Indústria da madeira recupera das cinzas mas "o fundo de maneio está a acabar"
Dois meses depois dos fogos mais destruidores do país, um setor perdeu instalações, equipamentos e matéria-prima: o da indústria da madeira. O DN esteve em dois dos concelhos mais atingidos em empresas e empregos: Oliveira do Hospital e Oliveira de Frades. Firmas localizadas em parques industriais e onde teoricamente teriam melhores condições, nomeadamente em caso de incêndio. Não baixam os braços, embora o caminho a percorrer seja muito difícil, sobretudo no que toca a apoios financeiros e indemnizações das seguradoras. O governo acaba de alargar as medidas tomadas para os incêndios de junho, sobre os quais já passaram seis meses. No entanto, falta ainda muito para se estar a produzir a 100%.
Fernando Brito parece carregar nos ombros o peso do mundo. Circula devagar entre as máquinas de uma fábrica desativada que teve de alugar porque a sua ardeu a 15 de outubro. É a carpintaria Brito & Brito, que fundou em Oliveira do Hospital há 39 anos, era um jovem. Agora, aos 73, vai ter de recomeçar do zero. O concelho foi o mais afetado pelos fogos de há dois meses com empresas e postos de trabalho destruídos (quase dois mil diretos), sobretudo na indústria da madeira.
Fernando tem na filha, Ana Isabel, a recuperação do projeto de uma vida. "Desistir? Não pensámos, o mal é o apoio que não chega. O Estado é quem nos deve defender, principalmente quando estamos localizados num parque industrial. Não se espera que as empresas possam ficar destruídas pelo fogo", diz Belinha, como é tratada por muitos dos funcionários, alguns deles da família. Tem-lhes valido a solidariedade das pessoas. Por exemplo, o escritório que montaram em instalações alugadas funciona com equipamento doado.
São os apoios financeiros que não chegam - as comparticipações a 70% quando foram a 85% para as empresas afetadas pelos incêndios de Pedrógão Grande, protestam. Os de Pedrógão argumentam que no caso deles só podem comprar equipamento novo. As seguradoras discordam dos valores dos prejuízos apresentados, dizem que é possível recuperar o que ameaça ruir. Passaram dois meses e há salários para pagar, rendas das instalações alugadas para cumprir, matéria-prima, máquinas e viaturas para comprar.
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Entretanto, o Conselho de Ministros de quinta-feira aprovou o alargamento aos municípios afetados pelos incêndios de 15 e 16 de outubro, as medidas de apoio às vítimas, bem como as medidas urgentes de prevenção e combate a incêndios florestais previstas na Lei nº 108/2017, de 23 de novembro. "Procede-se à extensão da regulamentação e concretiza-se a regulamentação em falta, integrando-se num instrumento único e agregador", justifica o governo.
Os fogos de outubro afetaram os concelhos de Arganil, Arouca, Aveiro, Braga, Cantanhede, Castelo de Paiva, Coimbra, Figueira da Foz, Góis, Gouveia, Lousã, Mangualde, Marinha Grande, Mira, Moção, Montemor-o-Velho, Mortágua, Oliveira de Frades, Oliveira do Bairro, Oliveira do Hospital, Pampilhosa da Serra, Penacova, Pombal, Seia, Santa Comba Dão, Tábua, Tondela, Vagos e Vouzela. Mais de 456 empresas afetadas e que empregavam 6908 pessoas à data dos incêndios.
A carpintaria Brito & Brito fica na zona industrial de Oliveira do Hospital, onde as chamas engoliram edifícios, máquinas, viaturas, utensílios e ferramentas. "Começou cedo. De manhã fui ajudar os bombeiros em Gouveia, às 17.00 já andava na minha terra, Vendas de Gavinhos, à noite estava na carpintaria", conta Ricardo Pais, 37 anos, um dos 11 operários da empresa, contando com o Fernando e a Ana Isabel. Acrescenta José Carvalho, 64 anos, um empregado fundador: "Tudo a arder, só nos apercebemos do que isto foi no dia seguinte. No dia 15 de outubro estávamos a salvar as nossas casas." O patrão, Fernando Brito, regressava de Lisboa, na IP3, onde um automobilista o reconheceu e disse que estava tudo destruído.
Três empresas totalmente destruídas lado a lado na zona industrial de Oliveira do Hospital: a Brito & Brito, no meio a J. Guerra, depois a Gouveia & Construções. Chamas incontroláveis e comandadas pelos ventos fortes.
