"Alguns eleitores de centro-direita desejaram a dissolução e desiludiram-se"

Entrevista ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa: o ciclo político

"O Presidente que leva o Governo ao colo". Esta visão do seu mandato existe sobretudo no eleitorado de centro-direita e é repetida muitas vezes por colunistas conotados com esta área política. Incomoda-o que uma parte do eleitorado que votou em si não se sinta representado?

Ora bom, vamos ver o seguinte: O Presidente tem um papel constitucional que eu sou suposto conhecer, não só como constituinte, mas também como professor de Direito Constitucional. O papel constitucional do Presidente é o seguinte: o Presidente não tem de ter confiança política pessoal no primeiro-ministro ou nos membros do Governo, tem de ter uma confiança institucional ou, se quiser, político-institucional; o que significa que o Presidente deve permanentemente garantir o respeito dos princípios fundamentais e dos direitos consagrados na Constituição e deve, ao mesmo tempo, também garantir o cumprimento de certas metas institucionais que no caso presente são o respeito do Direito Internacional, o respeito da pertença de Portugal à NATO, da pertença de Portugal à CPLP, da pertença de Portugal às Nações Unidas e, de forma particular, da pertença de Portugal à União Europeia, implicando isso o respeito do Direito Europeu, económico e financeiro, concorde-se ou não com ele. O Governo está à vontade de tudo fazer para o alterar, mas enquanto não for alterado tem de o cumprir. Portanto, cabe ao Presidente ir garantindo que há um cumprimento dessas metas e desses compromissos, dos quais o mais falado ao longo deste tempo foi o do défice, mas não é apenas o défice; portanto isto é a relação que um Presidente deve ter com um governo de acordo com a Constituição e no quadro daquelas prioridades que o Governo sabe que são prioridades institucionais que deve cumprir.

Depois, se olharmos para a experiência constitucional portuguesa veremos que olhando para todos os presidentes temos duas situações em que o Presidente interveio de forma relativamente rápida, que foi o caso do Presidente Ramalho Eanes, porque o Governo do então primeiro-ministro Mário Soares apresentou uma moção de confiança e foi derrotado e, portanto, houve uma queda do Governo e a necessidade de se formar um governo, chamemos-lhe socialista com centristas e com independentes; e foi o caso do Presidente Mário Soares porque foi votada uma moção de censura na Assembleia da República que o levou a ter de optar entre aceitar um governo que lhe era proposto ou dissolver o Parlamento. Nos outros dois casos, o Presidente Jorge Sampaio teve uma longa coexistência com o Governo do primeiro-ministro António Guterres e, no caso do Presidente Cavaco Silva, teve uma longa coexistência, e uma coexistência a que chamou cooperação estratégica e não apenas institucional, havia portanto uma confluência estratégica, com o primeiro-ministro José Sócrates que dura desde o início do mandato presidencial em 2006 até perto de 2009.

Temos, portanto, na prática política portuguesa, casos de presidentes que vêm de uma área política determinada e que coexistem com governos de outra área política durante um período considerável de tempo. Assim aconteceria com o Presidente Mário Soares com o primeiro-ministro Cavaco Silva durante o resto do primeiro mandato e pacificamente durante uma boa parte, ou uma parte, do segundo mandato.

No caso que me respeita, a situação é a seguinte: Portugal estava a sair do processo de défice excessivo, estava a sair, portanto, de um período crítico muito difícil e com certas prioridades económicas e financeiras muito urgentes e muito importantes. A primeira era, naturalmente, o controlo do défice. A segunda era a de recapitalizar e consolidar o sistema bancário que, cheguei à conclusão depois de iniciar o meu mandato, se encontrava numa situação mais complexa do que aquela que eu tinha imaginado como candidato. A terceira era a de fazer tudo isto num clima de, se possível, equilíbrio das contas externas e passos para o crescimento económico, sem o qual o controlo do défice era sempre muito precário e de muito curta duração.

Isso quer dizer que esse ciclo está a chegar ao fim?

Isso significa que foi um período muito complexo que exigia estabilidade política, exigia estabilidade legislativa, exigia estabilidade fiscal, exigia a estabilidade laboral; exigia uma estabilidade essencial para, por um lado, as instituições que desconfiavam de Portugal - e eram muitas, e desconfiavam do novo Governo, quando desconfiavam de Portugal desconfiavam do novo Governo -, deixarem de desconfiar e estou a falar de instituições internas e internacionais, sobretudo económicas e financeiras. Era, portanto, um longo processo em que a estabilidade política era essencial. Foi possível garantir a estabilidade política por isso. Quando, a partir do início de abril, em teoria, eu como presidente poderia ter dissolvido a Assembleia da República - penso que alguns dos eleitores de centro-direita esperaram isso ou desejaram isso ou ansiaram por isso e, nisso, tiveram alguma desilusão -, isso estava completamente longe do meu pensamento, teria consequências dramáticas em termos do Orçamento do Estado para 2016, que chegariam a termos tais que a situação do país seria verdadeiramente desastrosa. Foi possível fazer aprovar o Orçamento para 2016, o Orçamento para 2017 e estamos agora, decorrido quase um ano e meio, com alguns desafios que são iguais e outros desafios que são novos.

