"Costumo dizer que tive três Santo Antónios: o 1.º ano da Faculdade, o 25 de Abril e Os Gatos não Têm Vertigens"

Entre a sala de A Barraca, a telenovela e o cinema, a atriz e também encenadora representou a vida de dezenas de mulheres fortes e com histórias muito interessantes, papéis que lhe deixam marcas. O próximo foi escrito por Gabriel García Márquez
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Só por desatenção é que se pode pensar que perguntar a idade a Maria do Céu Guerra teria uma reação positiva. A atriz reage sempre mal à pergunta porque defende que um ator não tem idade: avançam ou recuam no tempo quando os papéis o exigem. É verdade. Foi uma provocação e pretexto para se falar na essência da representação. Assim seja. Sem idade!

E se começássemos pelo princípio, quantos anos tem?

Não me vai perguntar isso, logo assim à cabeça, pois não? Acho uma coisa...

De mau gosto?

Acho de mau gosto, porque os atores não têm idade. Os atores fazem o possível por não estarem marcados pela idade. Não é para parecerem mais novos, como as dondocas. É para parecerem mais novos, para parecerem mais velhos, para não terem essa marca. Não queremos ter essa marca, queremos ter agilidade. É para isso que vamos ao ginásio, fazemos natação, corremos, que temos algum cuidado com a pele.

Não é uma questão pessoal, por vaidade?

Não é uma questão pessoal. É a arte que abraçámos que exige isso de nós. Perguntar a uma senhora ou a uma mulher já é desagradável, porque elas não gostam. E os homens também não. Mas perguntar a um ator é péssimo, porque é limitar-lhe a carreira. Não me pergunte isso, trabalha contra a minha profissão, contra a minha arte.

Porque, no fundo, o corpo é o vosso instrumento de trabalho.

Exatamente. O meu corpo, a minha cara, o meu olhar, a minha energia, tudo coisas que são afetadas com a idade. E, portanto, nós estamos a trabalhar contra o tempo. Ainda que sejamos das poucas pessoas que, em princípio, temos trabalho toda a vida, não é?

Há sempre papéis que se podem fazer.

Sempre. De qualquer maneira, todos gostamos mais de simular, não é? De simular que somos velhos, de simular que somos novos, não estar prisioneiros dessas contingências. Portanto, se me dá licença, não ponha isso no meu perfil. Está na net, toda a gente sabe.

E também há papéis que nunca se podem fazer?

Claro, embora o sonho do ator e da atriz seja fazer todos os papéis. Mas nós sabemos que não somos de borracha, que a nossa sensibilidade não é assim tão elástica, que temos características que nos inibem de fazer certas coisas e, depois, que às vezes somos novos demais, ou velhos demais, ou baixos demais, ou... Temos características que nos impedem de fazer determinados papéis. O que é uma pena!

Quais são os papéis que tem pena de não ter feito?

Ah, muitos! Muitos. Olhe, tenho uma galeria de Shakespeares que nunca fiz . Tenho muita coisa para fazer. E alguns que não fiz como atriz, mas encenei, o que também é um prazer muito grande. Realmente, dor de alma tenho de não ter feito os Shakespeares.

Por serem personagens fortes?

Não. É porque tem situações, tem palavras, tem sentimentos belíssimos e que nós gostamos de passar por eles, não é? Eu gostava. No fundo, representar um papel é passar por uma vida e é vivê-la, é conhecê-la. Sabe que, quando fazemos um papel - e é por isso que os clássicos são interessantes - , passamos a conhecer-nos melhor. Ao fazermos, ao entrarmos, ao estudarmos aquelas palavras, aquela personalidade, aqueles conflitos, também nos confrontamos com eles, perceber se éramos capazes daquela vida. Quando passamos pelos clássicos do teatro aos 20 anos e depois aos 40, aos 60, é sempre de forma diferente, mesmo que estejamos a trabalhar o mesmo papel, só que com diferentes idades.

Porquê?

