Ricardo Salgado: "Não me resigno a pedir desculpas e considerar que fica tudo bem"
BES - Os Dias do Fim Revelados põe fim a mais de ano e meio de silêncio do banqueiro. António de Sousa e Isabel Vaz apresentam o livro da jornalista Alexandra de Almeida Ferreira, hoje às 18.30 no Grémio Literário
As reuniões com o governo e o Banco de Portugal, os enganos e os episódios que criaram conflitos na família e levaram à queda do Grupo Espírito Santo, contados por Ricardo Salgado. BES - Os Dias do Fim Revelados põe fim a mais de ano e meio de silêncio do banqueiro. O ex-governador do Banco de Portugal António de Sousa e Isabel Vaz, CEO da Luz Saúde (ex-Espírito Santo Saúde), apresentam o livro, nascido de uma conversa com a jornalista Alexandra de Almeida Ferreira, hoje às 18.30 no Grémio Literário, em Lisboa. O DN revela hoje excertos de dois capítulos (A sucessão e O Abismo), em pré-publicação.
A SUCESSÃO
O "quase milagroso" aumento de capital
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O anúncio tinha sido feito ao mercado a 15 de Maio: o BES propunha um aumento de capital até 1045 milhões de euros. Nessa altura, os prejuízos do banco chegavam perto de 90 milhões de euros. Ricardo Salgado tinha reservas sobre o aumento de capital. Não sobre a capacidade financeira do Grupo mas sobre a real necessidade de se avançar: "Houve desconsiderações da parte do Banco de Portugal ao não nos deixar incorporar nos rácios de solvência o benefício que adivinha da redução dos riscos com a garantia de Angola. Acredito que o Banco de Portugal também fez isso para que nós não pudéssemos evitar o aumento de capital. Obrigou-nos a fazer o aumento de capital e nós fizemo-lo. Toda esta matéria do BESA está no prospecto. Está lá tudo explicado. E aos advogados que representavam o sindicato bancário que tomou firme a operação mas que não foi necessário tomar firme porque ela foi subscrita em mais 80% do que era o objectivo." Porquê? A palavra é confiança, diz o banqueiro. "Com todos aqueles factores de risco identificados no prospecto, acho quase milagroso o aumento de capital do BES tenha sido feito da forma brilhante como foi. Havia confiança até ao fim!"
"Havia ambições desmedidas"
No salão nobre do Banco de Portugal, os oito membros do Conselho Superior estão em silêncio. O ambiente tem tanto de solene como de tenso. Para Ricardo Salgado nada daquilo era uma surpresa, a transição estava a ser preparada havia meses. "Eu já lhes tinha dito que o Banco de Portugal queria que nós fôssemos para um Conselho Estratégico mas eles não queriam acreditar. Então pedi ao Governador para os convocar a todos para ouvirem o que tinha para dizer. Havia ambições desmedidas de alguns dos membros do Conselho Superior, nomeadamente dos mais novos."
O Governador finalmente diz à família que nenhum poderá continuar no Conselho de Administração do BES. Nenhum reage excepto José Maria Ricciardi. Está colérico. Contesta, com voz alterada, o que acaba de ouvir do Governador. Desde o início do processo que enviava cartas ao Banco de Portugal em que se desresponsabilizava do problema da ESI, em que criticava a gestão centralizadora de Ricardo Salgado com quem coabitava no Conselho de Administração e na Comissão Executiva do banco, apesar de nunca ter renunciado às suas funções, apesar do desacordo assumido com as opções do banqueiro. Próximo de Passos Coelho, a insinuação dessa amizade poderá ter sido o que despoletou a reacção de Carlos Costa que disse, também ele nervoso, a Ricciardi que não estava habituado a que falassem com ele naquele tom e que não gostava de ser pressionado e que agradecia que a conversa ficasse por ali. No final saíram, sabendo, pelo menos a maioria, que tinha chegado ao fim. "É claro que isso foi um choque para muitos. Para mim já não, porque eu de qualquer forma já achava que iria sair. Aquilo que ele estava a dar a entender é que não reconhecia que houvesse alguém na família com capacidade para ser o responsável executivo do banco", recorda Ricardo Salgado.
Governador reage: "Devia ter lido nas entrelinhas"
Carlos Costa estava em Frankfurt quando tocou o telefone. No visor, o nome de Ricardo Salgado.
- Sr. Governador, está a passar-se uma situação muito má, a catástrofe do grupo. Fui informado pelo Dr. Joaquim Goes que a supervisão não autoriza mais operações para o grupo. Carlos Costa, sempre nervoso no confronto reagiu mal.
- O Sr. Presidente está a pressionar-me!
- Sr. Governador, eu não estou a pressionar de maneira nenhuma. Estou a transmitir-lhe o que se passa. Há operações que têm de ser feitas para reembolsar papel comercial e que se não for reembolsado pode-se desencadear um colapso!