Quais são os iguais? Temos de continuar a controlar o défice, ele tem de descer e o Governo comprometeu-se com 1,5; temos de, além disso, acelerar o crescimento - eu já coloquei a bitola, para alguns até muito alto, porque coloquei-a na ordem dos 3% -, para ser possível cumprir os objetivos do equilíbrio externo e do equilíbrio interno. Só isso permitirá garantir o crescimento das exportações e do investimento que, por sua vez, permitem o crescimento da economia. Ao mesmo tempo temos de resolver o que falta resolver dos chamados NPL, isto é dos ativos problemáticos do sistema bancário. Portanto, a questão da consolidação da banca conheceu um ano, um ano e meio, de passos positivos, mas há passos ainda por dar. Tudo isto continua a exigir o quê? Continua a exigir a estabilidade política. Ainda agora, quando estive no México, na conversa com empresários no Fórum Empresarial, ficou patente que a primeira pergunta que é colocada ao Presidente da República Portuguesa permanentemente é esta: Portugal está estável politicamente? Depois pergunta-se: Já agora, a lei não muda?, Já agora os impostos não mudam?, Já agora, a legislação laboral não muda? Já agora, as condições sobre os custos de contexto não mudam?

Portanto, de cada vez que se pensa em fatores de crise ou de instabilidade, as pessoas têm de ter a noção exata de que isso significa - no caso português, que não é igual ao de outros países -, um período de tempo muito longo. Um período de tempo muito longo porque entre as condições para dar qualquer passo que ponha em causa o governo que existe ou, por maioria de razão, a Assembleia que existe, a convocação de eleições, a realização de eleições, a formação de governo, a entrada em funções do governo, temos meses que, mesmo que não encavalitem com o Orçamento do Estado, têm consequências verdadeiramente desastrosas para a economia e as finanças portuguesas. Por isso eu admito, para ir à sua pergunta, que algum eleitorado de centro-direita que esperava a dissolução da Assembleia da República em abril, ou se não era em abril, um pouco mais tarde no decurso do ano passado, ou que periodicamente pensa que esse é um caminho que se coloca, tem de compreender que há realmente prioridades nacionais e que uma prioridade nacional é esta, nossa, concreta, de natureza económica e financeira e essa exige estabilidade política que deve apontar para o cumprimento de legislaturas. É esse o ideal.

O Presidente Cavaco Silva chamou cooperação estratégica aos primeiros anos com o governo de José Sócrates. Como é que o Sr. Presidente Marcelo Rebelo de Sousa chama a esta cooperação que tem mantido com o Governo e que tem levado algum eleitorado de centro-direita a considerar que o Presidente tem levado o Governo ao colo e que o tem apoiado?

É uma cooperação institucional em que estão bem definidas quais são algumas metas que eu já referi, das quais o Governo não se deve afastar porque são compromissos internacionais mas têm consequências na economia e nas finanças portuguesas, como é evidente.

Em relação ao que pode dizer o Presidente da República sobre os diferentes partidos é consensual a ideia de que se trataria de uma interferência indevida de um Presidente se ele afirmasse que um determinado partido devia mudar de liderança para haver uma oposição mais dinâmica. O Sr. Presidente não pode dizer que o PSD deve mudar de líder, isso é evidente, mas não é igualmente estranho que defenda que esse líder se deve manter, como fez em novembro do ano passado na Conferência do Jornal de Negócios quando defendeu a estabilidade para todos, para o Governo, para a oposição e para as suas lideranças e voltou a fazer em declarações ao Expresso dizendo que Pedro Passos Coelho ainda poderia ser primeiro-ministro?

Eu penso que é muito importante para este objetivo de estabilidade política, e tenho-o repetido, que a área do Governo seja forte e coesa...

Forte e coesa?