O confronto com as grandes obras também nos ensina quem somos, quer na leitura, mas muito mais na representação. Porquê? Porque as coisas passam pela nossa pele, passam pelo nosso sentimento, porque ouvimos as palavras que aquela personagem ouve, passamos por aquelas zangas, aqueles conflitos, aquelas mortes e o nosso eu às vezes rebela-se contra aquilo, às vezes entusiasma-se com aquela história, às vezes percebe que nunca seria capaz de fazer isso.

E ao apropriar-se dessa vida, digamos, pode influenciar a realidade?

Sim, viver é aprender. É termos uma experiência e ela iluminar--nos a vida. Se eu aprendo com os papéis, com as personagens - e aprendo -, também os próximos vão ser influenciados por essa aprendizagem. Acho que nós, em cada peça, aprendemos muito. E, por exemplo, quando interrompemos uma peça e, passados dois anos, voltamos a fazê-la, já é de maneira diferente, já sentimos de maneira diferente.

Isso quer dizer que a mesma personagem interpretada por atrizes diferentes será sempre diferente?

Será sempre, até pela mesma, com tempo de intervalo. E, por isso, traz essa experiência.

Entre todas as vidas há alguma que à partida gostasse mais de viver?

Não. Passou-se uma vez uma coisa muito interessante. Eu não gostava nada de filmes de cowboys e, um dia, a Maria João Seixas vinha de Paris e telefonou-me a dizer que tinha um livro para mim.

O Calamity Jane?

Sim. E eu disse: "Ah, a Calamity Jane!" E ela repetia "Lê estas cartas." Eu gostava tão pouco de cowboys, representava para mim uma coisa tão longe do que gostava, que deixei o livro na mesa-de- -cabeceira e não o li. Era um livro de 38 cartas. Passado um tempo, o Hélder Costa (com quem eu vivia, éramos companheiros) disse-me: "Ó pá, mesmo que não queiras fazer, lê". E eu: "Mas não quero fazer uma mulher-cowboy, não me interessa nada esta temática." "Eh pá, lê! Li e não tenho a mesma opinião." E enfim, peguei no livro e li.

E acabou por gostar.

De início, não me interessou muito. Surpreenderam-me as cartas à filha, com quem ela não vivia, mas as condições de vida de uma mulher num meio masculino isso era interessante, cada carta foi-me interessando, entusiasmando, li uma segunda vez, terceira vez e... pronto, pensei: "Isto é interessante para fazer." Mas comecei a trabalhar a Calamity Jane [A Barraca, 1986] sem grande paixão, com preconceito, a pouco e pouco, comecei a gostar tanto daquele universo! Entrava no palco e cheirava-me a terra, a seco, a álcool - as cenas dos bares. Aquilo tinha um poder, as palavras - o poder instalador das palavras -, aqueles sentimentos que tinha de passar, traziam uma tal carga de realidade! Aquela mulher - não se sabe se foi ela quem escreveu, vamos pensar que sim - conseguiu transpor tudo isso para as cartas. E acabei a Calamity Jane, mais de seis meses em cena, com uma pena enorme. Era capaz de continuar aquilo por muito mais tempo, não sei quando é que me cansaria. Foi, realmente, uma das personagens que mais me marcou.

O seu primeiro grande papel ?

Eu já tinha feito o É Menino ou Menina? [Barraca, 1980], D. João VI [1979], Maria Stuart [Teatro Experimental de Cascais, 1969]. Mas talvez seja a que marcou mais o público.

Até porque foi representada em televisão.

Exatamente, e foi muito interessante. Propusemos a peça à televisão e, quando estávamos a combinar, alguém - que eu não vou dizer o nome, logicamente - me disse: "Nem pensar! Duas horas, uma mulher sozinha em palco, com um homem a fazer apontamentos musicais, ninguém vai aguentar." Viemos embora muito tristes e, pas-sado um tempo, o realizador sugerido para adaptar a peça , viu o espetáculo e disse: "Sou capaz de fazer disto uma coisa que as pessoas não descolam! E estou entusiasmadíssimo para fazer isto." E foi o Hélder Duarte, o realizador, que fez que esse grande papel me desse de facto essa primeira grande notoriedade de que falava.

Gosta de trabalhar para grandes audiências?

