Moção de confiança derruba I Governo PS
O regime entrara numa nova fase: Ramalho Eanes (apoiado por PS, PSD, CDS, MRPP, PCP(ml) e AOC) tinha sido eleito a 27 de junho e investido como presidente a 14 de julho de 1976. Depois, empossou Mário Soares, a 23 de julho, como primeiro-ministro do I Governo Constitucional, um Executivo socialista minoritário e o primeiro dos seus três gabinetes - e nenhum cumpriria o mandato. Na síntese de Martin Gilbert, agora, "Portugal tinha uma Constituição democrática e, na sequência de novas eleições, um Governo parlamentar liderado pelo socialista Mário Soares" (História do Século XX).
"Embora a sua posição política interna fosse mais fraca do que a de Eanes em 1976", defende Kenneth Maxwell, "Soares gozava de uma enorme vantagem sobre o novo presidente. Ao contrário de Eanes, era um cosmopolita, tão à vontade em Paris como em Lisboa"(A Construção da Democracia em Portugal). Até o New York Times, recorda João Hall Themido, em editorial, "o considera como reunindo todas as qualidades para o exercício daquele cargo e descreve-o como um socialista moderno, à maneira europeia, que emergiu em Portugal após a Revolução" (Dez Anos em Washington).
Apesar de "não dispor de maioria absoluta", Eanes "não hesita em empossá-lo como primeiro-ministro, não levantando qualquer entrave à fórmula minoritária proposta", sublinha Maria Inácia Rezola (25 de Abril - Mitos de Uma Revolução). "Integrando no seu elenco um rol de personalidades prestigiadas (Henrique de Barros, Almeida Santos, Medeiros Ferreira, Sottomayor Cardia, entre muitos outros), o Governo consegue fazer passar o seu programa" no Parlamento (ibidem).
No fundo, escrevia José Freire Antunes em Sá Carneiro - Um Meteoro nos Anos Setenta, "a Nação passava a Mário Soares um cheque com a cobertura de uma grande esperança. Restava saber se ele seria tão ágil a governar como fora a zurzir os comunistas". Álvaro Cunhal, no seu ensaio de 1999, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (A Contrarrevolução Confessa-se), confirmaria: "A formação do Governo do PS marca assim não só a extinção da dinâmica revolucionária como a viragem para o desencadeamento do processo contrarrevolucionário a partir do poder político - do Governo e da Assembleia da República."
Curiosamente, como o próprio revelaria em Um Político Assume-se, Soares "[aceitou] contra a [sua] vontade o dificílimo cargo de primeiro-ministro" por sentir que, naquela altura, "não tinha suficiente experiência administrativa para ocupar um lugar político tão difícil". Depois, após recusar a proposta de Sá Carneiro para formarem um gabinete de coligação - e não exigir à Assembleia da República logo uma moção de confiança -, admitiria que foi um "erro grave", justificado com a "falta de experiência política e administrativa". Até porque os tempos eram difíceis e, tinha advertido na tomada de posse, "os portugueses sabem agora distinguir a utopia, socialmente tão perigosa, daquilo que é possível e sensato realizar" (idem).
"As perspetivas para a democracia portuguesa", lembra Tony Judt (Pós-Guerra - História da Europa desde 1945), "continuavam sombrias - Willy Brandt era apenas um dos muitos observadores contemporâneos que viam em Soares outro Kerensky [a comparação é de Kissinger], um engodo involuntário para as forças não democráticas que o iriam substituir na primeira oportunidade. Mas Soares sobreviveu - e mais: as Forças Armadas mantiveram-se confinadas às casernas e o papel das suas franjas politizadas [foi] cada vez mais marginal".
Neste período, muitas das chamadas "conquistas da Revolução" terminavam, nomeadamente a Reforma Agrária, com a nova lei de bases, também conhecida por Lei [António] Barreto (o ministro da Agricultura). Outro domínio em que a normalidade seria assegurada, no meio de enorme contestação, foi o ensino superior, com Sottomayor Cardia a reintegrar professores que tinham sido saneados e a impor um novo modelo de gestão das escolas. Ao mesmo tempo, o ministro do Trabalho Maldonado Gonelha tentava disciplinar as reivindicações do mundo laboral.
Paralelamente, o desígnio europeu parece ser um objetivo central. O líder do PCP irá contrapor que "é bom lembrar que, até à formação do seu Governo em 1976, Mário Soares proclamava que a entrada na CEE [atual UE] seria um desastre para Portugal" (idem). Mas, contrariando até a opinião da maioria dos economistas, o primeiro-ministro decidiu pedir a adesão formal à Europa Comunitária (então CEE, um pequeno clube de apenas nove países), a 28 de março de 1977.
Mas o mais grave era mesmo a situação económica, na sequência da Revolução e do choque petrolífero de 1973. Silva Lopes, governador do Banco de Portugal, chegava a acordar o primeiro-ministro pela uma da manhã por causa da bancarrota iminente no dia seguinte, como contava Soares a Teresa de Sousa, ao que ele retorquia: "Por favor, senhor governador, deixe-me dormir. Caso contrário, amanhã não estarei em condições para encarar tão grave problema" (Portugal Tem Saída). Nesta altura, além das ajudas da Alemanha, Hall Themido diz que "foi evidente o intuito americano de ajudar o Governo de Mário Soares, que enfrentava grandes dificuldades para fazer face à balança de pagamentos", com Washington a ser determinante a convencer outros países (do Japão à Noruega) a participar no "grande empréstimo" a Portugal. E Soares teve "papel decisivo nas diligências que efetuou por ocasião da sua visita aos Estados Unidos, em abril de 1976", pois foi recebido pelo presidente Carter, "avistou-se com Mondale, Vance e Brzezinski", "falou com os presidentes do FMI e do Banco Mundial, participou em reuniões de esclarecimento organizadas nas duas Câmaras do Senado" (ibidem). Entretanto, Ramalho Eanes, "cercado por civis e militares que procuravam instrumentalizá-lo, distanciou-se do Governo justamente quando precisávamos mais do seu apoio, por termos começado a negociar com o FMI" (Um Político Assume-se).
Álvaro Cunhal, no relatório lido no IX Congresso do PCP, em maio de 1979, sintetizaria as críticas ao I Governo: "Começou a política sistemática de agravamento das condições de vida dos trabalhadores", "desencadeou (...) a primeira brutal ofensiva contra a Reforma Agrária", "lançou a desastrosa política de endividamento externo e a operação de integração no Mercado Comum", "preparou a contrarrevolução legislativa". E justificava assim o voto que conduziria à queda do Executivo, quando Soares apresentou, a 17 de novembro de 1977, uma moção de confiança chumbada no Parlamento a 6 de dezembro - o que, pelas normas constitucionais da época, provocava o fim do Governo. Após falharem as negociações dos bastidores, dirá a Joaquim Vieira: "Deu-se esta coisa extraordinária: o PC votou com o CDS e toda a direita para derrubar o Governo socialista" (Uma Vida).
Muito mais tarde, já em 1983, em resposta à bancada comunista na apresentação do Governo do Bloco Central (PS-PSD), recordaria este período: "Nós lembramo-nos do tempo em que em todas as paredes de Portugal foi posto o nome de Maldonado Gonelha [slogans pintados pediam "Soares/Gonelha (ou Barreto) - Rua!"], sem nenhum prejuízo efetivo para ele e com algum prejuízo para aqueles que escreveram nas paredes."