"O conceito de pizza mudou. Já não é fast food, pode até ser gourmet"

Almoço com José Bartolomé Duarte, Mercantina
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Tomate San Marzano, mozzarella de búfala e massa trabalhada à mão, aberta à estalada e levedada 24 a 48 horas para depois de coroada com ingredientes frescos ser cozida em 60 a 90 segundos sobre pedra do Vesúvio a 400/450 graus. Não escrevo um artigo de culinária. Trata-se antes da descrição abreviada da complexa arte de fazer uma pizza napolitana - tornada património imaterial da humanidade pela Unesco em dezembro. É essa "estrela Michelin da pizza", como já foi descrita, que me leva à Mercantina de Alvalade, primeiro restaurante de Lisboa certificado na produção de pizza napolitana. "Somos membros da Associazione Verace Pizza Napoletana, o nosso número é o 482 do mundo, aqui em Alvalade", concretiza José Bartolomé Duarte, que me convidou para a sua mesa numa das duas Mercantina - a primeira estreada em novembro de 2013, a segunda, aberta há três anos, no Chiado - e me explica os processos e rigores decorrentes da certificação e que incluem formação à medida e na origem. "O nosso mestre pizzaiolo Diogo Coimbra passou seis meses em formação em Itália e continua a ir lá, nesta busca contínua de conhecimento, evolução de processos e rigor. Porque nós nunca nos contentamos com o que temos."

Para o nosso almoço, escolheu alguns dos melhores exemplos do que sai da cozinha do chef consultor genovês Giorgio Damasio, a começar por uma mozzarella de búfala DOP, "que vem da Campania todas as semanas e é feita com leite desse animal, mais doce que o de vaca, pelo que contrasta na perfeição com a acidez do tomate San Marzano". A acompanhar, água, um tinto Mercantina produzido em Setúbal e um sumo de laranja que me estranha - explica-me que raramente o dispensa, quando feito ao momento; mas há de acompanhar-me no vinho, trazido pelo incansável senhor Mário - que ali chegou há três anos, depois de 30 na Biarritz. "É uma máquina! Já não há mais senhores Mários", elogia José.

Conta-me como o projeto - "não é conjunto de restaurantes, é uma marca e tratamo-la com essa preocupação" - nasceu de uma ideiazinha na sua cabeça e na do sócio na agência de comunicação que abriu há 18 anos (hoje lideram a ADBD e a Bulldog). "Juntámo-nos, eu, o António Sousa Duarte e o Paulo Antunes e decidimos criar a Mercantina. E fomos pioneiros, porque há cinco anos pouco havia aqui em Alvalade - hoje é um bairro muito fashion e cada vez mais cadeias vêm para cá." A escolha teve tanto de estratégico - a localização, numa esquina do centro comercial aberta para o largo e a deixar entrar a Avenida de Roma, é excecional - quanto de sentimental (José viveu muitos anos naquele bairro) e de prático, já que os escritórios ficam ali nas torres. O que facilita a concretização de uma exigência dos sócios: comer diariamente nos seus restaurantes para garantir que tudo está ao melhor nível.

"Em fevereiro, Ferran Adrià deu uma entrevista em que disse que a qualidade era o futuro da gastronomia. Eu concordo. E isso passa pela qualidade dos ingredientes, dos produtos e pela capacidade de nos reinventarmos e transformarmos naquilo que o mercado quer, com exigência crescente. O nosso chef executivo traduz isto na ideia de que o difícil é fazer simples, é chamar a genuinidade da cozinha com muito sabor, com qualidade no empratamento, com a captação dos sentidos." Foi esta a fórmula que esteve na origem da criação do que descreve não como uma pizzaria - que de facto não é - mas como um restaurante italiano, de cozinha mediterrânica, que ganhou o nome pela criatividade da desaparecida amiga Leonor Moutinho, designer - que assim o batizou com uma palavra criada da junção de mercado - evocando a origem dos produtos frescos - e cantina, espaço de partilha. O que justifica também o lema da casa: cucina per amici.