Gosto de fazer uma mistura entre estar no meu cantinho, a fazer as coisas para menos público, e, de vez em quando, dar um salto ao grande público. Sempre fiz isso e faz-me muito bem. Estive seis, sete anos no Teatro Experimental de Cascais, a trabalhar para um público restrito.

E antes disso na Casa da Comédia.

Sim, onde fiz a minha primeira peça de teatro, Deseja-se Mulher {1963] e depois, em 1965, representei no Festival de Teatro de Letras em que a Faculdade de Letras participou. Depois fui para Cascais. Portanto, isto são coisas extremamente minoritárias, quer naquele tempo quer agora. Pode dizer-se que estive dez anos escondidinha, a fazer as minhas coisinhas e para poucas pessoas. E depois, desafiada por dois grandes amigos, o César de Oliveira e o Pinto de Campos (o cenógrafo), fui para o Parque Mayer.

Teatro comercial.

Sim senhora. E desabei no colo do público, que me recebeu maravilhosamente: fui premiada, fui bem tratada. E andei quase três anos entre a comédia , a revista e o teatro. Fiz comédia com o Raul Solnado no Teatro Laura Alves. Quando já estava com saudades de espaços pequenos, de grupos pequenos, de textos onde se pode perder tempo, arrastei-me outra vez para a Casa da Comédia. Fiz uma peça com o José Morais e Castro a dirigir, A Doroteia, de Nelson Rodrigues, e depois voltei a pequenos circuitos, até chegar à A Barraca.

Também ajudou a fundar o Teatro Ádóque.

Sim, sim, sim.

A Barraca festejou 40 anos no ano passado. Quantas peças depois da fundação do grupo?

Não sei. Fomos homenageados na Festa do Avante há três anos e eram 90. Devem ser cerca de cem.

Quando diz "o público minoritário" não quer dizer um público elitista?

Não, não!

É completamente contra ...

Sou completamente contra, sobretudo atualmente. Se calhar, antes de haver um trabalho de democratização da cultura - que, às vezes, pomos em dúvida, mas que existe -, o público chamado minoritário era mais elitista. O que não quer dizer que tenhamos de ser elitistas para trabalharmos para pequenas plateias. Não estamos a fazer teatro para os nossos amigos, para o nosso umbigo. Para isso, basta que saibamos escolher obras que interessem às pessoas, ao nosso momento, à nossa circunstância, que ajudem a melhorar a nossa visão das coisas, que ajudem a melhorar a compreensão do mundo. Nada disso é elitista.

Como é que se sabe que aquela peça vai interessar ao público. É complicado, não é?

Basta ler o jornal todos os dias, saber o que é que se passa no mundo.

Quer dizer, se nós sentirmos que o que se passa no mundo, de alguma maneira, nos toca, nos interessa e interessa a um número suficiente de pessoas para não ser uma reflexão sobre o nosso ego, vai interessar os outros

É assim em todas as artes?

Vou dizer uma coisa que é um bocadinho inconveniente e desagradável. Se sou pintora e estou diante de um quadro, a minha realidade sou eu, a memória do que eu quero pintar, ou o desafio que aquela tela constitui para mim. Cria-se entre mim e a tela uma relação íntima. Se estiver a fazer uma pintura comercial, penso em quem é que a poderia comprar, já não me estou a exprimir. Portanto, esta realidade, este dueto entre uma tela e um pintor, entre uma tela, as cores e um pintor, é muito diferente. No teatro, mesmo que esteja a fazer um monólogo, o meu interlocutor não é uma tela; o meu interlocutor são os milhares de pessoas que irão ver aquele espetáculo.

E que reagem naquele momento, ao contrário de uma tela...

Quando estou a representar, não quer dizer que aquela obra, que aquela pintura, não possa ser vista depois por milhares de pessoas. O que eu digo é que, no ato do teatro, temos muitos interlocutores. E tem de haver a preocupação de que a história que contamos diga alguma coisa àquelas pessoas. É um grande trabalho que os atores têm de fazer, aquilo tem de interessar às pessoas que vão ver aquelas telas [peças], têm de sentir que aquilo é com elas. O Peter Brooke diz uma coisa extraordinária: "O grande inimigo do teatro é o aborrecimento."

Ou seja...

