As memórias da revolução (nada frágil)
Rosto de boneca platinada, pele muito branca, bâton encarnado, olhar desenhado a eye liner, gestos lentos, de teatro japonês, roupa anos 50, sapatos de salto agulha, olhar treinado no desprezo imperial de quem todos os dias era "arrasada na rua: arrasada a entrar no elétrico, arrasada no elétrico, arrasada a sair do elétrico. Era o tempo todo. Insultavam-me por causa do cabelo, das unhas, da roupa, por tudo. Tudo o que era diferente era alvo de chacota, naquela altura."
À distância de 30 anos, Rosário Lemos, hoje com 48, secretária da administração de uma multinacional e mãe de uma menina com 14, tem riso na voz. "O meu melhor amigo, o Luís Miguel, era homossexual e andávamos sempre juntos. Na altura ser homossexual era visto como uma aberração, ninguém assumia, e pela maneira como ele se vestia era super insultado. Uma vez até houve um taxista que se recusou a transportar-nos. Tínhamos, acho, uma mentalidade muito à frente, nunca nos passou pela cabeça discriminar pessoas pela orientação sexual ou por serem diferentes. Levou muito tempo para que a sociedade portuguesa nos apanhasse - e acho que, apesar das mudanças das leis, ainda não houve uma evolução tão grande como deveria."
Rosário, que toda a gente conhecia - e ainda hoje os amigos - como Rosarinho, era, aos 16/17 anos, um dos mais novos elementos do pequeno grupo de talvez umas trezentas pessoas (se tanto) que fez o início daquilo a que se pode chamar hoje a revolução do Bairro Alto. A viver na zona do Calvário com os avós, teve cedo, o que não era à época nada comum, a liberdade de sair à noite e de se vestir como bem entendia, mesmo se, lembra, o avô, mecânico de máquinas de lavar, "deixou de me falar durante uma semana quando platinei o cabelo." O mesmo avô, contudo, confeccionou verniz preto, então impossível de encontrar, para a neta ("Foi um sucesso, o problema foi quando o quis tirar, usou uma tinta que só saía com diluente, fiquei com as unhas todas amarelas"), e pintou-lhe um vestido que ela desenhou e costurou, com a ajuda da avó, num pano de lençol. "Pendurou-o no quintal e mandou uns pingos com uma tinta preta para tecido que comprei na casa ferreira." O tão maravilhoso avô também fez uma mala para Rosarinho com "uma caixa de um secador", e brincos com botões: "Comprava botões antigos nas retrosarias e molas de brinco na Casa Batalha e ele colava."
Num Portugal acabado de sair da ditadura e onde praticamente nada se encontrava de "diferente" à venda nas lojas, os membros do pequeno grupo que começou a frequentar o Rock House, uma pequena discoteca na rua Diário de Notícias com uma clientela muito jovem e muito vanguardista em termos estético, que eram conhecidos como "futuristas" a partir do termo usado para qualificar bandas como os Spandau Ballet e Duran Duran - qualificação que, diga-se, os frequentadores do Rock House rejeitavam por acharem essas bandas "foleiras" --, o Trumps (junto à rua da Escola Politécnica) e depois, a partir de 1982, quando abriu, o Frágil, inventavam tudo, criavam tudo e partilhavam tudo. Das poucas revistas estrangeiras que se conseguiam comprar em Lisboa e onde se inspiravam esteticamente, como a Smash Hits, ao nome e localização das lojas onde se podiam comprar as relíquias anos 50 e 40 que toda a gente queria usar ou tecidos para a roupa que costuravam em casa ou encomendavam em modistas, quando havia dinheiro para isso, porque a maioria, estudante, só contava com parcas mesadas. "Aqui não havia nada do que havia lá fora. Ouvíamos um tipo de música e vestíamo-nos de acordo com a estética correspondente. Havia muito intercâmbio de informação, se descobríamos um sítio com coisas giras dizíamos uns aos outros. Íamos muito a lojas de roupa de segunda mão, a Madame Bettencourt, que era no Largo da Misericórdia, e a D. Irene, que já bem me lembro bem onde era. A minha avó não gostava nada que comprasse lá coisas, dizia que era "roupa de mortos", e fazia sempre questão de lavar tudo, às vezes estragava logo as coisas porque encolhiam."
No bar que ficou a simbolizar o deslumbre desses anos, o Frágil, entrou pela primeira vez no ano da inauguração. "Achei que era só gente mais velha, estava habituada ao Rock House, que era para pessoas da minha idade, e não tão bem vestida como nós." Ri. "E não se dançava, como no Rock House e no Trumps, estava tudo a conversar. Só se começou a dançar no Frágil mais para a frente."
