Rui Tavares: “Temos de dizer às pessoas que há uma alternativa política do progresso e da ecologia”
Falamos já depois do apagão. Começo por lhe pedir uma reação à resposta do Governo.
A reação foi claramente insuficiente. Creio que Luís Montenegro tem revelado um talento muito grande em lidar com perceções, mas um dia, quando o teste da realidade bateu à porta, ficou aquém do necessário nesse teste. Por exemplo, em relação à comunicação que é preciso fazer o mais cedo possível, mesmo quando ainda não se tem os dados todos. Isso deve ser assumido perante a população. Não sabemos ainda a causa imediata do apagão que deve ser determinada tecnicamente e não politicamente. A interação com o Parlamento não foi atempada, mesmo sendo fisicamente próxima. Não se entende que com o Governo num Conselho de Ministros não tenha havido ninguém que tenha descido as escadas da residência oficial de São Bento para ir à Assembleia da República, que está ali em frente, onde estavam vários líderes partidários e parlamentares, onde estava eu, onde estava aparentemente também o Rui Rocha [líder da IL], e pelo menos mais um ou outro líder parlamentar. Isso teria possibilitado que, por exemplo, a Comissão Permanente se pudesse reunir. Chama-se “Permanente” por alguma razão. Mesmo com o Parlamento dissolvido, Portugal não deixa de ter um órgão de soberania, que é a Assembleia da República, que deve estar em estado de prontidão. Pelo menos, houve vários de nós que nos dirigimos a seguir o apagão para a Assembleia da República para estar nos nossos postos. Claro que há um prazo para a convocação da Comissão Permanente, mas vamos ver: imagine-se que o país precisava de ser decretado o estado de emergência, quem o decreta é o Parlamento e o Governo precisaria do Parlamento. Há medidas básicas de segurança que podem ser tomadas, algumas das quais foram propostas diretamente pelo Livre em debate. Outras das quais, francamente, seria de esperar que elas estivessem previstas e em vigor. Como é possível, por exemplo, que não tenha sido disponibilizado ao Presidente da Assembleia da República [José Pedro Aguiar-Branco], o número dois do Estado, um telefone-satélite, que pudesse ter comunicação em qualquer circunstância? O Livre propôs, durante a reunião entre o Governo e o Parlamento, que tanto o presidente da Assembleia da República como, pelo menos, cada líder parlamentar tenha acesso a um dispositivo desse tipo. Isso significa, precisamente, que a Assembleia da República pode ser consultada e pode dar o seu parecer, não objetar ou legitimar ações do Governo. Depois há um terceiro elemento. O Livre fez um debate no dia 4 de dezembro sobre a preparação da Europa para uma situação que todos reconhecemos, que é de insegurança acrescida no mundo atual. O debate foi acerca de três relatórios europeus importantes: o relatório Draghi sobre o mercado interno, o relatório Letta sobre competitividade e o relatório Niinistö sobre defesa e segurança. No que diz respeito a este último, há recomendações muito práticas e, às vezes, muito simples, acerca da preparação da população europeia para situações que podem ir desde eventos climáticos extremos a situações de sabotagem, terrorismo de risco ambiental ou situações como o apagão. E transporta para essas sugestões algumas que certos países já têm na sua própria cultura de segurança, principalmente os nórdicos. Uma delas é a questão do kit de emergência, para que das todas as famílias possam ter até três dias de alguns produtos básicos, como mantimentos, água, mas também aparelhos que funcionem a pilhas, como o rádio, que é absolutamente essencial Outras das quais, francamente, seria de esperar que elas estivessem previstas e em vigor. Como é possível, por exemplo, que não tenha sido disponibilizado ao presidente da Assembleia da República [José Pedro Aguiar-Branco], o número dois do Estado, um telefone-satélite que pudesse ter comunicação em qualquer circunstância? O Livre propôs, durante a reunião entre o Governo e o Parlamento, que tanto o presidente da Assembleia da República como, pelo menos, cada líder parlamentar tenha acesso a um dispositivo desse tipo. Lá por acharmos que este é um evento que ocorre de 30 em 30, ou de 50 em 50 anos, tal não quer dizer que o próximo apagão vá demorar esse tempo a ocorrer. Precisamos de ter já em funcionamento, tão depressa quanto possível para provar que aprendemos as lições deste evento, os instrumentos que nos vão valer no próximo. Um deles, e aí temos uma discordância clara com o Governo, é a Comissão Técnica Independente [CTI] que querem nomear. Concordamos com a nomeação da CTI, mas o Governo quer que seja só no próximo Parlamento. Parece-nos completamente absurdo. Para já, porque é passar a mensagem à população de que as autoridades não estão dispostas a tirar as lições em relação à cultura de segurança que precisamos com eventos deste género, e que acham que se pode adiar. Daqui a mês e meio vamos dar posse a um novo Parlamento e discutir a formação do Governo. Provavelmente, o assunto em cima da mesa vai ser outro completamente diferente. Além disso, tivemos este grande problema de comunicação via SMS.