Se vão ao teatro para se aborrecerem, se nada os faz estremecer, se nada os surpreende, não vale a pena fazer aquela peça. Fazer só porque eu gosto é um grande egoísmo, uma perda de dinheiro.

E isso consegue-se com mais trabalho ou com mais inspiração?

Com reflexão, com atenção à vida, com atenção aos outros, com humildade, com o perceber que nós não somos o centro do mundo, não é? Dou-lhe um exemplo: há uma peça muito bonita sobre o Afeganistão. Linda! E que põe em questão muitas, muitas coisas, nomeadamente na relação Ocidente/Europa. Comecei a ler aquilo e disse: "Quero fazer esta peça." Ainda por cima, tem uma mulher extraordinária. E estava a falar com um grande amigo meu, que é uma pessoa ligada ao diálogo das civilizações, que disse: "Não faças! Metade das pessoas vão compreender, mas em outra metade vai aumentar o preconceito, o medo, o silêncio, que as pessoas têm sobre estes temas. Fiquei com a peça atravessada e não a vou fazer. Tudo o que eu menos quero é pôr as pessoas mais preconceituosas em relação ao que já estão.

Um ator tem essa responsabilidade?

Tem essa responsabilidade, como também tem a de sensibilizar as pessoas para determinadas temáticas. Acontece muitas vezes fazermos uma peça e não obter a reação esperada, ou essa reação só acontecer mais tarde. É Menino ou Menina ? é uma peça de Gil Vicente sobre as mulheres, mulheres e um homem, que era o meu querido Orlando Costa, que tocava, cantava, fazia trinta por uma linha. Sei que muitas pessoas do meu país são católicas e tivemos algum cuidado: aquelas coisas do Gil Vicente, de brincar com os padres, com as malandrices da Igreja. Nunca houve uma reclamação em Portugal. Fomos para a América, convidados por uma fundação que trabalhava com emigrantes, a atuar numa série de cidades e uma delas tinha o palco no centro paroquial. Só nesse dia é que percebi quantas vezes é que aquele texto brincava com os pequenos, ou grandes, pecados da Igreja. Começamos a fazer aquilo e eu penso: "Ai, meu Deus! Dá-se aqui catanada na Igreja que ferve!" Mas o público adorou, riram-se muito.

Apesar dessa preocupação em trazer as peças que interessam ao público, há salas vazias. Porquê?

Muitas vezes não temos dinheiro para fazer divulgação e uma boa propaganda. Outras vezes, e isso também já aconteceu, há coisas sobre as quais queremos falar e as pessoas não querem ouvir. Houve uma altura - no fim dos anos 1980 -, em que as pessoas não queriam ouvir falar de política, de consciência cívica, saturou: queriam só coisas de divertimento ou só muito elitistas. E nós fizemos uma espécie de braço-de-ferro com o público e não nos correu muito bem.

E já aconteceu um insucesso transformar-se num sucesso de bilheteiras?

Também, tivemos uma peça, A Herança Maldita {2007], do Augusto Boal, que é uma crítica mordaz ao liberalismo e ao capitalismo selvagem. A peça é brasileira e, como sabemos, o Brasil tem muita proximidade com os Estados Unidos; e abordava todos aqueles assuntos tremendamente vivos no Rio de Janeiro, São Paulo. Eram as heranças a rebentarem, as aldrabices fiduciárias, os bancos a cair ...

Isso foi premonitório.

Premonitório, mas não para o Boal. Ele está sempre muito bem informado, muito à frente. Ele sabia que as coisas estavam a acontecer.

Qual foi a reação do público português?

O público ficou semi-indiferente. Três anos depois, toda a terminologia da peça estava nas primeiras páginas dos jornais. Os bancos a rebentarem, as heranças a explo-direm, as famílias a matarem-se umas às outras por causa dos dinheiros, os off-shores. E a última vez que fizemos, de cada vez que havia a palavra off-shore havia uma gargalhada, uma palavra que tinha que ver com o mundo financeiro. As pessoas perceberam tudo.

Se calhar, a primeira vez não era a altura, por isso, repuseram essa peça.