No mundo de Rosarinho, em que eram referência pessoas que hoje, nas celebrações do Frágil e do Bairro Alto surgidas nos jornais, quase nunca são referidas por aquilo que as distinguia e fez notáveis - ter a imponderabilidade de uma allure, da pose, da beleza e da indumentária, só fazendo sentido para quem as conheceu e reconheceu -, o bar da rua da Atalaia contrastava pela sobriedade com a exuberância camp do Trumps e a fraternidade desafiadora do Rock House, que, com os seus cabelos ripados a 20 centímetros de altura, o negro total da roupa numa época na qual as pessoas só usavam o preto no luto e os ombros desproporcionados, à Blade Runner (filme de Ridley Scott de 1982), formava um grupo completamente à parte, que quando subia o Chiado, em modo imperial, suscitava escândalo e até ameaças físicas.
"Pessoas dessa época que via como referências? Lembro-me da Zica [Isabel Gaivão Risques Pereira, 1962/2013], o Zé da Guiné [José Osaldo Kutika Barbosa, 1959/2013], claro, a Guga, o Bruno, o Chico e o Quecas." Por acaso ou não, só alcunhas e nomes próprios e, à exceção de Zé da Guiné, que a história guarda como o criador das Noites Longas (a partir de 1984) "ilustres desconhecidos" para os media e para o povo em geral, apesar da impressão deixada em quem com eles conviveu. Estamos longe da ideia de intelligentsia que ficou associada ao Frágil, com o seu desfile, agora revelado nas fotos celebratórias que vão surgindo no site fragil.luxfragil.com (lançado em setembro e em atualização permanente), de nomes notáveis das artes, da literatura e do jornalismo, dos artistas plásticos Pedro Cabrita Reis e restantes Pedros (Croft, Calapez, Casqueiro, Proença) a Julião Sarmento, Ana Vidigal e Fernanda Fragateiro, dos críticos de arte Alexandre Melo e João Pinharanda ao ensaísta Eduardo Prado Coelho, dos jornalistas Augusto M. Seabra e Clara Ferreira Alves à crítica literária e escritora Helena Vasconcelos. Agora com 65 anos, Helena era uma das "pessoas crescidas" que frequentaram o Frágil desde o início. Então a viver com Julião Sarmento, costumavam sair depois do jantar para ir ao bar de Manuel Reis "conversar". "
À época hospedeira da TAP, conhecera o proprietário do Frágil quando ele trabalhou na empresa, "em terra". E seguiu-lhe o percurso, primeiro na loja de roupa Jonatas, já no Bairro Alto, e depois na abertura do bar que se faria mito. Nascida em Moçambique e viajada, Helena tinha em relação à maioria dos novos frequentadores do Bairro Alto a vantagem de poder comprar coisas fora. Mas mesmo assim, recorda que "as roupas tinham de se inventar - era tudo criado na hora. Trazia revistas de Nova Iorque, discos, não havia nada em Portugal. Às vezes eu e o Julião, quando ainda vivíamos no Chiado, tínhamos umas 30 pessoas em casa a ver revistas."
Ainda assim, nota, "havia um ar do tempo que as pessoas, mesmo sem quase nenhum acesso a informação vinda de fora, apanhavam. Não se notava, naquelas pessoas que faziam parte do grupo do Bairro Alto, uma grande diferença estética em relação às que eu via em Londres e nas outras cidades cosmopolitas que visitava." À distância, Helena vê no Frágil e no Bairro Alto, onde se sentia como "tendo passado uma fronteira, porque ali, ao contrário do que se passava no resto da cidade, ninguém nos julgava, ninguém mandava bocas -- havia um pacto entre aquela população de uma classe social baixa, num bairro considerado "arriscado", "marginal", e nós --", um refúgio do paroquialismo, "algo de filosoficamente muito claro, a recusa de todas as tradições." Que implicava também, reconhece, "uma enorme arrogância, e um sentimento de superioridade, o de que nós é que éramos a vanguarda, nós é que sabíamos." Respira fundo. "Tínhamos a noção de que estávamos a fazer uma rutura."
Difícil avaliar o extraordinário disso no país de hoje, no Bairro Alto de hoje, na noite massificada de centenas de bares e milhares de pessoas e na pulsão de uniformidade que se revela aos olhos de Helena quando diz às netas "vocês querem vestir-se todos de igual, nós queríamos ser o mais diferente possível." Mas talvez aquilo que Leonaldo de Almeida, o Nanau que começou a pôr música na abertura do Frágil e continua hoje no Lux, aos 60 anos, vê como "andar tudo de uniforme" seja apenas a descontração de poder ser (com maiúsculas) sem ter de o proclamar, sem ter de abrir caminho arrostando raiva e agressões sortidas. "Naquela altura não existia a banalidade, era tudo especial. Mas não era fácil", conclui Nanau. E não terá sido essa a grande conquista, que agora seja?