Apoiante da candidatura e amigo do General sem Medo

Furacão. Após a campanha que assustou o regime, a fraude eleitoral e o exílio na embaixada, Mário Soares foi vê-lo ao hospital de Praga e Jorge Semprún queria que Costa-Gravas rodasse um filme
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O "general Coca-Cola", como começaram por minimizar os comunistas, acabou por eletrizar o País em 1958 depois da célebre frase sobre o que faria a Salazar se fosse eleito Presidente: "Obviamente, demito-o!" Mário Soares, a quem Humberto Delgado chamava então "o homem dos barbas" - "referia-se a Jaime Cortesão e a Azevedo Gomes, de cujo prestígio tinha um certo ciúme" (Um Político Assume-se) -, integrou a comissão da candidatura do "General sem Medo" e, na "primeira vez que [votou]", verificou a "fraude eleitoral escandalosamente praticada pelo regime" (ibidem), pois, oficialmente, 75 % do País votou no candidato fascista. "O general corre agora o risco de ser preso, por ter cometido o "crime" de se opor vigorosamente ao regime de Salazar", escrevia o New York Times, enquanto o L"Express escolhia para título "A última fraude".

No entanto, como Mário Soares admitiria, "foi durante os meses que precederam a entrada de Humberto Delgado na embaixada do Brasil [para pedir asilo político] que mais com ele [conviveu]" (Portugal Amordaçado), acrescentando que "reuníamos quase todos os dias no escritório do nosso amigo Acácio Gouveia" (Um Político Assume-se). Nessa fase, o ex-candidato pretendia criar um movimento político e Soares cedeu o seu escritório para lá se fazerem reuniões, mas recusou-se "a participar, ou sequer a assistir, como mero observador, por [lhe] parecer que o Movimento [Nacional Independente] não tinha grande viabilidade política" (Portugal Amordaçado).

Mas estaria ao lado do já então considerado internacionalmente como líder da oposição portuguesa, por exemplo, na tradicional romagem ao cemitério do Alto de São João, em Lisboa, a 5 de outubro, para comemorar a implantação da República. E, no seu livro Memórias, Humberto Delgado descreve o que aconteceu, após já terem visitado as sepulturas de Miguel Bombarda e do almirante Cândido dos Reis. "Quando já estávamos para depor uma coroa de flores no monumento do falecido presidente da República, Dr. António José de Almeida, a polícia portou-se de forma indescritivelmente bárbara, atacando-nos com granadas de gás lacrimogéneo, muito embora entre os presentes se encontrassem dois candidatos à Presidência da República, o Dr. Arlindo Vicente [apoiado pelos comunistas, desistira a favor de Delgado] e eu próprio, e diversos outros membros da Oposição, já idosos, tais como o Dr. António Sérgio, o Dr. Jaime Cortesão e o Dr. Azevedo Gomes."

Demitido e ameaçado, sem direito sequer a passaporte para ir ao funeral do Papa Pio XII, há uma manhã em que o general reflete em sua casa, na Rua Filipe Folque. "Um amigo acaba de o avisar que vai ser preso nessa mesma tarde" (Humberto Delgado - Assassinato de um Herói, de Mariano Robles Romero-Robledo e José António Novais). E, "subitamente", "sem nos prevenir" (Um Político Assume-se), às 15 e 30 desse dia 12 de janeiro de 1959, entra na chancelaria do Brasil (a embaixada ficava na mesma rua da polícia política) e pede asilo político. O embaixador Álvaro Lins, então com 47 anos, não está, mas é informado e chega uma hora depois. Nessa mesma tarde, após a audiência que teve com o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Marcelo Matias, resolve conceder asilo a Humberto Delgado, antes mesmo de a decisão ser homologada pelo Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores, como uma posição do Governo brasileiro. Seguem-se 98 dias de um braço de ferro entre as autoridades de Lisboa e o representante de um executivo que se está a mudar do Rio de Janeiro para Brasília, e que o diplomata regista minuciosamente no livro Missão em Portugal.

"Naturalmente, nessa linha do seu estilo, o que o velho ditador pretendia era que a Embaixada do Brasil fizesse, com o chefe da oposição portuguesa, a mesma oferenda à PIDE que ele fizera ao seu colega Franco, com os exilados espanhóis entrados em território português", durante a Guerra Civil de Espanha (1936-1939), "e que eram fuzilados todos, às centenas, como bichos, ali mesmo, a dois passos da fronteira, no anfiteatro das touradas em Badajoz" (Missão em Portugal).

