A gripe que começou nos EUA mas que ficou conhecida como espanhola

Surto manifesta-se no Velho Continente em três vagas, sendo a segunda e a terceira as mais mortíferas. Notícias da gripe em Espanha não estão sujeitas a censura, o que explica a popularização da pandemia sob o nome deste país
Publicado a
Atualizado a

Um surto de gripe atinge as trincheiras na primavera de 1918, registando-se os primeiros casos em abril. Passa rapidamente da frente de batalha para as cidades e restantes localidades; ultrapassa fronteiras; espalha-se por toda a Europa. O nível de contágio é elevado. Uma segunda vaga, mais intensa e mortífera, regista-se a partir de setembro, com casos em todo o mundo. Com o inverno na Europa - e quarto ano da Primeira Guerra Mundial - surge uma terceira vaga, também mortífera, que vai durar até ao verão de 1919.

Logo no início da pandemia, em março/abril de 1918, Madrid é a capital europeia mais afetada. Nas trincheiras, só do lado francês, registam-se nesse ano mais de 22 mil mortos comprovadamente devido ao vírus. Ainda em França, nos meios civis o panorama é ainda mais desolador: "No hospital da cidade de Joigny, uma pessoa morre a cada hora que passa. Em Lyon, onde faltam caixões, o transporte dos cadáveres tem de ser improvisado e os enterros decorrem até durante a noite. O mesmo se passa em Paris, onde na última semana de outubro morreram 300 pessoas por dia" (Vie et Mort des Français 1914-1918, Ed. Hachette, 1960).

O elevado nível de mortalidade leva à comparação com a peste negra, que vitimou quase um em cada três europeus na Idade Média, ou seja, cerca de 20 milhões. Número idêntico é referido para a pandemia de 1918/19, embora algumas estimativas coloquem as mortes em 25 milhões ou em valores mais elevados. Como termo de comparação, o número de mortos militares na Primeira Guerra Mundial foi de 13 milhões.

Perante o surto, os médicos ficam perplexos sobre as causas e formas de tratamento. Por outro lado, as consequências da guerra, as condições de vida agravadas pelo racionamento e a privação de alimentos, a falta de condições e de hábitos de higiene ajudam à propagação. Em particular nas trincheiras, onde proliferam ratos, moscas, pulgas, os soldados estão forçados a partilhar espaços exíguos sem quaisquer condições e os cadáveres em decomposição voltam a surgir à luz do dia devido aos bombardeamentos - tudo favorece a propagação do vírus gripal.

Um estudo de 2014 ("Génese e Patogenia da Pandemia do Vírus Gripal H1N1", de M. Worobey, G.-Z. Han e A. Rambaut, Proceedings of the National Academy of Sciences, EUA) estabeleceu que o vírus manifestou-se primeiro em 1917, em bases onde se preparavam os militares que vinham combater na Europa. Por exemplo, no Kansas, foram entre 50 mil e 70 mil a receber formação neste estado durante três meses antes de embarcarem para a Europa no mesmo ano. Um outro estudo, de 2008, coloca a eclosão do surto em bases do Colorado do Sul. De modo geral, em todas as bases ocorreram surtos. A gripe foi letal nos próprios EUA: mais de 550 mil mortes - número de vítimas superior às baixas militares dos EUA nas duas guerras mundiais, que foi de cerca de 525 mil.

A explicação espanhola

Apesar da sua origem extraeuropeia, a pandemia ganha a designação de "gripe espanhola" por não haver censura sobre notícias vistas como sensíveis ou desestabilizadoras neste país - a Espanha não era beligerante na Grande Guerra. Por isso só mais tarde surgirão notícias sobre a gripe, muitas vezes envoltas em explicações conspirativas, devido à violência com que se manifesta. Do lado dos Aliados, a disseminação do vírus é associada ao lançamento de gases pelos alemães, esquecendo que neste país a gripe também provoca vítimas. Só em outubro de 1918, havia registo de 420 mil casos verificados na Alemanha.

Outras teses apontam para conservas provenientes de Espanha e em que teria sido inoculado o vírus pelos serviços secretos da Alemanha. Outro tanto teria sucedido com laranjas de proveniência espanhola. Teses que procuram sustentar-se na dimensão da pandemia e às notícias que chegam deste país.

Qualquer erro no isolamento dos doentes tem consequências graves. E aqueles que conseguem sobreviver muitas vezes acabam por ser vítimas de outros vírus oportunistas que se desenvolvem devido à extrema debilidade do organismo.

Segundo o estudo de Worobey, Han e Rambaut, o vírus seria o resultado do encontro de um vírus humano com um vírus de gripe aviária, estando o primeiro "em circulação desde 1900", mas a nova síntese revelar-se-ia mortal para as populações não afetadas pela variante humana do início do século XX, o que explica a elevada mortalidade na faixa dos 29 anos em diante. Uma outra explicação para a origem da pandemia, considerada como mais provável até ao estudo de 2014, considerava ter-se assistido a uma mutação do vírus H1N8, em circulação entre 1900 e 1917, e dos genes aviários N1, de que resultou o vírus H1N1, variante distante do vírus da pandemia de 2009, a chamada gripe suína.
Se a dimensão da pandemia é conhecida na Europa e nos EUA, o impacto que teve na Ásia, onde se pensa que foi particularmente mortífera na China (país referenciado como outra das possíveis origens do vírus) e na Índia, permanece alvo de conjeturas.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt