"Podia fazer-se a história da arte em Portugal através dos selos"
Descobri que existia um clube hípico paredes-meias com a Cidade Universitária quando há uns tempos andava no arquivo do DN de volta de fotos antigas de aviões a aterrar em Lisboa. Agora acrescento ao que vi então nas imagens por satélite da google maps uma observação in loco, a caminho do restaurante Jockey que Raul Moreira, diretor de Filatelia dos CTT, escolheu para o nosso almoço dedicado ao mundo dos selos. "Diga no portão que vem para o restaurante e eles abrem a cancela. Depois há muito por onde estacionar", tinha-me elucidado Raul num e-mail onde também dava umas dicas para chegar ao Hipódromo do Campo Grande, virando à direita depois de passar pela Torre do Tombo. Mas confesso que não imaginei que me ía cruzar, num dia de semana, com tanta gente a andar a cavalo, tanta gente a alimentar o cavalo, tanta gente a limpar o cavalo. Devagarinho, lá estacionei, rodeado de muito verde, com o Estádio de Alvalade ali perto para me relembrar que mesmo assim estava no coração de uma Lisboa cheia de segredos.
"É por causa deste verde todo que gosto de vir aqui", conta Raul, já sentados nós à mesa. Não há jogo nenhum de palavras, pois o meu convidado, ficarei depois a saber, é "benfiquista e também secretário da assembleia geral do Estoril Praia". E, continuando,"estacionar também é fácil e, claro, a qualidade da comida é muita e saio daqui sempre satisfeito". Percebe-se que é cliente habitual pela familiaridade com que é tratado, se bem que o estilo brincalhão do especialista em selos atraia simpatia com facilidade. Devo admitir que decidi desafiá-lo para esta rubrica quando, na residência da embaixadora israelita, Tzipora Rimon, o ouvi contar como D. Fernando se escandalizara um pouco com a ideia de se carimbar o primeiro selo português, em 1853, uma imagem da mulher, a rainha D. Maria II. Era a cerimónia de lançamento a que cada selo tem direito (como agora um sobre 40 anos de relações diplomáticas Portugal-Israel) e o rei-consorte terá dito "se é para o país andar todo a bater na cara da minha mulher, então que seja eu o primeiro". Raul confessa-me que duvida que o rei, embora grande artista e homem de mente aberta, tivesse uma ironia tão refinada, sobretudo porque a rainha estava frágil e morreria no final desse ano, mas como dizem os italianos, se non è vero è ben trovato.
Vem para a mesa um pratinho de queijo de Castelo Branco. Muito bem curado, salgado e saboroso. "Experimente o pão, que eles cozem aqui", incentiva-me Raul, que descobri que além de ser há décadas o craque nacional em filatelia (e já sustentarei mais este título) é também crítico gastronómico, com participação até num blogue, mas sob pseudónimo.
Antes do encontro, pedi a Raul que me enviasse um pequeno CV. Fiquei a saber que mora no Estoril mas nasceu em Lisboa a 31 de agosto de 1955; que se licenciou em Gestão pelo ISCTE e que nessa universidade foi professor convidado durante 30 anos; e que está nos CTT desde 1981. Saltou-me também à vista a presidência entre 2006 e 2012 da Associação Mundial para o Desenvolvimento da Filatelia, uma agência da União Postal Universal, essa admirável instituição que garante que uma carta selada num dado país chegará ao endereço em qualquer outro. Testemunhei-o, conto, quando em 2003 estive em reportagem no Iraque de Saddam Hussein, país isoladíssimo do resto do mundo, e enviei um postal de Bagdad para minha casa, em Setúbal. Só chegou umas semanas depois, tinha já eu regressado, mas chegou. "Tudo começou em 1840, quando os britânicos criaram o selo postal com o custo assumido pelo remetente. Antes, era o destinatário que pagava ao mensageiro e imagine os problemas que isso dava. Uma carta a exigir o pagamento de uma dívida? Nem a aceitavam, quanto mais pagá-la ao carteiro", conta Raul, entre risos.
Antes que me esqueça, a ligação ao ISCTE durante décadas é a explicação para o hábito de frequentar o Hipódromo e o seu restaurante, que depois de algum interregno recomeçou quando soube "que o sr. Rafael, que já foi gerente do Tertúlia, vinha para cá." Foi-me apresentado Rafael Afonso , que fez questão também de nos trazer a ementa. Hesitámos tanto Raul como eu entre os choquinhos de Setúbal e uns lagartinhos de porco, acabando por ganhar a carne, que veio acompanhada por um risoto com cogumelos. "Muito bom", foi a sentença final, como Raul a acrescentar que "não há nada que eu não goste, seja peixe ou carne, desde que seja bem feito, com amor". Para acompanhar, um tinto, que Raul deixou ser a casa a escolher: "Eles sabem que costumo beber uma garrafa até aos 20 euros, fasquia onde não falta os bons vinhos." Depois sugere que seja eu a provar, e não só provo como aprovo. Fico a saber que é Espinho Reserva, um vinho do Douro. Preço na conta? 21,20 euros, como Raul previa que andasse lá perto.
Formado, como já foi dito, em Gestão, Raul entra nos CTT em 1981 para o gabinete de estudos de mercado. E quando o departamento de Filatelia, onde entretanto começara a trabalhar no marketing, decide que tem de apostar na juventude e num espírito mais ousado, lá está ele a dar o salto para uma área que também exige que se perceba de números, mas em que a cultura, a arte, a história, até as relações internacionais contam muito. Foi um tempo em que destaca o diretor Leiria Viegas e o diretor de arte Luiz Duran. Entre os três houve a tal química que traz resultados extraordinários e que Raul quer manter nestes CTT entretanto privatizados mas cuja origem remonta ao século XVI, quando, em 1520, "D. Manuel nomeia Luís Homem como o primeiro Correio-Mor do Reino, cargo que assumiu durante 12 anos". Fico também a saber que uma família, os Gomes da Mata, deu correios-mor a Portugal durante quase dois séculos.
Raul sabe muito de história. E isso ajuda-o na hora de decidir os temas das 20 a 25 emissões filatélicas que Portugal faz por ano. "Recebemos centenas de sugestões. Todos os anos, até final de março, qualquer cidadão ou instituição pode sugerir uma temática. Aproveitamos várias, depois de analisadas por um conselho consultivo de individualidades externas aos CTT". E conta algumas histórias divertidas, como a de Portugal ter sido "o primeiro país a pôr comida em selos. Sim, comida mesmo, pratos. Não uma fruta ou um vegetal". Aconteceu depois de uma viagem a Milão em 1994, onde visitou o restaurante do chef Gualtiero Marchesi, um dos grandes da cozinha italiana. "Lembro-me de comentar que alguns daqueles pratos, era um menu de degustação com 17 pratos, davam uns belos selos. E assim foi". Quem depois cozinhou em portugaL foi o Fausto Airoldi, as fotografias foram feitas por Homem Cardoso e José Quitério supervisionou o projeto. Ficou uma grande amizade com o antigo crítico do Expresso e, percebe-se, também o interesse pela gastronomia. Claro, também saiu o livro Comer em Português.
Ao todo, os CTT já publicaram 287 livros. Foram pioneiros mundiais nisto de associar selos e edições de grande qualidade, assegura-me Raul, com óbvio orgulho, relembrando que tudo começou em 1983 e prosseguiu em 1986 com Azulejo em Portugal, o primeiro livro temático. E oferece-me Sabores da Lusofonia...com selos, de David Lopes Ramos, que vale pelo conteúdo mas também como objeto, ilustrado com grande requinte. "Gostamos de fazer tudo com arte. Aliás, essa é uma das nossas melhores tradições. Em vez de termos, para criar os nossos selos, uma grande equipa de design, preferimos desafiar os artistas a participar. O resultado é tão excelente que como costuma dizer o José Augusto França podia-se fazer a história da arte em Portugal através dos selos. E os artistas apreciam", conta Raul. E há nomes, como Júlio Pomar, que fazem questão de cobrar bem menos do que é costume por um original seu só por ser para os CTT. Entre os artistas que já colaboraram com os CTT, conta Raul, está André Carrilho, que ilustra estas páginas.