Apesar de não ser diplomata de carreira, antes um "escritor e ilustre académico" (Um Político Assume-Se) , defendeu a soberania do seu país como poucos embaixadores. Como lembrará na carta de devolução da Grã-Cruz da Ordem de Cristo ao Governo Português ("Nada fiz, em matéria de serviços à ditadura portuguesa para merecer essa condecoração"), o regime "salazarista pretendeu tratar a Embaixada do Brasil em Portugal como se fôra a delegação em Lisboa de alguma das suas províncias ultramarinas [como, então, se designavam as colónias]" (idem).

Finalmente, a 20 de abril, Humberto Delgado parte para o Brasil e, em vez do que designava depreciativamente como a "guerra de papéis" (manifestos e petições) da oposição interna, vai fundar as Juntas Patrióticas de Libertação Nacional (1959) e, a partir de Argel, em novembro de 1961, quando já criara a Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLN), o general fará um apelo para a revolta nacional. E vai estar ligado a vários movimentos insurrecionais, da tomada do paquete Santa Maria, numa operação de Henrique Galvão, ao desvio do avião da TAP, numa ação do grupo de Palma Inácio. E até entra clandestinamente em Portugal, disfarçado com óculos e bigode, para assumir o golpe de Beja, que fracassa antes de o general chegar ao quartel que devia ser tomado pelos oposicionistas. Nessa altura, antes de abandonar o país, deixa-se fotografar, lendo o Diário de Notícias desse dia, em plena Avenida da Liberdade. "A PIDE sofreu com esta fotografia, divulgada clandestinamente, uma funda humilhação"(Um Político Assume-se).

Após as querelas no exílio ( incompatibilizara-se, entretanto, com vastos setores oposicionistas no Brasil e na Argélia), quando foi operado de urgência na Checoslováquia, "a pedido dos comunistas, que [lhe] arranjaram um passaporte falso para viajar, via Zurique, até Praga" (onde Delgado conhecera Cunhal, em 1963), Mário Soares foi ver como o oposicionista "estava a ser bem tratado" (Um Político Assume-se), pois o PCP temia que, caso morresse naquela altura, Salazar os acusasse de terem eliminado um adversário. Ao ver o advogado português no hospital, e percebendo os riscos que ele corria ao visitá-lo num país da Cortina de Ferro, além de lhe pedir para informar a mulher que lhe enviasse a farda de general, garantiu a Soares que iria derrubar, de forma revolucionária, Salazar. "Chamou mesmo uma enfermeira e reclamou: "Traga-me uma garrafa de champanhe da Crimeia, para celebrar com este meu amigo o compromisso que acabo de assumir com ele" (idem). Ainda o veria, uma vez mais, quando foi jantar, com Maria Lamas, a casa de Emídio Guerreiro, em Paris - "estava muito magro, mas não menos impaciente" para entrar em ação (Portugal Amordaçado). "Nessa noite, (...) estava de novo eufórico. Anunciou-nos a conspiração que estava de novo em marcha e em que, finalmente, o regime seria derrubado" (Um Político Assume-se) . Logo os amigos, que não tinham conhecimento de nenhum rumor do género, pensaram que era "uma fantasia" do general ou "uma armadilha da PIDE" (idem). A reflexão de Mário Soares era certeira. A 13 de fevereiro, perto de Villanueva del Fresno (Badajoz), os hipotéticos cúmplices da conspiração eram os quatro elementos da brigada da polícia política (Rosa Casaco, Agostinho Tienza, Casimiro Monteiro e Lopes Ramos), que ali mesmo assassinaram e enterraram o general e a sua secretária brasileira Arajaryr Moreira Campos.

Jorge Semprún, "grande escritor e então militante comunista" (A Esperança É Necessária), mais tarde ministro da Cultura de Felipe González, "quis fazer um filme a partir do que eu escrevera no Portugal Bailloné [Portugal Amordaçado] sobre Humberto Delgado", mas o cineasta Costa-Gravas, que rodava filmes de denúncia política e para quem tinha escrito os argumentos de Z e de A Confissão, já se tinha comprometido com outro projeto (Ditadura e Revolução).

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