Todos temos a noção de que esta fórmula governativa é uma fórmula original nunca ensaiada na vida política portuguesa. É verdade que se foi fazendo dia a dia, semana a semana, mês a mês, e que, portanto, quando arrancou não imaginava exatamente como é que seria o processo da sua concretização. Nesse sentido, é importante, para haver estabilidade política, que haja acordo sobre os orçamentos de Estado, sobre os programas de reforma e de estabilidade porque são documentos prévios fundamentais a apresentar à União Europeia, e esse acordo explícito ou tácito implica um mínimo de coesão interna e um mínimo de força do Governo e dos partidos que o apoiam no Parlamento. Eu sei que é um exercício difícil, todos nós sabemos que é um exercício difícil, até porque é um exercício nunca experimentado no nosso país.

Em relação à oposição...

Mas em relação à oposição é bom também que se reconheça que a missão da oposição não é fácil. Nós só tivemos um líder da oposição que antes tivesse sido primeiro-ministro e que tenha continuado depois de ter sido primeiro-ministro a exercer as funções de liderança - foi o Dr. Mário Soares. Mas que teve uma oposição muito acidentada, chegou mesmo, por causa de umas eleições presidenciais, a sair da liderança do partido e a regressar, e passou por uma travessia do deserto muito complicada até, mais tarde, se formar um acordo muito transitório chamado Bloco Central - PS/ PSD -, antes da sua candidatura presidencial. É preciso ver que o Dr. Mário Soares tinha tido um resultado eleitoral muito aquém do resultado da então Aliança Democrática. Aqui, o líder do PSD, o Dr. Pedro Passos Coelho, teve um resultado como líder de coligação superior ao resultado do Partido Socialista, que veio a formar governo e que está no governo, e, portanto, tinha de fazer essa experiência de passagem à oposição ficando no Parlamento, intervindo no Parlamento. Tenho de reconhecer que é uma tarefa muito difícil, uma tarefa muito complexa para quem foi primeiro-ministro em quatro anos e meio tão exigentes como aqueles que o Governo teve de defrontar durante a crise.

Considera que o PSD deve manter esta liderança sendo que o partido vai ter um Congresso em 2018?

Não, não, eu penso o seguinte: penso que é fundamental que as oposições, pois são duas e não uma, uma vez que onde havia uma coligação passou a haver dois partidos com estratégias e posicionamentos diversos e, até, candidaturas diferentes nalguns casos com relevância nas eleições autárquicas, que é importante que as oposições sejam fortes. Não há nada pior para um Presidente da República do que não ter dois termos de alternativa fortes. Porque no caso de existir uma situação crítica, aguda, insuperável num dos termos da alternativa é bom ter outro termo da alternativa que possa governar o país.

Isso significa que considera que as oposições são fortes?

Não, que é fundamental que assim como a área do governo tem de fazer tudo para ser forte também as oposições têm de fazer tudo para serem fortes. Até porque uma das realidades novas desta situação política é que ficou claro que, ao contrário do passado, pode acontecer que um partido, o partido mais forte da oposição ou a coligação, tenha uma votação superior a um partido, neste caso o partido do Governo, e isso não chegue para ser governo. Ficou claro que para ter a garantia de que vem a ser governo, o centro-direita deve apontar para a maioria absoluta, porque se ficar na maioria relativa corre o risco de haver uma solução governativa similar a esta. O que é uma exigência acrescida, pois tinha havido casos em que bastava a maioria relativa pelo menos transitoriamente. Aconteceu com o então primeiro-ministro Cavaco Silva aquando do seu primeiro governo.

Portanto, é importante que haja oposições fortes. Quem escolhe os líderes dos partidos são os seus militantes. Eu digo que enquanto o líder for líder é fundamental que seja forte e estável, se os militantes querem escolher outras lideranças são livres de o fazer. O pior erro que o Presidente da República poderia fazer era intrometer-se na vida partidária. Nós temos a experiência de outros países e temos o conhecimento teórico dessas matérias. O Presidente da República não está num plano partidário, estar a substituir-se aos partidos ou estar a intrometer-se na vida dos partidos é um erro de toda a dimensão.

O que eu quis dizer foi que a liderança que existe enquanto existir pela vontade dos militantes deve ser forte e a oposição feita deve ser, como eu várias vezes disse, uma oposição vigorosa. Não sou daqueles que pensam que a oposição não deve ser vigorosa; é evidente que defendo, em certos domínios, consensos nacionais, agora fora desses domínios é bom que haja não apenas uma oposição vigorosa, como também dois termos de alternativa bem claros para o futuro do país. Dito de outra forma, eu não sou defensor da excelência do chamado Bloco Central, não sou. O Bloco Central é uma situação de emergência, quando ocorreu, ocorreu durante um período muito curto de tempo; é de concretização muito difícil, já na altura a minha posição era oposta, mas eu penso que é positivo haver para o governo do país soluções diversas sobre a economia, sobre as finanças, sobre a sociedade, sobre a política nacional.

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