Governo e partidos não mexem na lei das heranças

Pareceres enviados ao parlamento pedem revisão alargada do direito sucessório, mas a lei não deverá sofrer alterações substanciais
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O parlamento discute esta semana uma proposta do PS que permitirá o casamento sem efeitos sucessórios - uma possibilidade que não existe atualmente -, mas nem o governo nem os partidos se mostram disponíveis para ir mais além. Apesar de todas as entidades ouvidas no âmbito deste projeto apontarem a necessidade de uma revisão mais abrangente da lei das heranças, este é um cenário que não está nos planos do poder legislativo.

Depois do Conselho Superior da Magistratura, Ordem dos Notários e Instituto dos Registos e do Notariado, também a Ordem dos Advogados enviou aos deputados um parecer defendendo que "deveria ter sido repensado o regime sucessório à luz do novo paradigma subjacente às novas "formas de família"". O Conselho Superior da Magistratura já tinha alertado que "as dúvidas sobre o regime aprovado em 1977 não são novas e ganham especial e renovado vigor com este projeto de lei". E a Ordem dos Notários defende que seria "importante legislar sobre a possibilidade de se dispor do património de modo diferente daquele que a lei permite".

Fernando Rocha Andrade, um dos autores do projeto de lei do PS que quer abrir a porta à renúncia mútua dos cônjuges à herança, admite a convergência de posições das várias entidades quanto à necessidade de uma revisão mais aprofundada da lei. Mas duvida que essa unanimidade se mantenha quanto ao sentido que deve tomar essa alteração. Para o deputado não há, nesta altura, uma clara maioria social que aponte para mudanças num sentido ou noutro.

O mesmo argumento é usado pelo governo que, questionado sobre eventuais alterações à lei até final da legislatura, responde com um claro "não". "O plano de atividades do Ministério da Justiça não contempla a modificação do sistema sucessório, nem o sentido dessa eventual modificação se mostra suficientemente consensualizado na sociedade portuguesa, nomeadamente no tocante ao problema delicado da posição jurídica sucessória do cônjuge sobrevivo", respondeu fonte oficial do ministério.

Da parte dos partidos não há ainda posições definidas quanto ao projeto do PS, e uma mudança mais global também não está nos planos imediatos. Isso mesmo diz o vice-presidente da bancada do PSD, Carlos Peixoto. José Manuel Pureza, do BE, mostra abertura a uma revisão "mais confinada" do direito sucessório, mas afasta uma modificação mais ampla. PCP e CDS não estiveram disponíveis para comentar esta matéria.

Um herdeiro privilegiado

De acordo com o direito sucessório português, o cônjuge é um herdeiro legitimário, tal como filhos e pais - o que significa que tem direito a uma parte substancial da herança (variável em função, por exemplo, do número de filhos) e que não pode ser deserdado, salvo em circunstâncias muito excecionais. Regras que datam de 1977, altura em que o cônjuge sobrevivo ganhou preponderância enquanto herdeiro face ao regime anterior, que privilegiava os laços de sangue (filhos, pais e irmãos). À data, a alteração visou sobretudo proteger as viúvas sem independência financeira que ficavam desprotegidas à luz da lei antecedente.

A posição particularmente protegida do cônjuge tem sido alvo de muitos reparos nas mais de quatro décadas que leva a atual lei. Paula Barbosa, assistente da Faculdade de Direito de Lisboa, especialista na área do direito das sucessões, partilha desses reparos. "O sistema sucessório começa a parecer desadequado, a posição sucessória do cônjuge está beneficiada para o que é o contexto atual", defende. "Na minha opinião a proteção sucessória deve ser garantida aos descendentes, há uma responsabilidade dos pais perante os filhos", diz Paula Barbosa ao DN, acrescentando que "a proteção quanto ao cônjuge devia ser outra, mais relacionada com a proteção do direito à habitação, da morada de família, e de alimentos". "As quotas atribuídas ao cônjuge podem ser repensadas", sugere, defendendo também "mais autonomia de vontade do autor da sucessão".

A jurista admite que esta seria uma mudança muito substancial e que "em termos sociais as mudanças se calhar ainda não são bem vindas: há uma mentalidade muito enraizada em termos de proteção do cônjuge". E se o projeto de lei apresentado pelo PS peca "por defeito", tem pelo menos "a virtude" de levantar o debate sobre as questões do direito sucessório.

Casamento sem direito a herança

O projeto do PS que vai a debate na próxima quinta-feira (e a votação na sexta) permite que duas pessoas se casem sem que se tornem herdeiras uma da outra. Para isso terão de optar pelo regime de separação de bens e assinar uma convenção antenupcial em que renunciam - de forma recíproca - à herança. Uma alteração que tem por objetivo assumido proteger os direitos sucessórios de filhos de anteriores uniões, que com um novo casamento perdem parte da herança para o novo cônjuge. Rocha Andrade já mostrou disponibilidade para acertar com os restantes partidos os termos finais do documento. Paula Barbosa levanta duas interrogações sobre a proposta: porquê excluir os restantes regimes de bens (caso da comunhão de adquiridos) desta nova possibilidade de renúncia à herança; e porquê instituir que a renúncia deve ser recíproca, dado que os cônjuges podem estar numa situação diferente (por exemplo, um ter filhos e outro não ter).

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