Conforme os pratos se vão esvaziando da muito saborosa mozzarella di bufala D.O.P della Campania e Provola affumicata di latte di bufala D.O.P con prosciutto di Parma, rucola e pomodorini , vai-me explicando que a qualidade é realmente a marca da Mercantina e exemplifica com a pizza. "A massa é toda trabalhada à mão - só tem intervenção de uma máquina numa primeira fase, e trata-se de uma máquina especial, que veio de Itália e tem uns braços tipo elefante, que não a deixa aquecer um grau. Porque fazer pizza é quase uma ciência, qualquer oscilação na temperatura ou na humidade faz variar o resultado. É por isso que temos um laboratório no Chiado onde testamos todos os processos, a cada momento. O conceito de pizza mudou, já não é fast food, hoje até pode ser gourmet. E é aqui que nasce este novo desafio, que implica muita técnica - razão pela qual os nossos pizzaiolos (são já uma dúzia) têm no mínimo seis meses de formação em Itália."

José fala do assunto como quem nunca fez outra coisa na vida, mas o percurso que leva na bagagem nada tem que ver - antes de abrir o Populi, primeiro restaurante do grupo, ali no Terreiro do Paço, nunca olhara para este negócio. Estudou no Liceu Camões - donde guarda ainda o rigor e a exigência que se lhe imprimiram no espírito -, passou três anos no Técnico, mas diz que nunca seria um bom engenheiro e a noção disso fê-lo sair, ainda que já tivesse 25 cadeiras feitas. Virou-se então para a sua verdadeira vocação, a Gestão, área em que se licenciou antes de completar uma pós-graduação em mercados e ativos financeiros no ISCTE. Hoje, a par dos restaurantes e das agências, dá aulas de áreas como a assessoria mediática ou o marketing político há 12 anos na Universidade Europeia e no IADE desde o último. "A minha vida é andar a correr de um lado para o outro, mas tenho paixão por tudo o que faço", resume. "Sou sobretudo um empreendedor", confessa, e diz que é a empreender que se encontra, razão pela qual não tem problemas com o risco - o que ajudou no momento de abrir a Mercantina, em plena crise económica. "O risco obriga-nos a sermos melhores e dá um certo gozo sermos capazes de melhorar sempre a nossa forma de ser e de estar."

Propõe que prossigamos a conversa com uma pizza Dalla Terra (que leva creme de trufa branca, bresaola, mozzarella, cogumelos, rúcula e parmesão lascado) e, aceite a sugestão, conta-me que tem também o brevet e até chegou a pilotar aviões comerciais numa altura da sua vida. A paixão, que lhe vem dos tempos de miúdo, mantém-se, mas afastou-se dos comandos, ainda que continue a gostar de identificar todos quantos passam ali à beira da sua janela, a caminho do aeroporto.

O timing é cumprido: poucos minutos depois do pedido chega-nos o aroma do óleo de trufa branca a anunciar a pizza. Recorda-me que aquela massa levedou 24 a 48 horas antes de se fazer pizza - "porque não pode levedar no estômago, se não enfarta" - e chama o chef pizzaiolo Diogo Coimbra para contar mais sobre a sua arte, os ingredientes que usa, as exigências da técnica. Quando saboreio aquela explosão de sabores, já aprendi que a massa fez duas fermentações, com um período de repouso entre elas para não entrar em stress, que não tem gordura nenhuma (é apenas "água, fermento, farinha, sal e paixão"), que foi aberta por processo de estalada para levar o ar do centro para as bordas e tirar o excesso de farinha, cozida em lenha de sobro sobre pedra do Vesúvio. O forno de três toneladas de onde saiu é um topo de gama criado pelas mãos (literalmente) de Stefano Ferrara, uma das famílias mais respeitadas de Nápoles, e foi preciso uma grua para o trazer para dentro da Mercantina. A farinha é Caputo, uma das melhores do mundo, o tomate San Marzano, cultivado em Salerno, Nápoles e Avelino.

A verdade é que tem um sabor diferente de uma pizza comum. José explica que não entra ali nenhum fornecedor que não passe por testes. No laboratório que criou na Mercantina do Chiado - se o restaurante de Alvalade está mais virado para o bairro, para as famílias, o da Rua da Misericórdia ganha em cosmopolitismo e turistas -, faz os testes, as experiências e arrisca criar novos desafios na carta para responder às novas tendências. O que inclui os pratos vegetarianos que ali surgem, ao lado das pizzas, das massas frescas (feitas no laboratório) e secas (da marca De Cecco), dos hambúrgueres, da carne e do peixe. Faz sentido ter tanta variedade? Não duvida que sim: "Somos um restaurante onde vem toda a família, dos avós aos netos, e temos de garantir que temos o que cada um quer, com toda a qualidade que exigimos."

Conforme a maravilhosa pizza se vai, sugere-me experimentar um dos meus pratos italianos de eleição, ravioli di ricotta, spinaci e noci al pomodoro e basílico, que me garante serem especiais quando saídos das mãos competentíssimas do chef Nataniel. Enquanto o prato é preparado, diz-me com incrível clareza de espírito que a restauração em Portugal sofreu uma profunda alteração, transformou-se profundamente, modernizou-se. "Já não é das cozinhas com homens barrigudos de lápis atrás da orelha, é tudo muitíssimo profissional e com uma gestão a sério. Só assim é que este negócio funciona, com muito rigor, exigência e uma enorme capacidade de inovação, criatividade e comunicação. Mas no fim de contas, o que realmente faz a diferença é o prato estar perfeito."

Se há defeito a apontar ao prato que o chef Nataniel Silva entretanto pousou na mesa é muito simplesmente ser capaz de estragar outros ravioli por comparação. Da consistência da massa ao sabor do ricota, que se esfuma para dar lugar ao intenso paladar do tomate e do manjericão frescos, sente-se cada ingrediente à vez e depois todos em conjunto num final delicioso. O chef vai-me contando que idealizou os pratos vegetarianos para serem puros e por isso decidiu brincar com os best-sellers risottos , fazendo nascer quinottos (à base de quinoa) e orzottos (base de cevada) pouco famosos por cá mas já a ganhar protagonismo em Itália. Depois há ervilhas que fazem pesto, conservas caseiras que substituem a cremosidade de manteiga e queijo, frutos secos e legumes grelhados juntos a soja e tofu para dar aos hambúrgueres vegetarianos a cor certa e o sabor a grelha. E no laboratório já se trabalha novas massas integrais e sem glúten.

É talvez esta vontade de responder a qualquer desejo dos clientes com a exigência requerida numa casa com certificação napolitana que faz da Mercantina um caso de sucesso. "Tem sido imensamente gratificante para nós receber as opiniões que vemos no Tripadvisor. E ver que as pessoas gostam de aqui vir e repetem. Frequentemente temos estrangeiros que queriam levar-nos para a Alemanha, para a Polónia, para Inglaterra." Para José Bartolomé Duarte esse não é um projeto para pensar, pelo menos por enquanto - gosta de "seguir step by step." O que não implica que não esteja já a pensar em novos passos, conforme me confidencia depois de me tentar com uma fatia do que diz ser o melhor tiramisu de Lisboa.

"A Mercantina é uma marca umbrela que deve dar origem a novos e desafiadores projetos", explica, antes de revelar que já decidiu onde vão abrir as portas do terceiro restaurante: na Avenida da República. "Depois da Avenida da Liberdade, é a mais importante de Lisboa e ganhou nova vida com estas obras. Vamos estar mesmo no centro e com uma casa que não será igual às que já existem." De que forma fará a diferença? Levanta apenas uma parte do véu. "Temos um gosto enorme pela arte, pelos processos criativos - nós próprios os temos aqui - e há já alguns anos que eu, sempre que posso, vou a leilões. Esta nova casa terá uma ligação especial ao surrealismo. Queremos fazer esse tributo. De que forma não posso contar ainda."

Enquanto avançamos no doce e eu peço café - José preferiria chá, ou um whisky e um charuto mas ali não se pode fumar e o momento não é de introspeção - diz-me que o tempo passa demasiado depressa: "Ainda ontem a minha filha nasceu e já tem 20 anos e está no terceiro ano de Medicina!" Quanto aos seus próprios alunos, um misto de exigência e abertura - "dar aulas é também passar a minha experiência, não é só despejar matéria, é preciso transmitir o que é a vida cá fora - garante-lhe a cumplicidade deles e muitos continuam a cumprimentá-lo anos depois de deixarem de o ser.

Define-se como um irrequieto mental e adora livros de ficção científica - talvez esteja à frente do seu tempo. Antes de nos despedirmos, conta-me que construir projetos e mantê-los é do que mais gozo lhe dá. Talvez na mesma medida que viajar. Filho de mãe espanhola e pai português - em cujas fábricas estreou os seus dotes de gestão -, diz que o salero lhe vem no sangue e Madrid uma das suas cidades preferidas. "Mas falta-lhe este nosso rio, tão extraordinário."

Mercantina

Água

Sumo de laranja

Tinto Mercantina

Mozzarella de bufala

Pizza dalla Terra

Ravioli di ricota, spinaci e noci

Classico Tiramisú

Cafés

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