Eleições deixam bancada do PSD em clima de "guerra civil"

Negrão não foi além dos 39,7% e afirmou que há um problema de "ética" na bancada, deixando o grupo parlamentar em polvorosa
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A eleição do novo líder parlamentar deixou ontem a bancada do PSD em clima de guerra civil. Fernando Negrão contou 35 votos a favor, 32 brancos e 21 nulos num universo de 88 deputados (um dos parlamentares, Pedro Pinto, já tinha anunciado que não votaria). E se o resultado já expressa o mau estar na bancada social-democrata, as declarações posteriores de Fernando Negrão carregaram o tom do descontentamento.

"Há um problema, não de natureza política, mas de natureza ética, neste grupo parlamentar", afirmou Negrão, na declaração em que assumiu a liderança da bancada, afirmando que os 32 votos em branco "podem ser considerados um benefício da dúvida". Afirmações que deixaram incrédulos muitos deputados, que esperavam que Negrão não assumisse o cargo, face à maioria que não optou pelo sim - 53 deputados, somando os brancos e os nulos, num contexto em que não é possível o voto contra. Dois parlamentares deram expressão pública desse descontentamento. Foi o caso de Paula Teixeira da Cruz, que em declarações ao jornal on-line Observador devolveu "em dobro" a Negrão a acusação de falta de ética. A ex-ministra, que recentemente qualificou a escolha de Elina Fraga para a direção do partido como uma "traição", considerou também que "a liderança da bancada do PSD não está legitimada nem do ponto de vista político nem do ponto de vista jurídico".

Já Sérgio Azevedo, ex-vice presidente da bancada, escreveu no Facebook: "Não querendo pessoalizar, porque vai muito além disso, teremos que remontar ao plebiscito para a aprovação da Constituição de 1933, num Estado autoritário e fascizante, para se admitir o "voto branco" como um voto favorável ou, se quisermos, de não rejeição. Para mais, teremos igualmente de contradizer séculos de teoria política, ou no limite pôr em causa, uma certa doutrina, maioritária de resto, que considera o mesmo voto como uma "rejeição ativa". E não ficou por aqui. Para o deputado, "pior do que isso", e "aqui sim pessoalizando, são as suspeições de razão ética sobre colegas que supostamente teriam não votado mesmo integrando a lista que se apresentou a sufrágio". Por uma razão simples, conclui Sérgio Azevedo, "sendo o voto secreto isso é impossível de aferir".

Declarações "ridículas", reagiu já à noite Fernando Negrão, em entrevista à SIC Notícias, considerando que se trata de "opiniões minoritárias". O deputado admitiu um cenário em que deixará o cargo: "Abandonarei a liderança do grupo parlamentar se houver uma rebelião".

"Notáveis" na mira

Ainda que não assumidas publicamente, as críticas eram ontem partilhadas por muitos deputados. Uma das questões levantadas é que, ao assumir que os 35 votos favoráveis que recebeu vieram dos membros da lista com que se apresentou a sufrágio (que eram 37), Negrão está a apontar o dedo a todos os outros deputados, ou seja, a muitos "notáveis" do partido, entre os quais se conta ainda o antigo líder, Pedro Passos Coelho, que deixará o parlamento no final do mês.

"Há um problema, não de natureza política, mas de natureza ética, há um problema neste grupo parlamentar, porque houve pessoas - eventualmente duas, podem ser mais - que aceitaram integrar a lista e depois terão votado em branco", acusou Fernando Negrão. Contestando a leitura de que a maioria da bancada está contra si, o novo líder do grupo parlamentar atribuiu o resultado ao momento "de transformação" que o partido vive. E disse também ter falado entretanto com o líder : "Comuniquei ao dr. Rui Rio os resultados, expliquei-lhe a leitura que fazia dos mesmos e disse que, na minha opinião, assumiria a direção do grupo". "Se entende que deve assumir, tem o meu apoio", foi, segundo Negrão, a resposta de Rio.