Exatamente, sentimos que era a altura de a fazer. Fizemos uma larga tournée com a peça na segunda vez, e as pessoas adoraram, percebiam perfeitamente do que se tratava, do que se estava a falar.

Como é o contacto com o telespectador?

Fiz duas novelas, mas sempre continuei a fazer teatro. Nunca faço mais do que dois dias por semana em televisão, fiz, uma vez, com A Relíquia,, do Eça de Queirós/António Vitorino de Almeida, aquela opereta - muito gira e tive experiência de fazer aquela série, Residencial Tejo, a Seição (1999-2002), uma personagem muito gira. Ainda ando a levar beijinhos.

Outra mulher interessante e que viveu mais recentemente (2014) foi a Rosa, de Os Gatos não Têm Vertigens.

Esses foram os últimos beijinhos. Por isso é que digo que, de vez em quando, salto para o colo do grande público, a pedir um mimo sem complicações. O primeiro grande salto foi a revista, o segundo a Seição e o terceiro é a telenovela.

Atualmente A Impostora, na TVI.

Que também tem corrido razoavelmente bem. Gostei muito, muito, de qualquer destas experiências. Em Cascais quase conhecíamos o público pessoalmente, era realmente um grupo fechado. A Casa da Comédia era a mesma coisa: a gente já conhecia o público pelo nome próprio, como eu costumava dizer. E, de repente, entrei num teatro chamado Variedades, que tinha 700 lugares e que fazia duas sessões por dia. Via todos os dias 1400 pessoas, até parece mentira. Costumo dizer que tive três Santo Antónios, sendo que Santo António, para mim, é um momento da nossa vida em que andamos com os pés no ar, transportados pela força dos outros.

É a festa em si, não é a componente religiosa que lhe interessa?

Não sou católica, mas gosto muito do Santo António. Andar com os pés no ar, transportado pela força e energia dos outros, pela alegria dos outros. Tive um Santo António na Faculdade, no meu 1.º ano de Faculdade. Foi um Santo António...

Por causa do teatro?

Não. Foi quando descobri o que era estar numa instituição de ensino com centenas de pessoas, onde estão professores, extraordinários mestres, onde se é completamente livre, porque não está ao pé nem a mãe, nem o pai, nem o tio, nem o avô. É uma coisa única. E é, também nessa altura que entro no teatro. O meu segundo Santo António foi o 25 de Abril, em que realmente também me senti transportada pela força dos outros, quer a 25 de abril, quer a 27, este último dia foi quando caiu a censura. É uma felicidade que mistura a intimidade e a multidão. A alegria que a gente tem ao ter um filho é íntima, é só nossa. A outra alegria é quase o contrário, por isso digo que são os meus Santo Antónios.

E o terceiro?

Participar em Os Gatos não Têm vertigens, aquela história e aquela pessoa que estava a fazer, a maneira como a consegui fazer. O que o António-Pedro [Vasconcelos] me pediu e o que o [João] Jesus, que era o jovem ator, me deu foram coisas tão especiais. E, ao mesmo tempo, tive a noção de que o António-Pedro retratava uma gente, um universo que eu conhecia e a quem nunca ninguém ligou muita importância: os tradutores, os editores de livros que não são os best-sellers. Lembro-me daquela gente, toda progressista, toda de esquerda. Se acreditamos que ser progressista é ter uma maneira de viver diferente, isso está retratado naquele filme. A maneira como aquela mulher encara o amigo, encara o marido, encara tudo, não é? A necessidade que ela tem dos outros e a capacidade de se dar aos outros. Aquilo é tão bonito, tão profundo.

[destaque:Quando estava no liceu, escrevia, escrevia. Não restou nada, a não ser um livrinho de poesia]

Pois é, até parece que é irreal. Mas acontece, claro. É muito bonito.

Adorei fazer aquele filme.

Ainda vive da Rosa?

A Rosa ainda me toca muito. Acho que conheci aquelas pessoas e que me deram coisas. E agora eu dei àquelas coisas às pessoas. Foi uma coisa muito viva.

Estudou Filologia porque o objetivo era ser escritora. Publicou?

Quando estava no liceu, escrevia, escrevia, escrevia. Não restou nada, a não ser um livrinho de poesia que - ainda anda aí - que editei logo que cheguei à Faculdade.