Nas instalações queimadas e totalmente destruídas, Ricardo varre e José empilha madeira nova que chega. No edifício da carpintaria e nas máquinas ardidas não podem mexer enquanto não houver acordo com a seguradora. "Vai ser complicado recuperar tudo, o trabalho que estava feito - havia um camião carregado para seguir para Lisboa - a matéria-prima armazenada, a maquinaria que não precisávamos de comprar nos próximos anos", diz Ana Isabel Brito, 47 anos, a gerente. Apenas se salvou um monte de tábuas que estavam nas traseiras da empresa, um barracão. Hoje, se alguma coisa pudesse fazer de diferente, seria "não acumular tanta matéria-prima no mesmo local".
Avaliam os prejuízos em 1,7 milhões de euros, mais os salários que têm pago sem que entrem receitas: "No primeiro mês ainda tínhamos algum fundo de maneio que está a acabar, agora é que se vai tornar mais complicado, com os salários e subsídio de Natal."
Pararam apenas nos primeiros dias, logo ficaram todos ocupados a trabalhar mas com a produção apenas a 50%. Estão nas instalações de uma empresa desativada e que fabricava móveis de cozinha e de casa de banho. A Brito & Brito produz tudo o que é próprio de uma carpintaria, móveis e o necessário na construção civil, por exemplo janelas de alumínio forradas a madeira, um dos seus sucessos. "Laborar a 100% não é muito fácil. Trabalhamos muito com madeira maciça e estas máquinas não dão para isso. Temos de nos ajustar e adaptar, até março vai ser muito complicado", preveem os proprietários.
Receberam a compreensão dos clientes. "Disseram que iam esperar por nós, embora lhes tivéssemos dito que devolvíamos o dinheiro." Só anularam uma obra que não estava ajustada.
Carros e ferramentas dos operários
O cenário de destruição é idêntico na Gouveia & Costa, uma empresa que alia à carpintaria a construção civil, tornando-se praticamente autossuficientes neste ramo. A fábrica de mobiliário e equipamento em madeira está parada. "Tivemos toda a noite sem dormir, a olhar pelo que era nosso. Quando chegámos, encontrámos o Luís e o irmão, o Jorge. Estavam a chorar", lembra José Dias, 49 anos, ali motorista há 21. Depois, ele e os outros 14 operários tiveram de fazer de tudo, limpar os destroços e empilhar o que podiam vender para o ferro-velho. Retomaram os trabalhos de construção civil, para onde se deslocam nos próprios carros e onde usam as próprias ferramentas.
"Chegámos à carpintaria por volta das três da manhã, ainda conseguimos salvar um camião, um reboque e uma retroescavadora, o resto ficou destruído", conta Luís Gouveia, o filho do fundador e um dos sócios. A empresa tem 32 anos, cresceu, desenvolveu-se, evoluiu, num trajeto de sucesso interrompido a 15 de outubro. "A carpintaria não está a laborar e não sei quando irá começar, as máquinas ficaram totalmente destruídas. Na parte da construção, estamos a trabalhar a 30%, 40%."
Candidataram-se a um adiantamento para a compra de material. "Vamos ver se recebemos, sabemos de empresas a quem foi dito que não havia verbas para adiantamentos. As empresas lesadas não podem começar a comprar equipamento a pensar no dinheiro das CCDR [Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional]. Se o dinheiro não vem, ficam malvistos."
Luís Gouveia calcula um prejuízo de 1,3 milhões da parte da construção (Gouveia & Filhos) e 1,2 da carpintaria (Gouveia & Costa). Quanto ao seguro, ainda está tudo por resolver, além de que têm apenas o edifício seguro.
Faz parte da direção da Associação de Vítimas do Maior Incêndio de Sempre em Portugal, cuja reivindicação principal é serem tratados nas mesmas condições das vítimas dos incêndios de 17 de junho. "Tenho pago salários, segurança social, começo a não ter dinheiro. A carpintaria não fatura, como é que podemos pagar as despesas? Não sei quando voltamos a trabalhar a 100%", protesta. Entretanto, além do alargamento das medidas, o governo pediu a Domingos Xavier Viegas (investigador do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais) para analisar os fogos de outubro e as circunstâncias em que morreram 45 pessoas, a exemplo do que aconteceu em Pedrógão Grande.
Ganham uns ou perdem todos?
Arderam oito milhões de metros quadrados de madeira, dos quais três milhões poderiam entrar diretamente em serrações, "madeira nobre e com grande valor comercializar. 350 milhões de euros é quanto poderia valer nos próximos cinco anos", segundo contas da Associação de Industriais da Madeira e Mobiliário de Portugal (AIMMP). Quem ganha? Quem perde? A quem interessam os fogos? Quem lucra na indústria da madeira? Perguntas que quem está no setor acha até ofensivas, argumentando que a longo prazo perdem todos.