Os 39,7% que Negrão teve ontem deixam o líder parlamentar social-democrata a grande distância das votações obtidas pelos seus antecessores. A começar por Hugo Soares, que no ano passado recolheu 85,4% dos votos - 76 votos favoráveis, 12 votos brancos e um nulo. Antes, Luís Montenegro, crítico de Rui Rio, foi sucessivamente eleito com 86%, 87% e quase 98% dos votos. Antes disso, a eleição para a liderança parlamentar admitia votos contra, mas mesmo neste sistema não se encontra, em anos recentes, uma taxa de aprovação tão baixa do líder da bancada. Acresce que o ex-ministro fez várias declarações públicas. Ao DN, questionado sobre expectativas em relação ao resultado, apontou para uma "direção forte". Ao Observador afirmou que se "ganham eleições com mais um voto do que a maioria".

Coligação de descontentamentos

O resultado ficou longe disso, num quadro que um dos parlamentares sociais-democratas explica em função de uma "coligação negativa" de descontentamentos.

Uma soma de insatisfações, sejam elas ainda com o congresso, com a contestação das distritais, com o afastamento de Hugo Soares da liderança e o que é visto por alguns como um ataque à autonomia do grupo parlamentar. Outro deputado, apoiante de Santana Lopes alinha pela mesma ideia. "Foi o resultado de um acumular de circunstâncias que, podendo ter sido evitadas, não foram", acrescenta."Desde a forma como foi imposta a candidatura de Fernando Negrão, que não passou de um falso sinal de união, passando pelo desrespeito a Hugo Soares, eleito com quase 90% dos votos, por parte da nova direção, e pela surpresa Elina Fraga, até ao descontentamento de grande parte das distritais com Rui Rio, por não terem nomes dos seus militantes nas listas para os órgãos nacionais. Tudo junto, só podia ter o resultado que teve", conclui o mesmo parlamentar.

Num clima de ajuste de contas, outro social-democrata sintetiza três "razões principais" para o sucedido: "primeiro porque se entendeu que a lista para a direção estava nivelada por baixo, segundo porque Fernando Negrão desagrada mesmo a muita gente, por duvidarem da sua capacidade para um confronto político sólido nos debates, terceiro porque foi uma votação contra o Rui Rio, pela forma como está a conduzir esta transição". O cenário de este ser também um cartão amarelo a Rui Rio é sublinhado por outro deputado, que critica o que diz ser uma gestão "desastrosa" de todo o processo.

E, novamente, a opinião de que Fernando Negrão não une o grupo. "Um nome forte teria sido dissuasor, assim fomentaram-se todos os outros descontentamentos", refere outro parlamentar social-democrata. Neste contexto, é frequentemente apontado o nome de Luís Marques Guedes - que recusou a regressar à liderança da bancada. Mas até que ponto é que esta recusa não podia ser ultrapassada é uma questão levantada nos corredores sociais-democratas.

"O momento é de enorme gravidade e exige reflexão por parte de todos antes de qualquer decisão ou tomada de posição. Temos de refletir muito bem sobre o que se passou, incluindo o Dr. Fernando Negrão", resume um parlamentar.

E agora?

Os resultados de ontem levaram, aliás, vários deputados a questionar a legalidade da tomada de posse de Fernando Negrão, alegando que o regulamento interno da bancada obriga à existência de uma maioria - ou seja, metade mais um dos votos expressos. Uma leitura que o novo líder contesta: "Se a eleição for impugnada, é, mas não espero que aconteça. Se não houve ninguém com coragem de concorrer contra mim, presumo que não se tomem atitudes dessa natureza". Um cenário que obrigaria a arguir a impugnação (ou seja, algum deputado teria que avançar em nome próprio), que seria depois decidida pelo Conselho de Jurisdição Nacional do Partido.

A bancada parlamentar deve reunir na próxima semana, num encontro que não se antevê pacífico. O que também está marcado para a próxima quarta-feira é um debate quinzenal com o primeiro-ministro, António Costa, o primeiro protagonizado pelo novo líder parlamentar. E a bancada social-democrata estará muito atenta à prestação, advertem desde já os deputados. "Fernando Negrão aumentou muito a pressão sobre si próprio", refere um parlamentar social-democrata.

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