efeitos recreativos. As leis, que estabelecem os 18 anos como a idade mínima para compra e consumo, devem entrar em vigor em julho.
Em Portugal, Carlos Alexandre não é o primeiro magistrado, embora seja decerto o mais famoso, a exprimir publicamente uma opinião favorável ao fim do proibicionismo. Eduardo Maia e Costa, enquanto procurador do Ministério Público (acabou a sua carreira na magistratura como juiz conselheiro do Supremo Tribunal, estando jubilado desde 2015), publicou múltiplos artigos e trabalhos sobre a necessidade de alterar profundamente a política da droga. Em maio de 1999, aquando da aprovação, pelo governo chefiado por António Guterres e sob os auspícios do então ministro adjunto José Sócrates, que detinha a pasta da Toxicodependência, da nova estratégia de luta contra a droga, que preconizava a descriminalização do consumo - a qual veio a ser lei em 2001 -, escrevia, no Público: "O que se anuncia não é pouco, pois é o inevitável primeiro passo na inversão da estratégia tradicional. E o primeiro passo é mesmo o mais difícil: é o que abre o caminho aos passos seguintes. Por isso, a despenalização do consumo tem um carácter simbólico decisivo.(...) Há que dizê-lo claramente: finalmente, houve a coragem política de parar para pensar e depois tomar decisões refletidas, racional e cientificamente fundadas, assentes numa perspetiva humanista. Há ainda muito para caminhar. Mas o caminho está iniciado." E em novembro de 2016, nas IV Jornadas Açorianas de Direito, defendeu a legalização da canábis e seus derivados em Portugal, invocando as experiências existentes a nível internacional, desde 2012, nesse sentido. "Legalizar a canábis levaria a que sua venda e dos seus derivados fosse de imediato tributada, gerando receita para o Estado, como acontece com os impostos do tabaco e do álcool",frisou. "Os próprios Tribunais e as Polícias poderão então direcionar as atenções para outras atividades mais danosas e perigosas e ter-se-á uma sociedade mais livre e com cidadãos mais responsáveis que respondem por si próprios."
Chegou mesmo a ser fundada em Portugal, em 1995, uma organização para defender a legalização das drogas, a SOMA-Associação Portuguesa Antiproibicionista, cujo principal rosto era o ex deputado socialista João Menezes Ferreira. A SOMA, que tinha o duque de Bragança no seu Conselho Estratégico, contava também com o apoio do então banqueiro Paulo Teixeira Pinto - o qual foi também presidente da Comissão de Honra de Passos na campanha para a liderança do PSD.
Passos Coelho foi aliás um dos políticos portugueses a defender, exatamente em 2010, a legalização de todas as substâncias conhecidas como drogas. Porém, não só nunca mais o repetiu como sob a sua liderança o PSD tem votado contra as propostas de legalização da canábis que o BE apresentou desde 2013 (deverá voltar à carga até ao fim desta legislatura). Já a sua ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, exprimiu em 2015, numa entrevista à TSF, a convicção de que a legalização das drogas é o caminho.
Mas o histórico socialista Almeida Santos, ex presidente da Assembleia da República e desaparecido em 2016, é a grande referência nesta matéria entre os políticos - de resto Carlos Alexandre citou-o copiosamente. No governo, pelo menos o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, ex presidente da JS, já defendeu a legalização da canábis.