"O futuro do governo do PS depende dos compromissos que assumiu"
Entrevista a Domingos Abrantes, 80 anos, conselheiro de Estado, comunista e ex-membro do Comité Central e da Comissão Política do PCP
Os 62 anos de militância comunista ensinaram a Domingos Abrantes a saber esperar, a resistir e a acreditar. Apesar de não esconder desilusões, vê com "esperança" o acordo com o PS e a maioria de esquerda
Como se sente em relação ao facto de, como conselheiro de Estado, se sentar à mesma mesa que Adriano Moreira, ministro de Salazar que presidiu a um regime contra o qual combateu grande parte da sua vida?
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
Já me cruzei com o professor Adriano Moreira noutro contexto. Fomos deputados na assembleia durante 10 anos. Cada um está no Conselho de Estado por direito próprio. É um facto que Adriano Moreira foi ministro de um governo fascista, responsável por decisões graves, como foi a reabertura do sinistro campo de concentração do Tarrafal (Cabo Verde), onde foram assassinados 32 presos, ou, como ministro do Ultramar, responsável pela repressão dos povos coloniais. Também nunca morreu de amores pelos comunistas, a quem sempre atacou de forma violenta. Quanto a estarmos juntos no Conselho de Estado, não posso deixar de fazer uma reflexão. No tempo do fascismo, durante o qual ele foi ministro, eu estava na cadeia. Hoje, no Portugal de abril, para o qual ele não contribuiu obviamente, ele pode ser conselheiro de Estado, deputado... resta saber se Adriano Moreira tira alguma conclusão da diferença.
Que expectativa tem em relação a aconselhar Marcelo Rebelo de Sousa? Acha possível dar conselhos ao professor?
(risos) Aconselhar é sempre possível. Aliás, é a função do Conselho de Estado. O problema depois é a recetividade que os conselhos têm na pessoa a quem se destinam. Da minha parte, e do partido que represento, já me contentaria que o Presidente respeitasse e fizesse respeitar a Constituição na sua globalidade. É esse o juramento que faz.
Em que matérias especialmente?
No plano dos direitos, do reforço da democracia, na defesa da independência nacional. Já agora, dado que a posição do PCP sobre a questão da NATO e da UE, foi tão falada quando foi assinado o acordo entre o PCP e o PS é bom lembrar que a Constituição diz com todas as letras que Portugal defende a soberania dos Estados, o entendimento internacional na base da independência dos Estados e defesa da dissolução dos blocos político-militares, que neste momento de resumem à Nato. Não nos podemos esquecer que a Nato passou uma certidão de democracia ao fascismo, quando Portugal, com uma ditadura, foi um dos países fundadores. Isso teve um custo enorme para o povo português.
Marcelo será compreensivo com a maioria de esquerda?
Não estou a ver este Presidente, com o percurso que tem, a facilitar a esquerda. Penso que atuará, face a este entendimento de esquerda e a este governo, em função do quadro político que tiver e dos seus próprios projetos. Claro que havendo estabilidade governativa torna-se mais difícil ao presidente - a não ser que queira intencionalmente afrontar - qualquer outra atitude que não seja gerir o quadro que tem.
Que prazo dá à aliança com o PS?
O futuro do governo do PS depende dos compromissos que assumiu. A bola está no campo do PS. O que queremos é um governo estável, na base de políticas concretas. Iniciou-se uma nova fase, com ganhos reais, criando uma esperança. Desde há muitos anos que procurávamos um entendimento com o PS. Antes e depois do 25 de abril. E sempre vimos esse entendimento como uma questão básica para assegurar uma democracia sólida, desenvolvida e progressista. A diferença é que nós sempre nos mantivemos fieis a este objetivo e o lado contrário privilegiou as alianças com a direita.
Agora a personalidade de António Costa foi decisiva?
Ainda que não seja despicienda, houve outros fatores decisivos. Primeiro porque veio na linha do nosso objetivo fulcral, que era derrotar a direita. Depois, lançamos aquela posição criativa que foi dizer que o PS só não formava governo se não quisesse. Isto não é uma coisa que pese pouco. As condições institucionais estavam criadas e era só uma questão de vontade política. A responsabilidade de haver um governo de direita era apenas do PS. António Costa teve aqui o mérito de saber agarrar a oportunidade de não o permitir. Criou-se um quadro novo. Foi restituída à assembleia a sua função. As eleições são para eleger deputados. Até é antidemocrático dizer que se tem direito a governar quando se está em minoria na assembleia. Ficar em primeiro não dá direito a governar. Foi o fim desse mito. A democracia portuguesa só ganhou com este novo quadro.
