Histórias de militares entre a Colômbia e o Afeganistão

Oito militares indicados pelo Estado-Maior General das Forças Armadas contam ao DN as suas histórias nos teatros de operações onde estão colocados
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Bandeira da ONU tem "significado enorme" em Bamako

As patrulhas que Inês Leal faz nas ruas da capital do Mali permitem-lhe verificar que "a bandeira da ONU tem um significado enorme" para a população local. "Esta afirmação é corroborada frequentemente, pela forma como os locais nos saúdam e colaboram", diz a primeiro-cabo, que integra o grupo responsável pela proteção, defesa e segurança - a chamada "force protection" - do destacamento de 65 efetivos da Força Aérea e do Exército que Portugal tem naquele país africano, com uma aeronave de transporte C-130. Agora, "esta situação muda dramaticamente à medida que nos afastamos de Bamako em direção às províncias do norte", pois "os riscos aumentam e temos sempre que ter uma postura não beligerante, mas sempre defensiva", alerta Inês Leal. Muito positivo e um fator de segurança, realça a operacional da Força Aérea, é constatar que o treino recebido e "o equipamento individual de combate, de comunicações, de sobrevivência e de navegação estão ao nível das melhores forças de combate dos países aliados" - atualmente 53, desde os militares alemães e holandeses aos suecos, franceses ou norte-americanos. Quanto aos desafios que encontra, Inês Leal destaca as "oportunidades de aprendizagem" que tem ao participar numa missão multinacional e "num país de um continente diferente, onde estão intrínsecos diferentes hábitos, costumes, valores, direitos, deveres, cultura, religião... pormenores importantes que fazem a diferença e que podem condicionar o desempenho da missão, uma vez não respeitados."

Guardar segredos da UE na República Centro-Africana

Entre a dezena de militares dos três ramos na missão da UE na República Centro-Africana (RCA), o sargento-ajudante João Vaz é responsável por organizar, manter e supervisionar a distribuição, registo e arquivo de "toda a informação classificada que circula" no quartel-general, "em particular" da originada nas estruturas militares de Bruxelas. Há nove semanas em Bagui, ou "La Coquette", o paraquedista já encontrou portugueses e lusodescendentes - "alguns de terceira geração, nados e criados na RCA mas orgulhosos da sua ascendência". João Vaz garante que o essencial está assegurado: "alojamento, alimentação e segurança." O que "por vezes é penoso" são as tentativas de contactar as famílias em Portugal, dadas as limitações em matéria de comunicações. Um dos 148 militares de nove países da UE que dão aconselhamento estratégico e treino operacional às novas Forças Armadas da RCA, o militar diz que as "diferentes ideias, formas e maneiras de estar" são um "desafio de adaptação" que se estende à relação com os centro-africanos. Certo é que a relação "cordial e de respeito mútuo" com os locais "faz jus à ideia histórica de que os portugueses têm uma única e superior capacidade de adaptação e interação com outros povos", adianta João Vaz, que dentro de dias vai dar as boas-vindas - e sugestões sobre o "ambiente cultural" da RCA - aos 160 "capacetes azuis" portugueses que ali vão estar um ano.

Trabalhar no Mali com software alemão e checo

Especialista de Transmissões, o sargento-ajudante Rogério de Sousa é administrador informático do quartel-general da UE - num hotel fortificado e com "muita segurança" à volta - em Bamako. Na capital do Mali "não tem acontecido nada" de significativo nessa matéria, pois os conflitos armados "são para norte", região tuaregue onde estão os "capacetes azuis" da ONU, conta o militar do Exército. "Não trabalho na rua", mas "tenho essa experiência de outros" teatros de operações como o Afeganistão, a Bósnia-Herzegovina e o Kosovo, trabalhando na área das comunicações e eletrónica, adianta o militar, pormenorizando as suas atividades quotidianas desde que chegou, a 23 de novembro: "Fazemos um pouco de tudo, desde a configuração dos servidores e dos routers a gestão da internet e do wi-fi [ligações sem fios] do hotel, a gestão dos consumíveis, impressoras, papel, tinteiros...." Além do planeamento para garantir que há material num local onde "as coisas não chegam de um dia para o outro", Rogério de Sousa tem ainda um desafio diário nessas funções de retaguarda: "Trabalho com teclados e software configurados em alemão, checo, francês, belga...." E como resolve esse quebra-cabeças, num ambiente com militares de uma trintena de países onde se usa o inglês e o francês quase indistintamente? "Uso teclados virtuais nos monitores!"

