10 mil portugueses participam em ensaios clínicos
Pedro não se lembra do dia ou da hora. Sabe que ia a caminho do Algarve e que tinha começado o ensaio clínico há pouco mais de um mês quando lhe ligaram do Hospital de Santa Maria e lhe disseram: "Mais um mês e poderás estar curado." "Chorei. Andei muitos anos à espera de ouvir aquilo", conta ao DN. Tem 50 anos, desde 1999 que sabia estar infetado com o vírus da hepatite C e agora f az par t e do grupo de 16 doentes que pode dizer que está curado. O ensaio clínico foi a sua oportunidade de ouro. Sem ela, Pedro não teria tido o final feliz que tanto queria. "Sinto-me iluminado. Quando soube o diagnóstico pensei que ia morrer, agora parece que nasci outra vez. O tratamento durou t r ês meses, dez comprimidos por dia e sem efeitos secundários. Só lamento que esta não seja uma oportunidade para todos", admite.
Em Portugal, há 9759 doentes que participam em 351 ensaios clínicos. "Destes, 14 são de fase I, 62 de fase II, 253 de fase III e 22 de fase IV (ver ao lado)", refere fonte do Infarmed, embora sem a certeza de que todas as pessoas referenciadas estejam a participar. Grande parte dos testes estão concentrados na área oncológica e imunomoduladores, doenças infecciosas, sistema cardiovascular, sistema nervoso central e gastrointestinais. Desde 2006 que a realização de ensaios clínicos estava a diminuir. O pior ano, em pedidos e em aprovações, foi 2011, com 88 e 87, respetivamente. Mas os últimos dois anos mostraram uma recuperação, com 114 ensaios submetidos e 116 aprovados.
Para muitos, a última esperança
Uma das dificuldades é encontrar o número de doentes para as vagas disponíveis. Um estudo da Apifarma, apresentado no ano passado, mostrava que, em média, cerca de 30% das vagas ficavam por preencher. Um histórico de recrutamento insuficiente poderá justificar o número reduzido em comparação à maioria dos países europeus, como Espanha, Reino Unido, Holanda ou Bélgica. Abaixo de Portugal, e no que respeita ao resto do mundo, só a Índia, Brasil ou Turquia. O receio e a pouca informação disponíveis são dois entraves.
"Temos alguma dificuldade em que os doentes aceitem participar em ensaios por não haver tradição, há medo e falta de informação. A sociedade ainda não está preparada, embora, neste momento, j á haja algum interesse até dos hospitais em mudar esta realidade, que, muitas vezes, é a melhor opção para o doente. Nas normas internacionais, uma das opções é que se pondere que o doente entre em ensaios clínicos. Faz parte dos cuidados-padrão a dar ao doente quando esgotadas as alternativas", diz ao DN Luís Almeida, diretor geral da Blue Clinical.
Isabel Fonseca Santos, coordenadora do grupo de trabalho de investigação clínica da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica ( Apifarma), reforça: "Os ensaios clínicos podem muitas vezes ser a única esperança de tratamento para alguns doentes, que com a sua participação estão também a praticar um ato de generosidade para que outros doentes possam mais tarde beneficiar da inovação." Talvez por haver essa consciência, são cada vez mais os doentes que querem participar em ensaios clínicos.