Editar logo um livro?

Foi. O David e o Pasquim, que eram os meus professores, acharam o livro interessantíssimo. Naquela altura, adorava a geração beat, os beatniks, os escritores franceses da mesma família, os escritores/cantores, como o Léo Ferré. Escrevia às golfadas, tinha de escrever. E depois, quando comecei a fazer teatro, a minha necessidade de comunicação canalizou-se para aí. Parecia que escrever não me fazia falta nenhuma. Fazia-me falta comunicar e comunicava no palco e com as palavras das outras pessoas.

E, agora, gostaria de editar?

Não sei. Olhe, tenho uma história empatada, uma coisa para crianças, mas não é uma historiazinha para crianças. É uma história curta e que já tem título Uma Herança de Sombra. É sobre um cigano da Transilvânia que fica viúvo e os filhos vão-se embora. E ele começa a fazer uma caminhada de comboio, até que chega a Portugal.

Então, há alguma coisa escrita.

Está pensado.

Ficamos à espera dessa viagem até Portugal.

É uma caminhada pelas cidades, em que ele vai parando em cada cidade. Ele toca violino e acordeão até ter dinheiro para se meter no comboio e ir para a próxima cidade. Além disso, gosto de escrever sobre as peças, apresentar as peças, e sobre as minhas experiências. Por exemplo, faço diários de viagens.

Quando é que isso será publicado?

Não sei, acho que não.

Na hipótese de isso acontecer, seria em que registo?

Gosto de escrever algo entre ficção e biografia. Tenho a impressão de que não tinha capacidade para escrever uma teia ficcional, não me puxa muito. Mas o que tenha que ver com ficção, com memória, isso gosto. Só que escrever ainda me desgasta muito mais do que representar.

Como assim?

Fico toda a tremer por dentro. Sempre que escrevo, tenho exatamente a mesma experiência que tive aos 18 anos, quando escrevia aqueles poemas. Ficava num estado de perturbação.

Como é que se prepara?

Depende, por exemplo, antigamente, para andar de maneiras diferentes, conforme as personagens - agora já não faço isso -, escolhia um exercício de acordo com cada papel, para acompanhar aquela peça: bicicleta, alongamentos, coisas que me pusessem o corpo em formas diferentes. Gostava muito de preparar-me - e ainda gosto - de uma forma que não tenha só que ver com psicologia. Uma das coisas que adorava fazer, durante muitos anos fiz isso, era consultar os professores do ISPA [Instituto de Psicologia Aplicada]. Ler-lhes o texto e dizer-lhes: "Deem-me três características físicas para esta pessoa. Por exemplo, na Dona Maria, a Louca, fiz aqui uma sessão com uma professora do ISPA e ela ajudou-me imenso na forma como devia colocar a cabeça. Eu dizia-lhe, há uma rigidez nas pessoas que têm uma doença mental e eu queria atingir essa rigidez. Fiz muitas abordagens diferentes, muitas experiências. É um prazer enorme ter um corpo e uma mente que se podem trabalhar. Não é?

Continua a preparar-se da mesma forma que se preparava há 30, 40 anos? Porque já tem muita experiência...

Não, eu preparo-me melhor agora.

Gosta mais de declamar poesia ou de fazer teatro?

Gosto muito de teatro e, dentro de teatro, de comédia e de drama.

De igual forma?

Sim, desde que as personagens tenham complexidade e intensidade suficientes, que não sejam coisas simplórias, que não nos obriguem a perder tempo. Gosto imenso de fazer comédia - acho que faço bem! - e de fazer drama e tragédia. Pode ver-se uma história com humor ou uma história puxando pelos lados dramáticos, é uma questão de trabalhar esse nosso lado mais profundo, mais dramático, de ver uma história, de ver uma personagem.

E também é encenadora.

Gosto muito e é um trabalho que gosto de fazer com leveza.

Há algum trabalho de que se tivesse arrependido de ter feito, que se fosse hoje não teria feito?

Muitos.

Muitos, apesar de tantas críticas positivas e prémios?

