Abstinência sexual nos recasados divide Igreja. Será uma "proposta ridícula"?
Leitura que o cardeal patriarca de Lisboa fez das orientações do Papa Francisco sobre a família está a causar polémica
De um lado estão os que apoiam a posição do Patriarcado de Lisboa, que defende que é redutor dizer que D. Manuel Clemente aconselha os recasados católicos a absterem-se de ter relações sexuais, do outro estão aqueles que consideram que o patriarca falhou e mostra pouco conhecimento sobre a realidade do casamento. A dividir teólogos e padres está um documento publicado pelo cardeal patriarca de Lisboa com orientações sobre o acesso dos católicos em situações "irregulares" aos sacramentos.
Na carta publicada esta semana, D. Manuel Clemente diz que deve ser proposto aos casais em situação irregular (quando o primeiro casamento não é nulo) a possibilidade de viverem "em continência na nova situação". Na sequência da polémica causada pela afirmação, Nuno Rosário Fernandes, diretor do departamento de comunicação do Patriarcado, diz ao DN que "é redutor e errado dizer que é o patriarca que o propõe", pois o que é dito por D. Manuel "já foi afirmado por João Paulo II no Familiaris Consortio, é referido pelo Papa Francisco no Amoris Laetitia e foi também frisado pelos bispos de Buenos Aires".
Destacando que o cardeal tem assumido a posição de Francisco, o padre esclarece que "o documento diz que os padres não devem deixar de propor a continência, como estava definido anteriormente, mas tendo em conta as dificuldades que pode ter a sua aplicação, há a possibilidade de recorrer ao sacramento da confissão".
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Para Teresa Toldy, doutorada em teologia, a afirmação em causa "é reveladora da produção de discurso por pessoas que, quando falam do casamento de maneira dura e rápida, não sabem do que estão a falar e correm o risco de fazer propostas ridículas". A investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra considera que a mesma "revela um alheamento completo em relação à vida dos casais". "Como é que depois podem ajudar a fazer discernimento se não têm a noção do que é a vida de um casal?", questiona, acrescentando ter dúvidas sobre se "houve compreensão do que disse o Papa Francisco".
O padre José Manuel Pereira de Almeida reconhece que "a expressão usada talvez não tenha sido a mais feliz para ser entendida por pessoas com linguagem não eclesiástica", mas esta é uma "tradição antiga" da Igreja. "Há circunstâncias em que fará sentido propor. Mas as pessoas decidem o que lhes parecer mais adequado", refere o especialista em teologia, sublinhando que a ideia do documento "é integrar, sem excluir ninguém". Em Lisboa, "há muitos casais em que pelo menos um deles é recasado e que se encontram perfeitamente integrados, com sacramentos".
Já Anselmo Borges, teólogo e padre da Sociedade Missionária Portuguesa, defende que o documento "tem a intenção valiosa de mostrar a importância da família - é louvável -, mas corre o risco de ficar inválido por causa de duas afirmações". A que diz respeito à abstinência sexual "não faz sentido, é contra a natureza das coisas". No centro da polémica está ainda a ideia de que, após um período de discernimento e, se a Igreja assim o entender, "pode ser conveniente" que o acesso aos sacramentos se realize "de modo reservado". Para Anselmo, esta sugestão "tem como pressuposto comunidades cristãs não acolhedoras, não adultas".
Uma opinião semelhante é partilhada pelo Movimento Nós Somos Igreja, que, como explica ao DN Maria João Lemos, considera que as palavras do cardeal patriarca "estão fora do contexto criado pelo Papa Francisco". "Gostaríamos que houvesse palavras de compaixão e misericórdia. Não vejo razão para uma tomada de posição tão radical", adianta.
Para o monsenhor Feytor Pinto, a carta "é um documento muito interessante", que chama a atenção para a importância de "acompanhar os casais, discernir com consciência e integrar as fragilidades". Sobre a polémica, considera que "as pessoas dão muita importância a coisas que não são importantes". A missão dos padres, lembrou Feytor Pinto, "é iluminar os casais" para que decidam o que fazer.