Sem forças e à espera
Aos 70 anos Maria Odete tem apenas um sonho: ficar curada da hepatite C. Já enfrentou uma variz esofágica e está na lista para transplante de fígado. Quer muito ter acesso aos novos medicamentos que têm altas taxas de cura, já que os tratamentos atuais, que usam interferão, não são opção. Enquanto isso não acontece, ela e o filho Ivo procuram a melhor alternativa: um ensaio clínico. "Gostava muito de participar e aceitaria a oferta com a melhor vontade. Estou numa situação em que tenho mais a ganhar do que a perder", diz Maria Odete. "Pesquisei e o que encontrei referia-se a ensaios que já tinham terminado em Portugal. Foi mais fácil encontrar dados sobre o que estava a acontecer nos EUA e em outros países da Europa do que cá. A informação está dispersa e é difícil aceder. Já estava sensibilizado para a questão, mas depois de ver o sucesso de alguns doentes ainda quis saber mais", explica o filho Ivo. Lamenta que nunca nenhum médico tenha falado em ensaios. Procurou ajuda junto da SOS Hepatites e sabe que em breve serão feitos testes nesta área, mas as vagas estão preenchidas. A referenciação de doentes de um hospital para um ensaio que se realiza noutro é um processo complicado. Aos 70 anos, Maria Odete tem apenas um sonho: ficar curada da hepatite C, que há muito lhe tirou a vida que conhecia. "Sinto-me muito fraca, sem força e já tenho medo de sair sozinha. Não sei como apanhei a doença. O diagnóstico foi feito em 2001, quando pedi à médica de família para fazer análises de rotina. Foi uma surpresa", conta. Ao seu lado, está o filho Ivo. Tem sido ele o guerreiro ao lado da mãe. Maria Odete tem de tirar líquido da
Tempos de mudança
A nova legislação para a investigação clínica, lançada este ano pelo Ministério da Saúde, é um sinal de investimento na área. "Estamos a mudar. A legislação cria o registo nacional de estudos clínicos, que vai informar sobre os ensaios que estarão disponíveis, a realizar e sobre estudos observacionais", refere Luís Almeida, da Blue Clinical. O sistema informático, que está a ser desenvolvido pelo Infarmed, está em fase de orçamentação.
Isabel Fonseca Santos, da Apifarma, refere que o registo "poderá agilizar processos e fornecer indicadores de performance e estabelece prazos de aprovação mais curtos que poderão ajudar a atrair ensaios clínicos para Portugal". Embora a situação tenha melhorado, o País tem de se tornar mais competitivo. E para isso é preciso também que haja mais tempo para investigação. "Há falta de disponibilidade das equipas de investigação face a um peso assistencial muito intenso. Sempre tivemos bons investigadores e centros que se destacaram pela qualidade de investigação", diz, acrescentando que "estamos a viver uma janela de oportunidade, uma vez que t anto o Governo como as autoridades competentes e alguns administradores hospitalares já reconhecem a mais valia que os ensaios clínicos podem trazer para Portugal".
Mais de 90% dos ensaios vêm do estrangeiro, promovidos por laboratórios, que estão a desenvolver novos medicamentos, e de estudos europeus. A Blue Clinical ajuda a trazer estes ensaios para Portugal. "Estamos a apoiar hospitais e médicos que querem participar em ensaios. Já temos uma carteira de 900 profissionais e protocolos com várias unidades como Administração Regional de Saúde do Norte, centros hospitalares da Cova da Beira, Baixo Vouga e Alto Ave e os hospitais Garcia de Orta e Figueira da Foz. Procuramos ensaios que desejem realizar", diz Luís Almeida.
O estudo da Apifarma mostrava que se Portugal duplicasse os ensaios clínicos em dois anos, poderíamos gerar cerca de 71 milhões de euros de valor económico. Mas o investimento é grande. Numa perspetiva geral, o custo de um ensaio poderá variar entre os 30 mil e os 500 mil euros. A lei da investigação clínica também cria um fundo para investigação clínica, à qual podem concorrer investigadores individuais ou equipas do Serviço Nacional de Saúde ou instituições do ensino superior. "O financiamento do Fundo é assegurado por várias receitas, nomeadamente uma transferência anual até ao limite de um milhão de euros proveniente do saldo orçamental do Infarmed", diz o organismo. As receitas começam em janeiro de 2015.
Já temos casos de sucesso em Portugal. A Celgene, multinacional norte-americana que está no País desde 2007, está praticamente focada em ensaios clínicos na área da oncologia e doenças raras. "Temos 11 ensaios clí nicos a decorrer e apoiamos outro quatro ensaios académicos. São ensaios para cancros líquidos, linfomas, doenças raras. Entre 2012 e o primeiro semestre deste ano triplicamos o número de ensaios que estamos a fazer em Por t ugal. Recr ut ámos 130 doentes entre 2008 e este ano", explica o diretor- geral da Celgene Portugal, Fermin Rivas Lopez.
"Sucesso traz sucesso. Um dos nossos médicos é um dos maiores recrutadores a nível internacional. Temos tido bons desempenhos e por isso é mais fácil trazer ensaios para Portugal. Temos um compromisso e vamos continuar a investir. Uma das dificuldades é que os investigadores não tinham muito apoio dos hospitais para o trabalho nos ensaios clínicos. Já estão mais conscientes, mas ainda não é perfeito. Faltam incentivos para a carreira de investigação como acontece noutros países", aponta.