Começar a dar aulas aos iraquianos às 06.30 da manhã

O quarto contingente nacional na coligação multinacional liderada pelos EUA, contra o Estado Islâmico, inicia às 06.30 as aulas de formação aos militares iraquianos, que em regra se prolongam até às 13.00, conta o primeiro-sargento Ricardo Costa. Instrutor de tiro dos soldados "que vêm ou vão para a frente de combate" no Iraque, o militar explica que essa formação "é de caráter individual e coletivo, versando a manobra, o apoio de fogos, a sobrevivência, a liderança e o comando e controlo das operações ao nível de batalhão" das Forças de Segurança Iraquianas. Instalado desde o último trimestre de 2016 - razões de segurança levam-no a não dizer o dia nem a surgir de frente na foto - num campo militar a 30 quilómetros de Bagdade, gerido por Espanha e onde estão efetivos britânicos e dos EUA, o sargento de cavalaria realça a importância de "saber umas palavras-chave" técnicas em árabe para se fazer "entender no imediato, assim como algumas palavras que motivem a classe". Havendo "relação de grande abertura, compreensão e, essencialmente, de grande confiança" com os iraquianos, Ricardo Costa sublinha que "a passagem de conhecimento é efetiva" e combina-se "com a experiência de combate que possuem".

Ranger vai chefiar sede local da ONU na Colômbia

Medellin é a sede regional onde está o responsável da equipa de observadores portugueses (militares e agentes da PSP) do processo de paz da Colômbia. Chegado a Bogotá a 15 de novembro, o tenente-coronel Delfim Fonseca passou três semanas num programa de treino de integração na missão da ONU. O oficial de Operações Especiais vai chefiar a "sede local" de Anori/LaPlancha e em Medellin tem feito "contactos que permitam obter o footprint [radiografia] da situação operacional da região". "Os desafios que se colocam são muitos" para acompanhar um processo que deu o Nobel da Paz de 2016 ao presidente Juan Manuel Santos, constata Delfim Fonseca, mas "o principal tem sido reunir as condições" para a partida da sua equipa (ainda incompleta) de observadores, que integra um polícia espanhol, três militares (Argentina, El Salvador e Uruguai) e três funcionários civis da ONU. As tarefas que cabem a cada uma dessas equipas dividem-se entre as de informações e segurança, operações e de natureza administrativo-logística, explica o tenente-coronel. Ponto importante, assinala, é que os militares e polícias têm de atuar desarmados. Quanto à hospitalidade encontrada, Delfim Fonseca realça que "o povo colombiano é muito simpático e acolhedor, sempre disponível para ajudar", tanto a nível oficial como com cidadãos anónimos. "Há sempre um ambiente de cordialidade e cooperação, dizendo sempre "bem-vindo" e mostrando uma atitude de respeito, consideração e, diria mesmo, de gratidão pela presença dos observadores internacionais e da missão da ONU para monitorizar o processo de paz", sublinha o militar português. Note-se que as Nações Unidas estão na Colômbia desde 1950, empregando 2330 funcionários - 94% dos quais são colombianos - a trabalhar em 67 locais do país para 27 agências, fundos e programas da organização.