Olhe, um espetáculo que toda a gente adorou e que eu todos os dias perguntava: "Quando é que isto acaba?". E, ao mesmo tempo, não me sentia com esse direito, porque aquilo estava sempre esgotado.

Qual foi?

O Baile, um espetáculo lindo, maravilhoso. Mas não sou uma pessoa do movimento e aquilo era tudo dançado. Ao fim de três semanas, por mim já acabava. Gostei imenso, achei imensa graça, mas nas primeiras três semanas, e estive um ano e meio em cena. E ainda fomos ao estrangeiro uma data de vezes. Sempre calada, a fazer aquelas coisas, não havia texto. A profundidade de sentimentos não existia. Senti-me bem infeliz ao fazer aquilo tanto tempo. A seguir, fui fazer uma obra de Gil Vicente, em que já tinha feito aquele tipo de papéis e era tudo menos aprofundado. Também me senti a perder tempo, não estava a avançar. Aquela experiência eu já tinha feito. Portanto, há muitas vezes em que a gente faz coisas que sente que não valia a pena ter feito.

E na política, sentiu-se alguma vez usada ou fez algo que, a posteriori, se arrependesse?

Não.

Nem quando disse os nomes das mulheres vítimas de violência doméstica na campanha do PS?

Não.

Não sentiu que era um aproveitamento político?

Sim. Senti e aceitei, acho que fez sentido naquela altura. Não sou do PS, mas achei que não tínhamos nenhum partido que pudesse alterar aquela lógica de poder sobre as mulheres sem ser o PS. Achei que devia fazer o que estivesse ao meu alcance para mudarmos o governo. E fi-lo com muito gosto, não estou nada arrependida. Nada.

Ter uma companhia de teatro dá uma certa segurança, poder escolher o repertório?

É muito bom. É muito bom.

[destaque:Uma das primeiras coisas com que sonhei foi fazer uma companhia onde pudesse escolher o repertório]

Foi por isso que a fundou?

Foi. Tive várias experiências, quer em Cascais quer depois, de me sentir muito bem nas companhias, de gostar de trabalhar com aquela direção, mas às vezes não me apetecia fazer determinadas peças ou de achar completamente errado que se tirasse de cena uma peça que estava a correr tão bem.

Isso são as contingências de quem dirige e é dirigido.

Sim, em todo o lado isso acontece. Uma das primeiras coisas com que sonhei foi fazer uma companhia onde pudesse escolher o repertório, que pudesse ter aí uma parte bastante ativa. E que também os colegas, os atores, pudessem participar nessas decisões E, quando foi o 25 de Abril, pensei logo que finalmente ia concretizar esse sonho.

Uma gestão mais democrata?

Exatamente, parecida com o que eu gostava que tivessem em relação a mim. E ter mais cinco, seis, sete pessoas que se empenhassem na criação, que todo o nosso trabalho fosse o resultado dessas discussões. Pensámos sempre que seria bom ter uma companhia onde as pessoas se dessem bem, não por razões estritamente profissionais, mas também pelas escolhas, de carácter, de opções políticas, de gosto, para que muitos dos problemas que surgem numa companhia pudessem ser libertados.

Entre os colegas tem a filha, Rita Lello. É grande orgulho ter uma filha ou um filho a fazer aquilo que fazemos com tanta paixão.

É um orgulho enorme, enorme. E agora o meu neto quer ir para o teatro.

O filho da Rita?

Sim, é o meu único neto, tem 15 anos, está a estudar no Porto.

Dama da Ordem Militar de Sant"Iago da Espada e comen-dadora da Ordem do Infante D. Henrique. Ouro no teatro e no cinema. Como reage às distinções?

Fico contente, mas também muito aflita, muito constrangida. Acho que não os mereço, que os meus colegas também merecem. Sei que faço tudo pelo melhor e para me sair bem, que tenho uma preocupação de cidadania e que não ando atrás do dinheiro. Faço tudo com os meus valores e princípios, mas muito mais gente o faz.

O que é que lhe falta fazer?