"Por esse prisma, interessa à construção civil, aos bombeiros, às transportadoras, a todos. Há maus profissionais como em todo o lado, também na indústria da madeira, mas todos foram afetados. Trabalhamos na floresta, dependemos da floresta; se arde, ficam todos afetados. A madeira está mais barata, mas o seu aproveitamento é inferior ao normal. As árvores têm de ser cortadas e há o problema do armazenamento. Os clientes não recebem as encomendas, nós não faturamos. É um dominó, quando cai uma peça vai tudo atrás", argumenta Sandra Carvalho, gestora da serração Progresso, em Castanheira de Pera, que as chamas varreram há seis meses (ver texto ao lado).
"A madeira baixou de preço, mas também o valor comercial", diz Vítor Poças, presidente da AIMMP, justificando: "As árvores queimadas, sobretudo os eucaliptos, têm de ser rapidamente cortadas, a falta de chuva não ajuda à conservação, há o problema do armazenamento destas madeiras, além de que o preço do transporte é elevado."
Aceita que a curto prazo "ganham os madeireiros que operam na floresta e conseguem ter rentabilidade superior ao habitual porque compram madeira muito mais barata e esse preço não baixa tanto à porta das fábricas". Os mais prejudicados "são os proprietários florestais que veem o património transformado em carvão e em cinzas - enorme redução patrimonial e destruição de árvores em crescimento que daqui a cinco ou seis anos teriam grande valor comercial". A médio e longo prazo perdem todos, essencialmente a indústria. Explica: "Algumas empresas vão encerrar por falta de matéria-prima e outras vão perder competitividade porque têm de transportar toros de Espanha e outros países para transformar em Portugal. Estamos a falar de custos de transporte elevadíssimos."
Pedro Serra Ramos é o presidente da Associação Nacional de Empresas Florestais, Agrícolas e do Ambiente e tem dúvidas sobre se o negócio da madeira queimada servirá muita gente. "Em primeiro lugar, muita da madeira ardida não terá outro aproveitamento que não seja a produção de biomassa. Em segundo, há regiões onde as pessoas não têm onde entregar madeira porque as fábricas estão cheias. Em terceiro, este acréscimo de matéria-prima é temporário, dentro de dois ou três anos teremos uma situação oposta. E o que vai acontecer é que as fábricas estão recuperadas mas não há madeira para as abastecer."
Também os ambientalistas têm dificuldade em encontrar quem ganhe com os fogos. "Não fazemos processos de intenções nesta matéria, porque na realidade os incêndios não interessam a ninguém. É evidente que há quem aproveite, mas um madeireiro que venda um pinheiro com dezenas de anos em vivo ganha mais dinheiro do que se cortar madeira queimada. Pensamos que o principal culpado destas situações é existir muita negligência. E quando os eucaliptais e os pinhais ardem, é uma tragédia para todos, é uma tragédia para um país", diz Paulo Lucas, da direção da associação Zero.
Melhorias e fazer diferente
Os empresários da indústria contactados pelo DN demonstraram vontade em continuar, alguns pegando no infortúnio para introduzir melhorias e inovar. É o caso de Pedro Pinhão, o fundadora da Toscca, empresa da zona industrial de Travassos, em Oliveira de Frades, e que emprega 52 pessoas. Ainda o fumo saia dos escombros e já pensava em arranjar um local para continuar a produção. Compraram os edifícios que a Martifer tinha mesmo ao lado, onde estão a funcionar. Continuam a expandir e a contratar pessoas.
Instalações para substituir os 7900 metros quadrados de área coberta, completamente queimados, também o equipamento, e que renderam 110 mil euros na sucata. Mais terreno para juntar aos cinco hectares que ali detinham, parte também de floresta. "As chamas chegaram por volta das 21.30, com uma violência tremenda. Vivo numa aldeia perto, Ponte Fora, e costumo ir a Aveiro todos os fins de semana comprar um livro (leio um por semana), não cheguei a ir. Vi as chamas e vim para aqui. Já cá estavam umas 12 pessoas. Liguei a um trabalhador e foram passando a palavra", recorda Pedro Pinhão, 54 anos, engenheiro.
