Lei das heranças deve ter revisão "mais abrangente"

Pareceres à proposta do PS, que abre a porta à renúncia dos cônjuges à herança, defendem que a lei devia ter mudanças mais profundas

O projeto de lei do PS que permitirá a renúncia dos cônjuges à herança, por acordo feito em convenção antenupcial, peca por escasso. Esta é a perspetiva que atravessa os três pareceres à proposta socialista que chegaram à Assembleia da República e que, de forma unânime, põem em cima da mesa a possibilidade - ou mesmo a necessidade - de uma revisão mais alargada do direito das sucessões (que define quem é chamado a receber herança e em que proporção).

Conselho Superior da Magistratura, Ordem dos Notários e Instituto dos Registos e do Notariado (IRN) assumem posições diferentes sobre o projeto em si, mas todos destacam o facto de a atual lei contar já quatro décadas sem alterações. E sublinham as críticas que tem merecido, nomeadamente de juristas especializados nesta área.

"O estatuto sucessório do cônjuge sobrevivo, que tem sido, aliás, objeto de inúmeras críticas por parte dos juristas, deve ser (re)pensado como um todo, de forma mais abrangente, eventualmente não desconsiderando uma maior autonomia da vontade" e "considerando a evolução que a sociedade, a figura do casamento e o conceito de família têm sofrido em Portugal", refere o parecer do IRN (o mais crítico do projeto do PS). Já a Ordem dos Notários defende que a proposta socialista é "um passo no caminho certo", mas "deveria ser mais abrangente". "Por aquilo que testemunhamos diariamente nos cartórios parece-nos importante legislar sobre a possibilidade de se dispor do património de modo diferente daquele que a lei permite, bem como equacionar a alteração do fenómeno sucessório em geral", sustenta o documento.

Já o Conselho Superior da Magistratura não vai tão longe, mas sublinha que "as dúvidas sobre o regime aprovado em 1977 não são novas e ganham especial e renovado vigor com este projeto de lei".

Cônjuge: herdeiro privilegiado

O projeto do PS prevê que os cônjuges que se casem com regime de separação de bens possam renunciar à qualidade de herdeiro do outro, como forma de proteger filhos de anteriores casamentos que, com um novo matrimónio, perdem o direito a boa parte da herança. Um cenário que não é permitido pela atual legislação: a lei determina que os dois membros do casal são herdeiros um do outro, não permitindo a renúncia prévia. O regime de bens escolhido pelo casal para vigorar no matrimónio (separação de bens, comunhão geral ou comunhão de adquiridos) não altera este quadro, dado que tem qualquer incidência sobre a herança.

À cabeça dos herdeiros estão precisamente os cônjuges, os filhos e os pais do falecido, os chamados herdeiros legitimários - a quem cabe uma parte significativa da herança, que pode chegar aos dois terços. O próprio titular do património não pode determinar, em vida, uma distribuição diferente - a quota atribuída aos herdeiros legitimários não pode ser alterada por testamento. E só em circunstâncias muito excecionais (por exemplo, ter cometido crime doloso contra o autor da sucessão) estes podem ser deserdados.

As normas do direito sucessório que vigoram atualmente foram inscritas no Código Civil em 1977, altura em que o cônjuge sobrevivo ganhou preponderância como herdeiro - sobretudo para proteger as viúvas sem independência financeira, à altura em número muito relevante e que ficavam desprotegidas à luz da lei anterior. Desde então o regime sucessório não voltou a sofrer alterações. Diz a Ordem dos Notários: "Quando já passaram mais de quatro décadas sobre a última alteração às classes sucessíveis é nosso entendimento que será absolutamente necessário reabrir a discussão sobre esta matéria, pois a realidade social não é estanque". O parecer avança um exemplo de uma situação problemática, neste caso até em desfavor do cônjuge - quando, na ausência de filhos, são chamados a receber herança o cônjuge e os pais do falecido, e sendo aquela apenas a morada de família, "a/o viúva/o é muitas vezes obrigada a alienar a sua casa ou contrair um empréstimo para poder pagar a parte que cabe ao progenitor do falecido".

Uma revisão "mais profunda"

Rui Alves Pereira, sócio coordenador da área de clientes privados (família e sucessões) da JPAB - José Pedro Aguiar- Branco Advogados, concorda que "está na hora de legislar com uma amplitude mais estruturante" em vez de insistir "numa forma de "legislar aos pedaços", em que apenas nos direcionamos para uma certa realidade social" (no caso para segundos casamentos já com filhos e apenas quanto ao regime de separação de bens)". "Acho que devíamos ponderar de uma forma mais profunda o instituto das sucessões e em toda a sua dimensão. Já se justificava", diz o advogado ao DN. Quanto ao projeto entregue no parlamento pelo PS, Rui Alves Pereira diz não ver razão para que a renúncia reciproca à qualidade de herdeiro legal se limite aos casamentos em regime de separação de bens, deixando de fora a comunhão de adquiridos e a comunhão geral.

O DN questionou o Ministério da Justiça sobre se está nos planos do governo alguma alteração ao direito sucessório, mas não obteve resposta.

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