E o PCP, enfia a carapuça do machismo?
Alguma coisa está a mudar na política portuguesa - e depressa. O fenómeno de popularidade das "mulheres do Bloco", reforçado com a candidatura e o resultado de Matias, mais o anúncio de Assunção Cristas como herdeira de Portas no CDS isolam o PCP e o PS num reduto de preponderância masculina. São já os únicos dois dos "grandes" partidos que que nunca tiveram (o PSD foi pioneiro, ao eleger Manuela Ferreira Leite em 2008) nem perspetivam ter nos tempos mais próximos uma liderança feminina.
Não será pois coincidência que, dez anos depois da aprovação da lei que impôs quotas mínimas (33%) de representação feminina nas listas partidárias e contra a qual o PCP votou, um líder de partido acusado de sexismo tenha achado que tinha de responder à acusação, e que tal tenha ocorrido com o comunista Jerónimo de Sousa. No dia das presidenciais, acossado por um resultado de Edgar Silva muito abaixo do esperado (3,95%), correspondendo percentualmente a menos de metade do das legislativas, e confrontado com o bom desempenho da candidata do BE, "partido rival", o secretário-geral teve uma saída que foi interpretada como "boca" a Marisa, mais uma das muitas graçolas sexistas que esta enfrentou na campanha: "Nós podíamos apresentar um candidato ou uma candidata assim mais engraçadinha, portanto, enfim..." Dois dias depois, tentava emendar: "Não estava a pensar em ninguém. Sinceramente não foi essa a intenção. Se foi ofensivo para alguém ou se alguém enfiou a carapuça retiro já o que disse."
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Não tivesse o partido uma imagem tão associada a uma esmagadora maioria masculina - no Comité Central, em 158 membros, só 37 (23%) são mulheres, e destas só a ex-eurodeputada Ilda Figueiredo se destaca como tendo algum "peso político"; nunca apresentou uma candidata à presidência e desde a saída de Odete Santos do Parlamento que não tem uma figura feminina "forte" - e é possível que as palavras de Jerónimo não fossem generalizadamente interpretadas como foram.
Até Lúcia Gomes, jurista de 35 anos e militante da JCP desde os 16 e do PCP há outros tantos, começou por achar o mesmo. "Quando li a primeira notícia - no Expresso - como foi só destacada a parte da "candidata engraçadinha" achei estranho, achei mal. Mas depois ouvi a declaração completa e achei que era uma crítica à campanha e à forma como decorreu, baseada em habilidades e características pessoais, sem se falar quase de ideias e de políticas." Asseverando que nunca sentiu "institucionalmente" sexismo ou machismo no partido - "Por parte das estruturas ou no discurso nunca identifiquei isso, pelo contrário: aprendi muito em relação aos direitos das mulheres e à luta pela igualdade no PCP. Outra coisa são situações com pessoas; não me estou agora a lembrar de uma mas já sucedeu, com certeza" -, Lúcia diz não sentir que lhe emprestam "mais ou menos credibilidade por ser jovem e mulher."
[destaque:"Votar em alguém por ser mulher pode ser perigoso", diz Lúcia Gomes]
Quanto ao nível de representação das mulheres e respetiva visibilidade, admite que "no órgão máximo são ainda poucas". Mas, adverte, "o partido tem vários órgãos de decisão. E é o que tem mais eleitas a nível autárquico [informação que não foi possível ao DN confirmar]. Claro que as mulheres continuam a confrontar-se com problemas exógenos ao partido. As questões dos horários de trabalho, dos salários, da maternidade e da paternidade... A participação política das mulheres é antes de mais uma questão política e económica".Além disso, conclui, "não vejo que ter líderes mulheres só por serem mulheres faça diferença. Já tivemos muitas mulheres líderes que nem por isso lutaram mais pela igualdade. Thatcher por exemplo foi um verdadeiro carrasco, a Lagarde exige medidas terríveis aos países..."
Admite no entanto que há uma apetência crescente para votar em mulheres, para exigir a sua presença em cargos de visibilidade. "Sim, ouvi isso muito nesta campanha, que as pessoas iam votar numa mulher por ser mulher. Ouvi até mais em relação à Maria de Belém do que à Marisa. Escrevi um texto sobre isso no blogue Manifesto 74. Votar em alguém porque é mulher pode ser um pouco perigoso, é quase uma coisa cosmética, pode não representar uma vantagem."
Pode ser. Mas quando no Comité Central se constata, por exemplo, que o membro mais jovem é Francisca Goulart, de 21 anos, estudante, ou que muitos estão identificados como "empregados", "operários" ou "intelectuais" sendo a maioria funcionária do partido, não é de simbolismo que se trata? Porquê, então, negar o carácter simbólico da pouca representatividade das mulheres?