- O Sr. Presidente está a pressionar-me para as nomeações para o Conselho de Administração!
Ricardo Salgado reage. Está perplexo com a reacção e, de facto, preocupado com o atraso nas nomeações.
- Mas o Sr. Governador disse-me que seria como eu entendesse e portanto estava de acordo com o Amílcar Morais Pires. Aliás, as convocatórias já estão vistas pelo Banco de Portugal e está lá o nome do Amílcar e nós não tivemos nenhum reflexo negativo sobre as nomeações que foram feitas.
Carlos Costa, em Frankfurt, acaba por dizer ao telefone o que não disse em dezenas de reuniões pessoais e e-mails trocados com o BES nos meses que serviram para preparar a sucessão. Reagia quando a confiança do mercado estava já destruída.
- O Sr. Presidente não soube ler nas entrelinhas. Faça o favor de escolher outros administradores num prazo muito curto.
"Já não estava ali a fazer nada"
13 de Julho. É Domingo. Não está ninguém no banco. Só Ricardo Salgado. Nesse dia, ao final da tarde, teria lugar a reunião do Conselho de Administração que o afastaria do Banco e cooptaria Vítor Bento. Foi buscar os últimos documentos, arrumar a secretária. Era o último dia que entraria na sede do Banco Espírito Santo, na Avenida da Liberdade. Saía ele, mas o nome Espírito Santo continuaria, terá pensado, sem adivinhar que dali a duas semanas também o nome desapareceria do topo do edifício e das centenas de balcões espalhados pelo país.
(...) "Tínhamos feito um Conselho de Administração antes, tínhamos estado em contacto com o Banco de Portugal antes para receber o Blackstone. Mas o Banco de Portugal não quis. No dia 13 eu saí porque achei que tinha cumprido a minha missão até ao fim. Eu tinha batalhado para que o Banco de Portugal apoiasse o BES e o Grupo na medida do possível, com garantias. Quando recusou receber o Blackstone, percebi que já não estava ali a fazer nada."
O ABISMO
Passos "não tinha percebido nada"
Ricardo Salgado lembrava-se bem dessa resposta na reunião que teve com Pedro Passos Coelho logo a seguir a ter saído do Ministério das Finanças. Ouviu do Primeiro-Ministro que fosse renegociar a dívida das empresas com os credores. "O que ele me dizia era espantoso! Não tinha percebido nada!", indigna-se Ricardo Salgado. De facto tinha percebido pouco: os credores de que falava Pedro Passos Coelho eram os milhares de clientes que tinham comprado o papel comercial aos balcões do banco em Portugal e no exterior e que o Banco de Portugal obrigava a ressarcir a cada vencimento das respectivas obrigações, sem possibilidade de renegociação, quando o regulador impôs o fim de qualquer operação de financiamento entre as duas partes. E pior, que tinha desencadeado uma venda apressada - "fire sale" - dos activos do Grupo que desvalorizaram para menos de metade do valor real e que só pressionavam o valor das empresas e, pelo meio, agravava exponencialmente a situação da área não financeira, do Espírito Santo Financial Group e do BES.
"O BES foi forçado a desaparecer"
Pedro Duarte Neves escreve a derradeira carta ao Conselho de Administração. Pede a apresentação, até 31 de Julho - em dois dias - de um plano de reestruturação com medidas que permitissem ao BES regressar a uma situação de cumprimento dos requisitos próprios e um aumento de capital. De dois mil milhões de euros. Em 48 horas. Depois de ter rejeitado, dez dias antes a entrada de investidores privados no banco. "Eles sabiam que o BES ia desaparecer. Eles queriam que o BES desaparecesse. Resolveram aplicar a resolução. Porque é que eles recusam dois investidores a quererem o aumento de capital? Acha normal depois exigirem em 48 horas uma recapitalização que era completamente inviável?", as palavras são de Ricardo Salgado. Está convicto que já nessa data era a resolução que estava decidida. E dificilmente está errado.
Logo no dia a seguir, dia 30 de Julho, a Direcção Geral de Concorrência da Comissão Europeia recebe um pedido de registo para avançar com a resolução no BES. O documento fica online durante poucas horas, o suficiente para ser apanhado antes de, à pressa, os serviços de Bruxelas o retirarem do site. Por várias razões, a principal é que as acções do BES continuavam a negociar em bolsa, só tendo sido suspensas a 1 de Agosto, depois de caírem 65% para valerem pouco mais que dez cêntimos. Num Conselho de Ministros Extraordinário, no dia 31 de Julho, o Governo aprova as alterações jurídicas necessárias para pôr em marcha um mecanismo nunca usado nem em Portugal nem na Europa. Essas alterações são ocultadas do press release da reunião de Ministros que é divulgada publicamente. Tudo é feito em segredo, enquanto o Conselho de Administração do BES tem nas mãos uma carta que o obriga a arranjar dois mil milhões de euros em dois dias.
