O "pastor" Marcelo vai guiar um Natal que é tudo menos feliz

Presidente cumpre a promessa: 25 de dezembro é dedicado aos que sobreviveram à tragédia dos fogos de junho
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"O que eu queria mesmo era adormecer hoje e só acordar em janeiro, sem ter de passar por isto tudo do Natal". Encostada ao muro da antiga Escola Primária da aldeia da Figueira, onde aprendeu a ler e escrever, Anabela Paiva absorve o calor do sol do meio dia e carrega baterias para voltar ao trabalho, no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Pedrógão Grande. Era lá que estava, no turno da noite, quando o fogo de 17 de junho lhe devorou a casa. Foi lá que atendeu o telefone ao filho, de 11 anos, quando ele lhe perguntou, já noite dentro: "mãe, e agora onde é que vamos viver?".

Anabela tem 44 anos, nasceu em Coimbra mas foi adotada em menina por um casal da Figueira, na freguesia da Graça, Pedrógão. À hora em que o DN a encontra circula pelo interior da antiga escola primária, que ao fim de décadas desativada vai ser agora a sede da Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande. Cá fora, um corrupio de baldes de tinta passa entre as mãos do grupo de jovens arquitetos que desenhou a obra, a convite da Fundação Calouste Gulbenkian. Anabela aperta o fecho do casaco polar preto com que se protege do frio, e entra naquela que foi a sua sala de aula. Recorda então os colegas, cerca de 20, que vinham dali da Figueira e das aldeias vizinhas do Nodeirinho, Pinheiro e Soalheira. Os meninos desse tempo não poderiam adivinhar tamanha provação na idade adulta, como a que estava para chegar no verão de 2017, e que transforma este Natal no mais triste da história daquela região. "É como eu lhe digo: se pudesse adormecia já hoje e só acordava em janeiro".

A auxiliar do Lar de idosos faz parte daqueles que ainda não têm casa nova para passar o Natal. As obras estão a cargo de um grupo de voluntários denominado "ReConstruir o Pinhal Interior Norte", que aos fins de semana mergulha naquela aldeia para reerguer a moradia de Anabela. Depois do fogo - que apanhou em casa o marido, a mãe, e os filhos de 13 e 11 anos, e que se refugiaram num anexo - a família foi morar para Maçãs de Dona Maria, no concelho de Alvaiázere. Voltou para a Figueira a 10 de setembro, a tempo do novo ano letivo. Vivem agora de empréstimo na casa de uma tia. E dessa história até Marcelo já sabe.

No dia em que o que restava da casa foi reduzido a escombros, o Presidente passou por lá, durante uma das visitas que fez ao território, acompanhado do primeiro-ministro, António Costa. Nesse dia, Anabela diz que recebeu dele beijos, abraços e palavras de incentivo. "Ah ele vem cá? A que horas?", quer saber, indecisa entre ir à missa de Pedrógão Grande - onde o Presidente é esperado - ou assistir à inauguração da nova sede da AVIPG, mesmo não tendo sido convidada. Nem ela nem os vizinhos que entretanto se juntam à conversa. Mais tarde, o DN há de saber através da Associação que não houve convites a ninguém porque impõe-se recato, "não fazer alarido". "Não há espírito de Natal. Não há crianças...". Morreram algumas naquele incêndio. Luís, o filho de Nádia Piazza - que agora preside à Associação - ou a pequena Bianca, do Nodeirinho, prima de Anabela (em segundo grau).

O silêncio ensurdecedor

A aldeia [Figueira] não terá agora mais de 30 habitantes. O bulício das obras empresta alguma vida aos campos queimados, onde falta o verde das couves para a consoada. As oliveiras que resistiram também não deram os litros de azeite do costume. Alheia às tradições do interior português, a italiana Matilde Mozzi pinta delicadamente uma das muitas gavetas desenhadas pelo coletivo de arquitetos Warehouse, que ali chegou através do Ateliermob, uma "plataforma multidisciplinar de desenvolvimento de ideias, investigação e projetos nas áreas da arquitetura, design e urbanismo", desafiados pela Fundação Gulbenkian. A jovem arquiteta faz parte do grupo de sete que se mudou entretanto para Figueiró dos Vinhos, para melhor perceber o tempo e o modo como vivem aquelas gentes. "Fazemos sempre questão de trabalhar com a comunidade local. Em projetos destes, só assim é que faz sentido", resume Ricardo Morais, o responsável do grupo, que ali chegou há cerca de um mês com a inevitabilidade de conseguir entregar a obra a tempo da inauguração. Quando lá dentro a rebarbadora se cala, ouve-se no pátio a música cubana de Buena Vista Social Club. Numa aldeia deserta, em que nem pássaros se ouvem, qualquer rasto de vida ganha uma amplitude maior. Ricardo fala de "um silêncio ensurdecedor, durante o dia", mas também de como é gratificante ajudar uma comunidade a renascer das cinzas.

Nos últimos dias, um total de 30 pessoas (entre pedreiros, eletricistas, pintores) trabalharam dia e noite para que a sede esteja pronta a tempo. "A grande preocupação foi tornar o espaço funcional", diz o arquiteto. A ideia da AVIPG é realizar ali ações de formação que preparem os habitantes das aldeias para situações de catástrofe, garantindo também apoio e terapia a quem está em processo de luto ou traumas. Na segunda-feira, diante do Presidente da República, deverão ser assinados vários protocolos entre a AVIPG e outras entidades, tal como a Câmara de Pedrógão Grande (dona do edifício). Quem trabalhou na obra tem indicação de que ali serão criados dois postos de trabalho, a tempo inteiro, e que o espaço deverá ser capaz de acolher ações de formação para 20 pessoas. Mas da parte da AVIPG e da Câmara não há qualquer confirmação. A desinformação vai alimentando as conversas dos populares, que em surdina apontam o dedo "àqueles a quem dão tudo", aos que "viviam tão mal e agora têm uma casa como nunca tiveram", à disputa (entre familiares) do dinheiro das indemnizações, que há de chegar. À hora da bica, os vizinhos juntam-se no café Adega, na Graça, e vaticinam o que farão uns e outros com os apoios financeiros.

Por toda a parte há presépios, em resposta a um desafio lançado pela Associação. No tanque do Nodeirinho (que salvou a vida a quase uma dezena de pessoas), está suspenso também um presépio pintado, da autoria de João Viola, o artista da terra que pintou o presente de Marcelo (ver peça secundária). Vila Facaia, Graça, Figueira, Nodeirinho. Os nomes entraram pela casa dos portugueses em junho, assim como a estrada 236-1, a caminho do IC8, para onde nos encaminhamos. O alcatrão renovado aqui e ali fala pela maioria das 66 vítimas que ali morreram a fugir do fogo, e que segunda-feira justificam a presença do Presidente da República.

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