Gosto muito de adaptar estruturas narrativas a estruturas dramáticas ou estruturas narrativas/ /dramáticas, portanto, teatrais. Estou a trabalhar em várias coisas e que não são peças, têm que ver com autores de que gosto muito. Quando, há anos, tivemos ilusões de que íamos ter verbas para fazer um trabalho mais caro, programámos fazer peças russas, trabalhos sobre literatura russa. E eu fiquei com dois autores para trabalhar, dois sonhos para fazer e quero fazê-los.

A Barraca nasceu com o 25 de Abril, fizeram 40 anos o ano passado e, para comemorarem, apresentaram Claraboia, com muitos atores. Assumiram que era um risco. Correu bem?

Sim, muito bem.

Então não tiveram prejuízo.

Fizemos os 40 anos, arriscámos e ganhámos. Mesmo assim, deu prejuízo. Deu prejuízo, porque tínhamos 17 pessoas em palco, mais três técnicos, mais duas pessoas no escritório, todos os dias. Sabíamos que isso ia acontecer, mesmo na melhor das hipóteses. E a melhor das hipóteses foi a que aconteceu: ter a ajuda da Fundação Saramago e da Pilar [mulher do escritor] e do público, que não faltou. Agora, o nosso público tem uma componente sénior assinalável e que paga meio bilhete. Temos bastantes jovens, que pagam meio bilhete. Esta casa tem cerca de 170 lugares, em que, olhando para a sala, talvez mais de metade seja a pagar 50% do preço do bilhete.

Arrependidos?

Não, de maneira nenhuma. Pode dizer-se que poderíamos ter feito uma montagem mais baratinha. Não, não podíamos, o público não viria, aquela peça pedia um investimento grande. E também teve que ver com ambiente político, com o acreditar que estávamos num momento de mudança e que talvez as pessoas fossem sensíveis à cultura. A Barraca teve sempre problemas quando esteve o PSD no governo. Tivemos o governo de Cavaco Silva, dez anos, e sem subsídios.

Mas é um ministro socialista que o corta. Continua a pensar que António Coimbra Martins foi o pior ministro da Cultura?

Era isso que ia dizer, que a machadada não foi dada pelo PSD, foi dada por um ministro do PS. Mas, evidentemente, assim que nos apanharam numa situação desfavorável, nunca mais a corrigiram. Pontualmente, davam umas esmolinhas. Com o regresso do PS ao governo, com Guterres, A Barraca melhorou um bocadinho de situação. Mas nunca mais voltou ao que era anteriormente, em que tinha uma situação desafogada, boa.

Entretanto, qual é o discurso que está subjacente na escolha de Claraboia?

É: "Ouçam lá! O facto de termos estado todo este tempo empobrecidos, maltratados, não quer dizer que tenhamos perdido capacidade. A Barraca não perdeu qualidade, perdeu condições."

A Barraca é uma companhia de esquerda?

Sim, basicamente foi sempre, embora tenha mudado ao longo dos anos. Durante os primeiros 15 anos, foi uma companhia de amigos, de amigos de esquerda.

Ainda faz sentido a divisão esquerda/direita?

Pode dividir-se as coisas dessa maneira, simplesmente não se vai tanto pelos conteúdos, como pelos processos. S e tiver um conteúdo de esquerda mas dá-lo a conhecer de uma maneira tão hermética, tão elitista e tão difícil de chegar às pessoas, estou a ter uma prática de direita, percebe?

O que acontece muito.

As pessoas vão ver uma coisa e sentem-se desanimadas: "Já não percebi o que queria perceber"; "Já não vi o que queria ver"; "Saio daqui com uma vontade de não voltar tão depressa". Acho que há esquerda e direita, há opções de esquerda e de direita, mas uma coisa são os conteúdos, outra são de facto as formas e os processos. E às vezes os processos são de direita.

Alguma vez pensou em desistir de A Barraca?

Nunca. Pensei, muitas vezes, em afastar-me, não estar exclusivamente presa na A Barraca, mas desistir não. Porque A Barraca é como um filho, não é? E a gente não desiste dos filhos. Mesmo que fosse um filho de faca virada para mim, não desistia.

Qual é a peça que se segue a O Ano da Morte de Ricardo Reis?

Estamos a fazer a peça A Incrível e Triste História da Cândida Eréndira e da Sua Avó Desalmada, de Gabriel García Márquez. É uma história muito bonita.

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