Helena Neves, 70 anos, não tem dúvidas: "O PCP devia ter dado o exemplo e chamado mulheres para cargos de direção de grande visibilidade. Mas pelo contrário. E sempre houve uma escolha predominante pelas bem-comportadas, as que não provocavam grandes discussões." Helena entrou no PCP aos 17 e saiu há 24, em 1992, tendo, de 1999 a 2002, integrado como independente o grupo parlamentar do BE. Fazendo parte do núcleo fundador do Movimento Democrático das Mulheres, organização satélite do PC, foi diretora da extinta revista Mulheres, editada pela Caminho mas controlada pelo partido, onde fez equipa com Maria Teresa Horta, com quem partilha as memórias de um projeto de que ainda fala com entusiasmo e dos constantes dissabores com a hierarquia do partido. "Como diretora passava a vida a ser chamada e a ter enormes discussões. Sobre quê? Tudo. Uma vez fizemos um artigo sobre se os homens podiam vestir cor-de-rosa e foi um escândalo. Outra vez, um jornalista do Expresso que colaborava connosco e fez um artigo sobre pais e mães divorciados que foi considerado como "um incentivo ao divórcio"." Tudo isto se passava entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980, com o controlo da revista a passar por vários dirigentes, incluindo Domingos Abrantes [atual conselheiro de Estado indicado pelo partido - outro homem] e Zita Seabra. "O melhor período foi com a Alda Nogueira, que ao fim de longas discussões acabava sempre por concordar. Outros eram muito mais fundamentalistas."
[destaque:Helena Neves não tem dúvidas: "O PCP devia ter dado o exemplo e chamado mulheres para cargos de direção de grande visibilidade"]
Apesar das dificuldades, porém, assegura que a revista "conseguiu avanços extraordinários em termos de mentalidades. Recebíamos imensas cartas de mulheres e de jovens, com questões sobre divórcio e sexualidade". No partido é que se avançava pouco. "A perspetiva era extremamente conservadora. Dava-se espaço às camaradas para lutarem sob o ponto de vista da igualdade salarial e de direitos políticos, e a mulher era encarada como elemento necessário e tanto mais necessário quanto conseguisse mobilizar outras. Mas sempre vista como mãe ou mãe em potência. Por um lado é compreensível, pelo enraizamento da cultura patriarcal. Mas era a completa contradição com a cultura revolucionária." Guarda aliás um remorso, "um peso enorme" - o de, quando em 1979 a jovem Conceição Massano é julgada, com o namorado, pelo crime de aborto (denunciado por violação do seu diário na escola de enfermagem que frequentava) ter falhado a assinatura da petição em seu favor. "Estava nessa altura no Avante! E discuti a questão, disse que ia assinar mas fiquei completamente isolada. E penso ainda hoje como foi possível ter faltado à minha autenticidade."
Por essa altura, aliás, começava no partido a discussão sobre esse mesmo tema, o aborto, e Helena fez parte do organismo criado para esse efeito e que debatia com Cunhal. "O Álvaro até era mais aberto. Houve imensas pessoas incrivelmente cultas que se manifestaram contra. Havia discussões por exemplo sobre se o homem não tinha de dar consentimento... Até as mulheres sindicalistas tiveram posições muito conservadoras." Suspira: "É um partido muito conservador, e o reflexo disso vê-se agora ainda no vocabulário que o Jerónimo emprega. Aliás saí precisamente por achar que não houve no partido um acompanhamento da evolução das coisas em termos históricos e sociais. Quando se falava de uma série de coisas relacionadas com os direitos das mulheres que passavam pela questão das mentalidades, eles diziam: "Isso fica para depois."" Esse imobilismo, crê, "está a refletir-se na votação. Se no momento em que saí achava que já havia uma profunda desatualização, o meu diagnóstico é de que não se evoluiu." A entrada recente de jovens e o destaque dado a alguns e algumas, como a deputada Rita Rato, deu-lhe "grandes esperanças": "Fiquei muito satisfeita. Esperava que a intervenção dessas jovens se concretizasse noutra ação." Mas, conclui, nada se passou. "Qual é a visibilidade de uma ação relativamente às questões sobre os direitos das mulheres? Mesmo sob o ponto de vista laboral, que era onde o PCP mais intervinha na questão feminina, não tenho visto nada."
A ex-jornalista, escritora e poetisa Maria Teresa Horta, que, nove anos mais velha do que Helena, saiu do PCP na mesma altura, sorri. "Acho que o PCP não era mais machista do que os outros partidos. Aliás todos os partidos portugueses são machistas, com a provável exceção do Bloco porque neste momento tem um grupo de mulheres muito bom e com consciência feminista. Portanto claro que o PCP era machista e que a maioria esmagadora dos camaradas era." E quando não havia machismo, conta, havia "antifeminismo": "No MDM, por exemplo. Nunca fui do MDM nem gostava. Tinham uma posição antifeminista. Não se falava de sexualidade, falava-se de creches. No PC falar das questões das mulheres era considerado uma coisa reacionária, porque o que era importante era falar da luta dos operários. E quando dizíamos: "Então e as operárias que fazem o mesmo trabalho e ganham menos?", eles diziam: "Ó camarada, não é bem assim.""
[destaque:Maria Teresa Horta:"No PC falar das questões das mulheres era considerado uma coisa reacionária, porque o que era importante era falar da luta dos operários"]
Zita Seabra, 67 anos, concorrendo com a recentemente desaparecida Cândida Ventura ao troféu da dissidente mais odiada (expulsa em 1988, pouco depois entrou no PSD), foi uma das responsáveis pelo controlo da Mulheres. Recorda que "havia zonas do país em que as sedes recusavam pôr a revista à venda" e que as pessoas que a faziam - e ela própria - eram acusadas de "desvios feministas". Que eram o quê? "Considerar mais importante a luta mulher/homem do que a luta de classes. Era um desvio grave."