Não acreditaram que pudesse acontecer o pior. Deixaram os carros pessoais ligados para uma saída de emergência, colocaram na estrada todo o equipamento fabril que tinha rodas para o retirar. Apenas conseguiram pegar nas suas viaturas e fugir. É numa segunda fase que o proprietário e o filho conseguem resgatar um camião, duas carrinhas e uma empilhadora. "Deixei de pensar. A primeira carrinha que levei era a que trazia água, devia ter ficado para apagar as chamas. Tive de andar a acartar água." A madeira armazenada continuou a arder até de manhã e Pedro garante que o calor chegou a atingir os 800 graus na noite de 15 de outubro, um corredor de vento de uma violência inexplicável e que originou chamas incontroláveis.
Depois veio a revolta. "Vinte e um anos de trabalho destruídos. Tudo construído por mim, agora tenho de começar do zero." Pedro estima um prejuízo de dez milhões de euros, menos sete do que o valor dos bens segurados. Também precisam de comprar matéria-prima e nada lhes vale as árvores queimadas. "Não podemos tratar madeira que foi sujeita a temperaturas de mais de 65 graus." Fazem mobiliário exterior, para jardins, parques, estruturas, vedações, cabanas, abrigos, casas, passadiços, quiosques, etc. Exportam 30% da produção, para Espanha, França, Israel, Marrocos e Argélia.
Em frente fica a Carmo Wood, uma concorrente com expressão internacional. Fundada em 1980, crescia 40% por ano quando as chamas varreram a fábrica de Oliveira de Frades, uma das dez unidades da empresa, também no estrangeiro, que tem a sede em Lisboa. "É a maior empresa de tratamento de madeira da Europa", situa Artur Feio, engenheiro e administrador da Carmo Wood. No total, faturaram 70 milhões de euros em 2016, o que inclui exportações para França, Espanha e Brasil.
As chamas surgiram do lado da Toscca, atravessaram a estrada, destruíram fábricas e continuaram. Alguns trabalhadores que moram perto ainda conseguiram retirar algumas máquinas, depois "foi o caos". Explica Artur Feio: "Tínhamos sistemas de proteção, bocas de incêndio, mas falhou tudo. Falhou a água, a eletricidade, os telefones. Também é verdade que o calor e as chamas eram tantos que não havia quem conseguisse combater o fogo."
Conta Nélson Gomes, encarregado, 57 anos, 28 dos quais na empresa. "Nessa noite estava muito preocupado porque via um clarão da zona industrial, mas estava a defender os meus bens. Quando vi que estavam a salvo, peguei no carro e vim a corta-mato porque a estrada estava cortada. Cheguei perto da empresa e deparei com um cenário que nunca pensei encontrar na minha vida. Fiquei ali, parado, entre a meia--noite e as três da manhã, não estava em mim, pensei que era um sonho. Só via chamas e tudo a estoirar, estive ali três horas sozinho, depois é que começaram a aparecer as pessoas."
A primeira decisão foi limpar para recomeçar. "O conselho de administração decidiu que era obrigação da empresa manter as pessoas ocupadas, até para minorar o impacto de toda esta destruição", diz Artur Feio, sublinhando: "Ficámos sem um pau, era um deserto de cinzas, sem instalações para o escritório, nada. Passados quatro dias entravam sete camiões de madeira, passadas duas semanas estávamos a produzir." A unidade de Oliveira de Frades tem 96 trabalhadores. Uns ainda limpam os escombros, outros organizam a nova matéria-prima, alguns voltaram à produção. E, perante toda a destruição, há quem pinte a vedação da empresa. A Carmo Wood têm uma vantagem em relação a muitas outras nos concelhos afetados pelos fogos neste ano: a unidade de Oliveira de Frades não é a única da empresa, falamos de uma multinacional. Mas falta chegar a acordo com a seguradora e perceber em quanto vão ser apoiados pelo Estado para continuar. Avaliam os prejuízos em 20 milhões de euros.
"Temos uma batalha com a seguradora. Por exemplo, asseguram que metade do edifício onde funcionava o escritório está bom [foto da capa do DN], que não precisa de ser deitado abaixo mas apenas de umas obras. Respondi que tem de dizer isso por escrito, que tem de ser a seguradora a responsabilizar-se pela segurança das instalações. E isso não fazem", protesta Artur Feio.
Os empresários depositam esperança no futuro, com algumas mudanças na gestão, como não armazenar madeira em grandes quantidades no mesmo sítio. Este é um Natal diferente que fizeram questão de assinalar, acreditando que conseguirão estar a 100% no próximo ano. Assegura Pedro Pinhão: "Uma coisa é certa, a inauguração do novo edifício será a 15 de outubro de 2018."