Neill Lochery: "Salazar e Sócrates são parecidos nas origens"

Ao terceiro volume sobre a História de Portugal, Neill Lochery chega à atualidade possível. E polémica.
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O historiador escocês Neill Lochery é um "fã" de Portugal e da sua história contemporânea. Lançou recentemente o terceiro volume dos seus estudos sobre o Portugal do Estado Novo a partir da II Guerra Mundial, o da democracia e até ao ano de 2016. Uma investigação fora do comum, pois a maioria dos historiadores gosta de deixar os factos mais próximo a amadurecer. Lochery não o fez porque considera que para os leitores internacionais ficaria uma lacuna sobre um processo de que muito ouviram falar, o que aconteceu a Portugal com a crise de 2007 e o resgate da troika. Mesmo que, diz, muitas situações estejam por resolver, como é o escândalo do BES.

Neill Lochery não deixa de caracterizar Portugal como "um país estranho", porque falha a nível coletivo mas "tem indivíduos que atingem um sucesso enorme a nível internacional". É o caso de desportistas como Ronaldo e Mourinho, o cineasta Manoel de Oliveira, a pintora Paula Rego ou os arquitetos Álvaro Siza e Souto de Moura.

Quando se lhe pergunta porque insiste em investigar a história de Portugal, Lochery resume a razão em poucas palavras: "Sou fascinado pelo país." Acrescenta que começou por escrever sobre a II Guerra Mundial e a relação com o Estado Novo: "Foi interessante porque precisei de conhecer a personalidade de Salazar." Não se ficou por aí: "Passei muito tempo a ver documentos nos arquivos de Portugal, Estados Unidos e Reino Unido para escrever sobre um período específico [Lisboa 1939-1945 - A Guerra nas Sombras da Cidade da Luz]. Como ficou muito por dizer, seguiu-se outra época que me interessava bastante [Lisboa: A Cidade Vista de Fora 1933-1974]."

Apesar de já ter um trio de volumes sobre a história nacional, Neill Lochery ainda mantém interesse no Estado Novo: "Ainda quero voltar à vossa história, seja com um trabalho profundo sobre Salazar e a sua relação com o mundo seja outro sobre o início da República, pois não se pode perceber o Estado Novo sem compreender o período que o antecede." Não deixa de alertar para um facto mais pessoal que o motiva: "Vivi no país por algum tempo nos anos 1980 e assisti a muita coisa. Também percebi que havia algum desconforto dos portugueses em falar sobre estes assuntos pós-revolução."

Foi fácil investigar a nossa história?

Sim, porque tive a sorte de obter documentação que não esperava poder consultar nos arquivos ingleses. Escrevi uma biografia de Benjamin Netanyahu e pedi para ver os arquivos britânicos e nem um papel me foi dado a ver, mas sobre Portugal essa disponibilidade aconteceu com todos os documentos pós-1974 que me interessavam. O mesmo verificou-se nos arquivos dos EUA, o que me deu o suficiente para compreender muito bem o processo.

Haverá documentos por consultar que possam alterar a sua visão histórica?

Creio que não, pois fiz uma análise exaustiva aos Relatórios Anuais que os embaixadores produzem, em que sumarizam todos os tópicos importantes. Se houvesse algo fundamental, teria descoberto. Nem que fosse uma breve anotação que não revelando tudo, deixaria uma pista que me faria desconfiar.

Há diferenças quanto ao que já se fez?

Decidi escrever com o olhar exterior porque todos os relatos que existem sobre a Revolução de 1974 são muito centrados na importância que teve para o país, ignorando a perspetiva internacional. O facto de o 25 de Abril ter acontecido no pico da Guerra Fria, quando os EUA estavam a perder a guerra do Vietname e eram paranoicos sobre a NATO e a Europa do Leste. Por isso, veem a revolução não como mudança democrática mas uma tensa caminhada para o comunismo.

Nem acreditavam em Mário Soares?

Desde o princípio, porque Kissinger pensava que não seria o líder que conduziria o país para a democracia. Percebe-se a exatidão dessa opinião ao ler-se os documentos americanos, apesar de serem muito esquivos. Além de que precisaram de agir muito depressa porque foram apanhados de surpresa e o ano de 1975 era fundamental.

Nem o livro de Spínola os alertou?

Levaram o livro [Portugal e o Futuro] a sério, mas sem fazer a correlação necessária. Também havia outros fatores internacionais que perturbavam o entendimento, o embargo petrolífero.

O mesmo aconteceu aos soviéticos?

A minha opinião é de que os soviéticos estavam pouco interessados no processo português, era antes uma espécie de moeda de troca com os EUA e não estavam dispostos a pagar o preço. Repito, há um pormenor a que os portugueses não dão importância que é o facto de fazerem parte de um jogo estratégico muito maior a nível mundial.

Porque existe essa subvalorização?

Os portugueses tem o hábito de quando acontece uma mudança política deitarem fora tudo o que fez parte do regime anterior. O mesmo aconteceu com o Estado Novo e novamente com a democracia: só ligaram o botão de reset.

Mas refere que a elite manteve-se...

Existe uma pequena elite que foi posta de parte inicialmente: o caso do Banco Espírito Santo, que foi nacionalizado mas rapidamente os proprietários voltaram ao país para exercer atividade. Ou com Champalimaud, pois basta ver a dimensão da herança quando se fez a sua fundação. Houve mudanças na elite, mas as velhas famílias sobreviveram e reinventaram-se.

Nada mudou nestes 43 anos?...

Fico sempre nervoso com a palavra nada. Prefiro quase nada.

Não seria preciso uma revolução para chegar ao ponto em que estamos?

Existe sempre a questão de quais poderiam ter sido as grandes alterações após a morte de Salazar. Principalmente porque de 1968 a 1974 vai um grande período de tempo e poucas reformas aconteceram. O importante da revolução é também perceber como a questão da descolonização poderia ter sido diferente se o golpe não tivesse existido.

Poderia ser um processo diferente?

As descolonizações são sempre um problema. Mostrem-me um bom exemplo? Estranho é o facto da grande falta de afeto para com os retornados quando estes regressaram de uma forma complicada. Um distanciamento incompreensível num tempo em que a democracia emergia, diga-se.

Não quis depoimentos de figuras representativas dessa época. Porquê?

É uma questão metodológica. Como estrangeiro vê-se que é melhor ler a documentação ou falar com as pessoas de forma informal, porque é muito fácil ser-se enganado num país pequeno e onde todos se conhecem ou têm relações familiares.

É fácil fazer história tão perto dos acontecimentos históricos?

Foi ficando cada vez mais difícil conforme me aproximava da crise de 2007. Estive cá nessa altura e ouvi Sócrates fazer o discurso final, bem como os protestos junto ao Parlamento - mesmo que a maioria das pessoas calassem muitos dos seus sentimentos. No entanto, algumas das histórias do livro ainda não tivera fim: o caso BES, Sócrates e o fim definitivo da própria crise.

Faz por duas vezes analogias entre Salazar e Sócrates, uma das quais a de não serem produto das elites de Lisboa e do Porto. O que os une ou separa?

É verdade, ambos são outsiders dessas elites. Não sei se um e outro são comparáveis, mas considero ser possível dizer que Salazar e Sócrates são parecidos nas suas origens quando se olha sob essa perspetiva do outsider e do seu passado. Salazar vinha de perto de Santa Comba Dão e Sócrates da Covilhã; ambos são governantes que não fazem parte da elite lisboeta e acho que isso é um fator importante. Noutros termos não serão comparáveis, pois creio que nunca ninguém processou Salazar.

Enquanto políticos podem ser feitas comparações entre Salazar e Sócrates?

Sim, esse é um lado em que se pode trabalhar a nível histórico. Politicamente, são muito diferentes, mas ao governarem um Portugal muito centrado em Lisboa é bastante curioso ver que posições adotam e de como se adaptam ou não ao sistema. Tanto Salazar como Sócrates tiveram de enfrentar as elites de Lisboa para chegar ao poder, mesmo que aí se observe uma diferença, porque Salazar permaneceu muito mais fora do sistema. Até nos seus tempos livres optava por regressar ao Vimieiro para passar lá os fins de semana e as férias e voltar às suas raízes.

E namorar com Christine Garnier!

Que é uma situação é tão fascinante como desastrosa, porque ele era um homem triste e com emoções a preencher. Tenho curiosidade em saber até onde foi essa história, porque creio que eles foram muito longe na relação, mas desconhece-se quanto.

Refere Durão Barroso e o facto de aceitar participar na cimeira dos Açores sobre o Iraque por autopromoção...

Essa cimeira é um momento muito estranho da história, acidental na escolha do lugar porque não creio que houvesse uma conspiração para envolver Portugal - era mais fácil encontrarem-se ali, a meio caminho de casa. No entanto, teve repercussões para o país e Durão ficou muito mais conhecido entre os líderes internacionais à conta.

E estava interessado nessa situação?

Com certeza, o crescimento da figura internacional de Durão Barroso dá-se a partir desse exato momento.

Considera que os ingleses ficam muito satisfeitos com a vitória de Cavaco Silva nas presidenciais. Porquê?

Os ingleses sempre gostaram dele desde o tempo de primeiro-ministro, por ser uma força de estabilidade.

De Sócrates comenta que se comportava como uma estrela de cinema...

Ele tinha muito carisma - esqueçamos as políticas -, como comprovei nos arquivos das fotos oficiais das cimeiras europeias. Está sempre bem colocado na foto final e nas que retratam a preparação do momento vê-se que Sócrates anda sempre a sorrir, é popular e não ficava lá atrás, o lugar do líder da nação menos importante. Voava além do seu peso.

Muito do livro é sobre o Portugal após 2000. É fácil ser imparcial nos juízos?

Ninguém pode dizer que é completamente imparcial, isso não existe. Tentei ser o mais possível, pois não tenho sentimentos em relação ao PS ou ao PSD, nem sou pró ou contra os primeiros--ministros ou presidentes da República. Queria chegar o mais perto possível da atualidade porque os leitores internacionais não compreenderiam que ficasse lá atrás. Portugal é mais conhecido por causa do resgate e teria sido estúpido evitá-lo no livro.

Acha que os historiadores portugueses têm feito o seu trabalho?

Creio que sim, e tive o trabalho facilitado devido ao já estudado por muitos historiadores portugueses. É preciso não esquecer que a democracia só tem 43 anos e há grandes divergências de opinião ainda, o que torna um ótimo campo para historiadores mais novos.

Pode dizer-se que é quase um historiador português?

Ora aí está um bom epitáfio para a minha campa: "Quase um historiador português."

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