Nisto de livros, o diretor de Filatelia dos CTT diz que vai sair um agora sobre o centenário de Fátima, por Paulo Mendes Pinto. Fátima também deu origem a uma emissão conjunta de selos com a Polónia, a Eslováquia e o Luxemburgo além de duas emissões nacionais dedicadas à visita de Papa Francisco a 13 de maio a Portugal. Peço que me explique melhor as emissões conjuntas e Raul dá uns pormenores curiosos: "são temas que unem dois ou mais países, em regra dois. Por exemplo, agora com Israel selecionámos o tema dos golfinhos, que há lá e cá, assim como a investigação científica sobre esses mamíferos marinhos; com França, recordo que fizemos os 950 anos das relações, por causa do nascimento de D. Henrique, e que acabou por ser dedicado a ruas históricas de Paris e Lisboa". Fico a saber que se houver dificuldade de acordo nas escolha comum do tema entre os países, a fauna e a flora são sempre soluções, como as águias numa emissão conjunta há uns anos com o Irão.
Vale a pena aqui um parêntesis para explicar melhor a Filatelia de uns correios, no caso a dos CTT. Como explica Raul, "um selo é o recibo do pagamento de um transporte de uma mensagem e são esses recibos que nós disponibilizamos a todas as lojas CTT. Mas a sua concepção, execução e produção é nossa. E podemos vendê-los pelo preço facial a colecionadores de todo o mundo ou até integrá-los em livros também para venda. E com isto conseguimos gerar por ano sete milhões de euros, que é uma pequeníssima percentagem da atividade dos CTT mas que conta muito em termos de relações públicas. Somos muito bem vistos lá fora em termos de selos e isso é bom não só para a empresa como para o país". E o que são hoje os CTT, pergunto. Raul dá-me uma série de números de cabeça, mas depois pede para confirmar se tudo está atualizado e que me enviará daqui a pouco por email quando chegar à sede, agora no Parque das Nações. Dito e feito:
"Caríssimo Leonídio
Quando compuser os seus números para o artigo considere sff os valores:
- número de objectos que passam pelos CTT todos os dias: aprox. 2milhões e 800 mil
- número de cartas com selo: cerca de 10 a 12000 por dia
- número de empregados dos CTT: cerca de 12000
- número de empregados do grupo CTT: cerca de 14500
Um Abraço!
Raul"
Das tais histórias que Raul é mestre em contar há uma deliciosa com o Aga Khan, o líder dos muçulmanos ismaelitas. Pausa apenas para pedirmos os cafés, que o meu convidado não é de doces. "só às vezes um pão-de-ló caseiro", diz "Então isto passou-se no Castelo de São Jorge, por ocasião da emissão de selos dedicada ao prémio Aga Khan de Arquitetura em 2013. Pela primeira vez no mundo, fazia-se uma emissão de selos em seda, executada em talhe doce. E eu estou a explicar isto aos convidados, e vejo o presidente Cavaco Silva a dar um pequeno toque com o cotovelo ao príncipe Aga Khan e a repetir "the first time in the world" orgulhoso", conta Raul, de novo entre risos. Já agora, o currículo do diretor de Filatelia mostra uma comenda dada por um presidente, mas italiano, Giorgio Napolitano, distinguindo o trabalho na União Postal Universal.
A conversa vai longa. Voltamos à paixão gastronómica, que começou muito com a amizade com José Quitério e David Lopes Ramos (já falecido e que foi jornalista do Público) e teve desenvolvimento prático uns anos depois quando Raul enviuvou. "Perdi a Natália muito jovem e tinha um filho de 17 anos para acabar de criar. Hoje cozinho muito, para o Diogo, que ainda vive comigo, e para a minha mãe e uma tia velhinha. Faço com gosto e acho que sou bastante bom a fazer arrozes". Pergunto que arrozes. "Todos".
Para o final fica uma revelação. Que mais apropriado a um homem que sabe tanto de história, que aprecia a boa gastronomia e é uma figura da filatelia do que me contar, assim como quem não quer a coisa, que uma bisavó era cozinheira do rei D. Carlos e um bisavô carteiro? O casal Jerónima e João.
Jockey Restaurante
› Pão
› Queijo de Castelo Branco
› 2 Lagartinhos Porco
› 2 águas
› 1 Espinho Reserva
› 2 Cafés
Total:64,35 euros