E este orçamento de 2016, ainda com muita austeridade, é confortável para o PCP aprovar?
Não seria obviamente o nosso orçamento. Mas a questão não está na austeridade, está sobre quem ela recai. Nos anos 80, Álvaro Cunhal disse que um país com dificuldades e atrasos como o nosso não pode recuperar sem austeridade. O problema é quem ela atinge mais. Até aqui foi sempre a machadar nos mesmos e agora houve uma inversão. Há aí quem diga que foi dar a uns e tirar a outros. Mas esse é que é o bom princípio. Vivemos numa sociedade com desigualdades tremendas, com níveis de consumo desiguais. Não deixo de dormir se me disserem que vão tirar aos grandes lucros, às grandes fortunas. Até me ajuda a dormir melhor. Admito que uma pessoa que gasta milhões em consumos obscenos, injustificados, que não possa comprar um iate, considere que entrou em austeridade (risos). Mas eu penso mais na austeridade daqueles que não comem, não têm emprego.
Jerónimo de Sousa mostrou bastante cansaço físico na campanha das legislativas, mas foi o protagonista do acordo histórico com o PS. É ele que decide se fica ou sai no próximo congresso?
No nosso partido nada depende de uma só pessoa. É evidente que a sua opinião é tida em conta. Cada um faz a sua avaliação de si. Quando saí da direção do partido, foi porque pensei que ia perdendo energias, criatividade e entendi que tinha de dar lugar a outros. Cada um deve saber qual é o momento e deve fazê-lo enquanto tem capacidade para isso. Mas a avaliação do coletivo é fundamental. Tudo será avaliado num quadro global, de análise das tarefas, do percurso....
E qual é a sua avaliação?
Cumpriu bem a sua tarefa, ganhou autoridade por mérito próprio e acho que está bem.
O acordo com o PS depende dele?
A decisão foi aprovada por todos os órgãos do partido. O congresso avaliará também essa decisão, como base nas contas que lhe vão ser prestadas pelo comité central.
São possíveis acordos com o PS para as autárquicas de 2017?
Já houve para a Câmara de Lisboa. Sempre estivemos disponíveis para compromissos com o PS, como já referi antes.
Como antevê o futuro do PCP, tendo em conta a perda de eleitorado e o crescimento do BE? Está condenado a desaparecer?
Esse vaticínio já foi repetido vezes sem conta. Quando o PCP perde votos dizem-nos que a sua morte é certa quando as outras forças perdem votos isso parece que é quase um atestado de vida eterna. Em 2014, nas eleições europeias, com a mesma candidata das presidenciais, o BE perdeu metade do eleitorado. Nas últimas legislativas o PSD e o CDS perderam mais de setecentos mil votos. Vamos concluir que estão a desaparecer? A nossa existência não se resume a atos eleitorais. É um partido que pensa nos seus projetos, nos seus valores, nos objetivos pelos quais há muitos anos luta e dos quais não abdica. É por isso que nós existimos e outros deixaram de existir. Já ouvi muitos comentadores a dizer em várias ocasiões "agora é que vai morrer" e que "vai desaparecer"... Isso é mato. Mas como não puseram naftalina nas certidões de óbito, os bichos já as comeram. Em 1934 o fascismo declarou solenemente que tinha liquidado o PCP. Somos um partido que tem uma raiz própria. Enquanto houver trabalhadores haverá comunistas.
E o PCP está preparado para uma política em que a imagem e a comunicação contam tanto?
No dia em que este partido começar a sobrepor a imagem aos conteúdos, aos seus valores, não tem futuro. Uma das degradações da vida política é a ideia que a imagem vale mais que as ideias concretas.
Mas a faixa etária dos militantes do PCP continua elevada...
O PCP tem muitos militantes jovens e a o seu peso no todo do partido tem vindo a crescer. Isto já não é o partido da velhada, como diziam. Somos um partido que tem gente que "nasceu" e vai morrer comunista. Os novos militantes jovens estão a equilibrar a média etária. Vamos continuar por cá ainda durante muitas gerações. Firmes e sempre a resistir.