"Nenhum médico pode mandar um paciente para um bruxo ou exorcista"

Presidente do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos estupefacto com afirmações de exorcista e regras do Patriarcado de Lisboa: "Não tem pés nem cabeça"
Publicado a
Atualizado a

"Tenho vários psicólogos e psiquiatras amigos que me mandam casos, pessoas que não reagem aos medicamentos." Esta afirmação de Duarte Sousa Lara, reconhecido como exorcista pela diocese de Lamego, reiterada ao longo de um longo vídeo sobre exorcismo que este padre de 43 anos colocou no Youtube, deixa Miguel Bragança, presidente do Colégio da Especialidade de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, perplexo. "Confesso-lhe que psiquiatras mandarem um doente ser exorcizado, nunca tinha ouvido. Mas será uma coisa residual, casos secretos, pouco conhecidos, numa aldeia... E é mau e é grave, péssima prática médica. Não posso enviar para um exorcista uma pessoa que tentei tratar e não consegui. Um médico não pode fazer isso. É estritamente proibido. Nenhum médico pode mandar um paciente tratar-se a um cartomante ou bruxo. O sobrenatural não existe em medicina."

Comentando que "o homem" (referindo Sousa Lara) "pode dizer o que quiser", este especialista admite no entanto que "haja uma pequena parte dos psiquiatras que enviam porque acham que a pessoa não tem um problema psiquiátrico. Dentro das perturbações mentais há fronteiras mal definidas. Os exorcistas também fazem parte da pool de, usando uma expressão pejorativa, "vendedores de serviços psicológicos". E há pessoas que podem beneficiar mais de um exorcista que de um psiquiatra. Podem ser pessoas com sentimento mágico, que acreditam em coisas estranhas e estrambólicas." Quer isso dizer que um psiquiatra pode "mandar" para o "professor Karamba" ou para uma "mãe de santo"? "Se eu acho que a pessoa não tem um diagnóstico psiquiátrico, se acho que não tem nenhuma doença mental, faz sentido que ao dar alta envie seja para onde for fora da medicina. Porque aí o médico pode ter uma conversa de café e dizer "se acha que lhe faz bem, vá ao pároco.""

Totalmente diferente, considera, é o que se retira das normas sobre exorcismo constantes num documento de 2012 do Patriarcado de Lisboa. Neste, lê-se: "O ministro da Igreja não apresente a pessoa atormentada ao Exorcista (...) ou ao Ordinário do Lugar [bispo da diocese], para que este conceda a faculdade ocasional para legitimamente fazer o exorcismo, sem antes consultar peritos em ciência médica e psiquiátrica, que tenham a sensibilidade das realidades espirituais. Para maior certeza, os peritos devem ser pelo menos dois, um dos quais psiquiatra, e os seus relatórios devem coincidir no parecer de que não existe explicação científica para a fenomenologia observada no paciente. (...) Assim o ministro da Igreja que apresenta a pessoa atormentada pelo Demónio, guardando sempre o sigilo sacramental, acompanhe essa apresentação com os relatórios referidos."

"Vamos imaginar que uma pessoa vai ao padre e o padre diz vá a psiquiatras e veja o que dizem - isso é outra coisa. Agora, fazer relatórios para o padre? Isso faria da igreja uma estrutura médica - não tem pés nem cabeça. Nenhum psiquiatra faz um relatório para outra pessoa que não o próprio paciente. É proibido emitir qualquer parecer sobre alguém que não seja a pedido do próprio ou de quem o representa legalmente no caso de estar inabilitado. Um simples estudante de direito sabe que isso é ilegal. Vamos imaginar que têm uma pool de três ou quatro ou cinco psiquiatras a quem recorrem. Isso é grave. O código deontológico dos médicos não permite fazer isso. É a negação total da deontologia. É um disparate, porque é proibido legalmente e sobretudo eticamente."

Em 2011, o British Medical Journal publicou um paper onde se cita o caso de uma paciente espanhola com esquizofrenia paranóide que foi considerado possessa e submetida a "múltiplos exorcismos" por padres da arquidiocese de Madrid, embora estivesse em tratamento psiquiátrico. Três anos depois, foi notícia, também em Espanha, o caso de uma menor sujeita, por iniciativa dos pais, a vários exorcismos, entre abril e junho de 2012, em Valladolid. A jovem sofreria de anorexia, auto-mutilar-se-ia e teria mesmo tentado suicidar-se e os exorcismos foram reconhecidos pelo bispo da área, que assegurou não ter dado autorização para os mesmos. A situação foi denunciada por familiares e deu origem a uma investigação judicial, que acabou por ser arquivada.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt