Moscovo irrita Berlim após quatro vitórias de Guterres
As votações informais para a escolha do secretário-geral da ONU serviam para eliminar candidatos. Mas após quatro vitórias de António Guterres e com dez dos 12 nomes ainda na corrida, Rússia e Alemanha trocam acusações sobre uma candidatura-surpresa nesta fase do processo. O caldo entre as duas potências europeias entornou-se ontem, com Berlim a acusar Moscovo de "espalhar informações que são objetivamente falsas" e de ter tido um gesto "hostil" ao afirmar, no fim de semana, por uma porta-voz da diplomacia russa, que a chanceler Angela Merkel procurou apoios (à margem da recente reunião do G20 na China) para uma candidatura de última hora da vice-presidente búlgara da Comissão Europeia, Kristalina Giorgieva - que o presidente russo Vladimir Putin rejeitou, declarando "inaceitável qualquer tentativa direta ou indireta de influenciar a Bulgária" para deixar cair a sua candidata oficial, Irina Bukova.
Esta posição russa está a ser vista na imprensa internacional como um veto antecipado a Giorgieva.
Com o governo búlgaro a reunir-se hoje - dia em que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, chega a Sofia a fim de participar numa reunião do Grupo de Arraiolos - para decidir se apoia Kristalina Giorgieva (da mesma família política de centro-direita, ao contrário de Irina Bulkova), aquela troca de galhardetes e as notícias dos últimos dias sobre o aparecimento de uma candidata-surpresa surgiram após a quarta votação secreta do Conselho de Segurança da ONU, sexta-feira, que voltou a dar nova vitória a António Guterres.
A candidatura de Giorgieva também poderá avançar, segundo algumas notícias, sob proposta conjunta da Hungria (liderada por quem é visto como "demagógico, xenófobo e autoritário"), Letónia e Croácia e o apoio da Alemanha.
Mónica Ferro, especialista em assuntos das Nações Unidas, disse ontem ao DN que as notícias e a eventual confirmação de uma candidatura-surpresa a secretário-geral "põem em causa quase tudo" o que levou a ONU a optar por um processo de escolha e seleção "competitivo, transparente e responsabilizável". Ainda por cima, lamentou a professora universitária e ex-deputada, "sem haver razão, porque" - à luz dos resultados das votações já realizadas - "não há um bloqueio ou um impasse" entre os candidatos existentes e a de Guterres "mostra uma adesão muito forte, que foi reforçada" na sexta-feira.
Outra questão que se coloca com o aparente apoio alemão a Giorgieva quando há países da UE com candidatos próprios é interna a Bruxelas. "A ser verdade, mostra uma grande fragilidade na coordenação do que deveria ser uma área importante da diplomacia europeia", frisa Mónica Ferro. Se as duas primeiras votações levaram à desistência de dois dos 12 candidatos, as duas seguintes não produziram o efeito esperado e que justificou a adoção desse modelo de eleição: é que mais ninguém desistiu, mesmo quem teve 12 votos negativos em 15.
Com Bruxelas a considerar "especulação" as notícias sobre o assunto e o chefe da diplomacia russa a reunir-se ontem com o embaixador búlgaro em Moscovo, com quem falou de "diversos aspetos da ONU", voltaram a surgir na imprensa referências ao alegado apoio de Durão Barroso a Giorgieva numa reunião do grupo de Bilderberg em junho - desmentidas na altura pelo ex-presidente da Comissão Europeia.
Críticas de Seixas da Costa
O embaixador Francisco Seixas da Costa insurgiu-se ontem contra "o papel que setores do Partido Popular Europeu [centro-direita] estão a desenvolver" contra a candidatura de Guterres, tentando criar condições" para que Kristalina Georgieva "surja rapidamente na liça".
Sabia-se, refere o embaixador no seu blog Duas ou Três Coisas, do papel do PPE para levar Georgieva a Bielderberg e foi também "claro" que Jean-Claude Juncker tentou "promover a búlgara junto dos russos, ao tê-la levado consigo a Moscovo, num contexto sem sentido". Mais recentemente, recorda, o chefe de gabinete da Comissão Europeia declarou na sua conta oficial nas redes sociais o forte desejo de ver Georgieva na ONU.
"Last but not least, sabe-se agora da campanha desenvolvida por Angela Merkel, durante o recente G20 na China, no sentido de tentar criar uma onda de fundo em favor da ainda comissária, por forma a conseguir travar Guterres", afirma ainda Seixas da Costa no seu blog.
Em jeito de desafio, o embaixador refere ainda que "era muito importante que, em Portugal, o PSD, além de dar conta da sua indignação sobre as limitações à ação empresarial de Durão Barroso nos corredores da Comissão Europeia, também expressasse publicamente o repúdio ativo a estas manobras desenvolvidas contra o candidato português, e que formalmente apoiou".
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