Maria Luís "assistiu. Isso é uma coisa que me choca"
Domingo. 3 de Agosto de 2014. De volta à sala da casa da Pedra da Nau em Cascais. Maria João ao seu lado. Ouvem as duras palavras de Carlos Costa. Fraude. Colapso. Resolução. Banco bom e banco mau. O seu era o mau. 150 anos de História. No dia a seguir, quem passasse pela Avenida da Liberdade veria os andaimes na sede do banco a retirarem o nome Espírito Santo da fachada. O da sua família. Tinha ouvido Marques Mendes no dia anterior a ler a sina do BES, no seu comentário semanal na televisão, sempre um passo à frente do que fará o Governo. Mas até àquele momento achou sempre que o desfecho não podia ser aquele. Tinha claro para si, logo ali, a frase que marcará sempre a sua leitura do que aconteceu no Verão de 2014, em pouco mais de um mês: "O banco não faliu. Foi obrigado a desaparecer."
Ainda hoje não se conforma. Nunca se conformará. Os últimos anos da sua vida serão dedicados a isso mesmo: salvar a honra da sua família, mesmo que a família seja hoje um conceito bastante diferente daquele que teria há um ano. O mesmo dos amigos. Recorda o que lhe dizia o pai. "Costumava dizer-me que na vida tudo passa, só a amizade perdura. E de facto a conclusão a que eu chego passados todos estes anos é que amizades à séria contam-se pelos dedos de uma ou duas mãos. Mas essas valem tudo. Às vezes somos também surpreendidos pela positiva. Amigos de infância que voltaram e que vieram ter comigo e me fazem companhia." Não há mágoa. Diz que não teve surpresas negativas. Afinal não é assim tão ingénuo.
Um ano depois, o tempo já é de reflexão. Ainda vive a olhar para a destruição de capital, para o balanço do BES quando se veio embora, para as contas de hoje do Novo Banco. Mas para lá dos números, reflecte nos motivos. "Havia dinheiro." Refere-se à linha pública de recapitalização. "Mas o que me leva a concluir que o banco foi forçado a desaparecer foi que ele quis aplicar a resolução para acabar com o conglomerado misto e com a família." Não acredita que o Governador tenha pensado sozinho. Até acredita que Carlos Costa estivesse convicto de que o banco sobreviveria, mesmo que acabasse com a área não financeira. O fim, tal como aconteceu, a resolução, tem contornos políticos. "Acho que isso releva mais à arena política pura e dura. Acho que o objectivo era que politicamente fosse sufragado primeiro na opinião pública e depois nos actos eleitorais de que era preciso acabar com os poderosos que tinham influência e que provavelmente até eram corruptores."
"A Ministra das Finanças assistiu! Isso é uma coisa que me choca! Nas reuniões em que ela convocava os banqueiros para apoiar as empresas públicas, dentro e fora do perímetro - dívida oculta -, quando os bancos estrangeiros estavam a pedir os reembolsos das operações de crédito. E assistiu sempre, e eu fui sempre a várias reuniões, ou iam colegas como o Dr. Amílcar e o Dr. António Souto, a enorme disponibilidade que o banco sempre teve para apoiar as empresas do Estado, a área não financeira do Estado. E eram emergências porque os bancos estrangeiros estavam a exigir os reembolsos. E o Governador, na mesma altura, dizia que era melhor que houvesse mais bancos estrangeiros em Portugal. Quando eram os bancos estrangeiros que estavam a tirar o tapete ao Estado."
"É pior pedir desculpa do que não ter razão"
Hoje está obviamente triste. Assume as suas responsabilidades mas não a culpa do fim do BES. Havia outros caminhos. "Fica uma enorme decepção. Uma tristeza grande pela forma como o banco acabou. Não cheguei a pedir desculpa aos clientes porque sigo a máxima expressa no verso de Fernando Pessoa: é pior pedir desculpa do que não ter razão. Sempre actuei para salvar o BES, sempre invoquei as razões que me moviam. Pelos vistos não foram compreendidas nem aceites. Mas não vou desistir de apontá-las. O que não me resigno é a pedir desculpas e considerar que, com isso, fica tudo bem. Quero que os clientes percebam que procurei, até ao fim, salvaguardá-los. O banco foi forçado a desaparecer e foi forçado a desaparecer por uma total falta de visão dos governantes do nosso país e da acção da parte do Banco de Portugal que, no fundo, julgo já tinha intenção de acabar com um banco de família."

BES - Os Dias do Fim Revelados
Autora: Alexandra de Almeida Ferreira
Chiado Editora
PVP: 15 euros