Descansar à 6.ª feira e trabalhar ao fim de semana na Somália

Oficial mais antigo dos quatro formadores portugueses envolvidos na criação de uma companhia de infantaria somali, em Mogadíscio, o tenente-coronel Sidónio Dias é o engenheiro "responsável pelos projetos e monitorização dos trabalhos" de infraestruturas usadas pelos militares da UE no chamado Centro de Treino General Shagabadan. Nos arredores da capital somali e "fora da zona protegida" do aeroporto internacional, é aí que está instalado o quartel-general da missão da UE (EUTM-S, sigla em inglês), diz o comandante do destacamento português. "A formação decorre todos os dias, com a exceção da sexta-feira, que é dia de descanso dos somalis", observa Sidónio Dias, na Somália desde 19 de novembro. "A adaptação ao battle rhythm é fácil, por já ser normal e não causar transtorno", garante. Com recurso a um intérprete somali e falando inglês, os 190 militares da UE estão a formar uma companhia de infantaria do Exército Nacional da Somália - alvo dos terroristas do grupo Al Shabaab, lembra o tenente-coronel. Os 143 efetivos somalis são oriundos de diferentes regiões, pois procura-se "constituir uma subunidade multiclã" com o objetivo de "aumentar a coesão do Exército". Treino básico militar, operações defensivas e ofensivas, combate em áreas edificadas e treino físico formam os "blocos principais de matérias" ministradas - sempre acompanhados por elementos de segurança. "Os formandos têm uma grande vontade de aprender e atingem o nível pretendido", elogia Sidónio Dias, embora tenham "mais dificuldades nas matérias mais técnicas" como é o caso da topografia.

Afegãos "muito recetivos" aos militares da NATO

Há 11 meses em Cabul, onde é o representante nacional junto da missão "Apoio Resoluto" da NATO, o tenente--coronel Augusto Sepúlveda é responsável por avaliar as infraestruturas financiadas pela Aliança a fim de assegurar, em caso de necessidade, a sua rápida reparação ou substituição. Engenheiro, Augusto Sepúlveda diz ter "todas as condições" para cumprir a missão, "desde materiais e financeiras ao apoio da comunidade internacional". Contudo, lamenta "a corrupção enraizada na cultura afegã e a falta de liderança do governo de unidade nacional, que se reflete nos comandos de todos os escalões" das Forças de Segurança e Defesa do Afeganistão. O oficial superior, que esteve no Kosovo e Timor-Leste, qualifica como "muito cordial" a relação com os afegãos - a quem diz "obrigado" em Dari: "Tacha-kor." Os formandos "são muito recetivos" à instrução dos militares aliados, mas a referida "corrupção generalizada prejudica as ações de formação e treino levadas a cabo pela NATO", diz o militar, que também realizou ações de cooperação técnico-militar em Angola, Guiné e São Tomé e Príncipe.

"Duas nações, uma força" luso-húngara no Kosovo

Um capelão português e outro húngaro, o primeiro católico e o segundo luterano, juntam-se todos os domingos para celebrar missa conjunta aos contingentes dos dois países que partilham o quartel de Camp Slim, em Pristina. "Temos o cuidado de promover a integração porque, em operações, vem ao de cima o treino e a camaradagem" entre militares que se regem pelo lema "duas nações, uma força", refere o seu comandante. Há dois meses e meio no Kosovo, o tenente-coronel António Cardoso enaltece o "trabalho brilhante" feito nesse sentido pelos antecessores, bem como na relação com as autoridades e populações de origem sérvia e albanesa. A sua curta experiência na relação com os militares húngaros "é extremamente satisfatória", realça António Cardoso, que nos anos 2000 foi "capacete azul" em Timor-Leste. Outro motivo de satisfação, face a contingentes anteriores, é o facto de o seu batalhão de infantaria mecanizado "já não usar Chaimites". As viaturas blindadas agora utilizadas são as M11 Panhard e as Pandur de oito rodas, que já foram objeto de manutenção própria para lidar com o inverno balcânico, informa o oficial. "Já apanhámos três graus negativos, que sentimos como se fossem menos sete ou menos oito devido ao fator vento", diz o oficial, adiantando, com humor, que "o inverno ainda não está muito rigoroso". Reserva tática da NATO no Kosovo, esta Força Nacional Destacada está a poucos meses de arriar a bandeira portuguesa após quase duas décadas - interrompidas entre 2001 e 2005 ao nível de grandes unidades. "O principal desafio é a motivação", através do treino constante "para garantir a operacionalidade do pessoal e do material", acentua o tenente-coronel. "Dar apoio" às forças de outros países, ao nível do "controlo de tumultos" e de como lidar com o lançamento de cocktails molotov é outro estímulo.

Artigo alterado às 14:05. Inclui a história da primeiro-cabo Inês Leal

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