Santa Maria fecha consulta de interrupção de gravidez
O Hospital de Santa Maria suspendeu, no início do ano, a consulta de interrupção de gravidez, alegando diminuição no número de enfermeiros especialistas. Os três médicos responsáveis pela consulta tentaram impedir o encerramento da mesma que está "suspensa por tempo indeterminado" enviando uma carta para a direção clínica em que propunham encarregar-se, por agora, das tarefas antes asseguradas pelos enfermeiros especialistas. Mas não receberam resposta e a consulta fechou mesmo -- sendo, de acordo com a diretora de enfermagem de Santa Maria, a única valência/serviço encerrado com esta justificação. Ana Campos, obstetra, histórica da luta pela legalização do aborto e diretora-adjunta da Maternidade Alfredo da Costa, qualifica a medida do HSM como "lamentável e muito mau sinal, não augurando nada de bom."
"A suspensão da consulta de interrupção voluntária da gravidez deve-se a uma restrição grave no corpo de enfermeiros especializados de obstetrícia e saúde materna. Mas continua a haver resposta: as novas doentes estão a ser encaminhadas para uma clínica privada [a Clínica dos Arcos]." O esclarecimento é de Carlos Calhaz Jorge, diretor do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital de Santa Maria. A proposta da suspensão, adianta, veio da "estrutura de enfermagem" e deveu-se ao anúncio da saída, "a muito curto prazo", de vários enfermeiros especialistas. "Foi a direção clínica que tomou a decisão." Questionado sobre qual a sua opinião, o clínico responde com outra pergunta: "Dei o meu acordo, como posso eu não dar?"
Quanto ao critério que levou a que fosse esta a consulta suspensa, o responsável, embora reconhecendo que não existem normas estabelecidas quanto a prioridades, justifica: "Penso que não é difícil encarar como prioritário o funcionamento da sala de partos e atendimento a patologias de gravidez. Esta consulta é importante mas há outras também importantes. Esperemos que não suceda noutras."
Já a enfermeira diretora do HSM, Catarina Batuca, não confirma que a proposta tenha sido da enfermagem: "Na sequência do movimento de enfermeiros especialistas em Obstetrícia que, não sendo pagos para o efeito se recusaram a exercer funções na área da especialidade, e da saída de duas enfermeiras (afetas também ao Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina de Reprodução) para o setor privado entendeu o Conselho de Administração do Centro Hospitalar Lisboa Norte recorrer, sempre que necessário, a unidades privadas, certificadas pelo ministério da Saúde, para poder dar resposta atempada e com qualidade às grávidas que procuram os serviços da instituição para a IVG. O principal objetivo desta medida é garantir segurança, uma resposta em tempo útil e com qualidade evitando colocar a grávida em situações de risco."
Tendo o DN querido saber quantos enfermeiros especialistas eram necessários para assegurar o funcionamento da consulta, Catarina Batuca, que exigiu responder por escrito, informa da existência de uma enfermeira especialista em dedicação exclusiva à consulta, atualmente em licença de parto, e do facto de haver -- não quantifica -- "um conjunto de profissionais do departamento que são objetores de consciência." Aliás, apesar da insistência do DN, a diretora de enfermagem não diz quantos especialistas de obstetrícia e saúde materna existem no hospital, adiantando apenas que está prevista a saída de mais dois (serão portanto quatro ao todo as baixas). Mas, diz, "a questão não pode ser abordada só neste ângulo. Tem que ser enquadrada dentro das necessidades do departamento de Obstetrícia que abarca para além desta consulta, o serviço de urgência, o bloco de partos e consultas da unidade maternofetal."
A funcionar há 10 anos, desde a alteração da lei do aborto por referendo, a consulta agora fechada continua apenas a fazer o seguimento das pacientes que tinham iniciado o processo -- tem efetuado uma média de 450/500 de IVG medicamentosas/ano. Em 2017, foram atendidas 450 mulheres; correspondendo a cerca de 1350 consultas (três por paciente). De acordo com um especialista consultado pelo DN, uma consulta deste tipo não precisa de "muita gente para funcionar" e "a parte da enfermagem é pesar a paciente, medir a tensão, tirar os comprimidos do frasco, escrever as instruções."
Confrontada com a proposta efetuada pelos médicos responsáveis pela consulta de IVG a de serem eles a assegurar as tarefas do enfermeiro especialista Catarina Batuca assegura não ter conhecimento: "Essa posição nunca foi colocada à direção clínica nem à direção de enfermagem." Mas, adverte, "de acordo com a lei tem que estar sempre presente um enfermeiro e um médico nesta consulta (...) e deverá ser feita por um enfermeiro especialista em materno-obstetra." E conclui: "O CHLN já está a promover o recrutamento de profissionais especialistas nesta área, esperando resolver a situação com a maior brevidade possível."
Uma das perplexidades expressa ao DN por alguns clínicos prende-se precisamente com o facto de a consulta ter sido declarada "suspensa por tempo indeterminado" e não a título temporário. "A IVG é uma prática legalizada por lei da Assembleia da República", diz um desses médicos, que pede para não ser identificado. "Invocar a ausência de enfermeiros de saúde materna para não fazer a consulta é muito escasso. Sobretudo quando se trata de um hospital universitário."
Ana Campos manifesta a mesma incompreensão: "A carência de enfermeiros deve ser mesmo extrema para se ter de optar por isto. Santa Maria é um hospital de ensino universitário em obstetrícia e ginecologia, que foi o primeiro do país e é o maior. É lamentável que, 10 anos após a entrada em vigor da lei, da qual o anterior chefe do departamento, o professor Luís Graça, foi um dos grandes apoiantes, os alunos não possam seguir situações de interrupção de gravidez e os internos não tenham treino nisso. Não augura nada de bom. Mas mesmo nada de bom. Porque se calhar a este hospital seguir-se-ão outros."
Informada da proposta dos três médicos, obstetra torce o nariz: "Acho mal que a consulta fosse feita sem enfermeiros. Mas não sei se não poderia funcionar com enfermeiros não especialistas." Quanto a Luís Graça, que saiu da direção do departamento há quase dois anos, considera que mesmo que os médicos estejam disponíveis para assegurar as tarefas de outros profissionais "não o devem fazer. Há que cumprir o enquadramento e há um tipo e aconselhamento que deve ser feito por enfermeiros e não por médicos."
O protocolo estabelecido pelo hospital com a Clínica dos Arcos implica que seja o primeiro a assegurar o pagamento das interrupções de gravidez levadas a cabo naquela unidade privada, que são todas cirúrgicas e mais caras que as medicamentosas. A cerca de 500 euros por intervenção, a decisão deverá implicar ao HSM uma despesa à volta de 250 mil euros/ano.