Falemos então das eleições. Já assumiu a intenção de alargar o grupo parlamentar do Livre, continuando a trajetória de crescimento que, em 2024, levou à eleição de um grupo parlamentar. O que seria um bom resultado?
Crescemos sempre em todas as eleições legislativas. Fomos com os meios que temos. Não somos um partido rico, não conseguimos ter cartazes no país todo, não temos recursos infinitos e temos crescido sempre. O que sentimos é que o universo de pessoas que já nos conhece e que até consegue descrever o Livre como o partido da esquerda verde europeia, antes de o dizermos, está a alargar. Isso é muito interessante. As pessoas sabem onde posicionar o Livre e sabem como defini-lo. As peças começam a cair no lugar. Acreditamos muito que este posicionamento político, esta síntese ideológica e a atitude política que temos, está a ter eco junto das pessoas. Não vou pôr metas, porque no passado também não as pus e isso correu bem. Achamos, evidentemente, que é muito importante alargar o grupo parlamentar e que seria importante também poder eleger em distritos nos quais nunca elegemos. Se olharmos para os números das sondagens, Braga, Aveiro ou Leiria podem estar em jogo.
Já referiu também que o Livre está pronto para integrar uma eventual solução governativa. Que preço, digamos assim, é que coloca nessa possibilidade?
Não é, claramente, uma questão de cargos. É uma questão de programa e de alguns passos básicos que entendemos que a governação deve dar em Portugal e que são elementos essenciais para começar a conversar. Achamos que um programa de Governo tem de ser negociado entre os partidos que são base de apoio e, portanto, deve ter metas e deve ser sindicável pelos cidadãos. Somos muito claros em relação a essa assunção de responsabilidades executivas. Não queremos a desculpa que às vezes é dada para não poder haver um governo do progresso e da ecologia, de uma esquerda plural, nem a ideia de que há uma esquerda que não é capaz de assumir responsabilidades. Não sei que esquerda é essa, mas o Livre não é, certamente. Fizemos essa análise de consciência e da realidade. Sabemos que temos os quadros suficientes para poder assumir essas responsabilidades, evidentemente, à nossa escala, com o peso que o eleitorado vai entender atribuir-nos. Sabemos a que quadros nos podemos alargar na academia, na sociedade civil, por aí fora, e isso é suficiente para assumir responsabilidades executivas. Em relação à governação, uma situação como a do primeiro-ministro que nos trouxe a esta crise, ou seja, de manter uma empresa que não é uma empresa qualquer, uma consultora deste tipo, que faz lobbying, que faz advocacia de negócios e interesses, não pode ser mantida dentro da esfera familiar do primeiro-ministro, porque gera um potencial conflito de interesses. Ou fecha ou vende, ou há uma solução que é até a melhor, que é a gestão profissional independente. Segundo ponto: somos favoráveis a que ministros e ministras venham a audições prévias no Parlamento antes de iniciarem funções. Como acontece com os comissários europeus. É o momento ideal para apanhar conflitos de interesses e para os sanar. É possível mudar o regimento da Assembleia ou a lei para isso acontecer? Pode não se conseguir fazer já em maio ou junho, e quero ser claro que não estou a prometer isto para amanhã, mas vai estar em cima da mesa para passar a ser uma metodologia. Do ponto de vista das políticas sociais, nada de privatizar o SNS e um reforço vigorosíssimo do investimento em habitação e em educação. Finalmente, há que manter o apoio à Ucrânia. Qualquer abandono, seria uma linha vermelha. Da mesma forma, reconhecer a independência da Palestina como Estado soberano, de preferência logo nos primeiros dias de um Governo em que o Livre participe, é essencial. A partir daqui, podemos conversar sobre o resto.
Defende que a garantia do Estado para a compra da primeira casa deve terminar. Em vez disso, o programa do Livre diz que deve “haver um financiamento de 30% do valor de mercado do imóvel sob a forma de um empréstimo de capital próprio”. O que significa isto?
No programa em funcionamento, basicamente, o Estado é fiador de quem compra a casa. O que tem dois riscos. Fica ali na linha de possível crédito malparado, que numa futura crise da banca, nos vai cair em cima. Por outro lado, como os bancos continuam a exigir dinheiro para a entrada e como as pessoas que podem comprar casa têm de ter rendimentos mais altos ou o apoio da família, o Estado está a ser fiador de jovens mais ricos. Isso significa que está, até, a possibilitar a existência de uma pressão dos preços, para cima, nos segmentos que são aqueles que queremos mitigar e não acelerar: o segmento de luxo e de casas mais caras. O que propomos em vez disso? Revogar esse sistema e implementar a ajuda de casa, na qual temos uma espécie de uma parceria público-cidadão. O Estado é, de facto, comparticipante da entrada da casa, até 30% do valor total, o que significa que jovens, e não só, de classe média/média-baixa passam a ganhar uma coisa que hoje não têm: coragem de entrar no banco e pedir um empréstimo, porque podem dizer que têm a entrada do Fundo Ajuda de Casa. Isso significa que, com critérios que são anti-especulação de preço médio do edificado naquele município e, ao apoiar pessoas que têm uma determinada taxa de esforço, o Estado pode comprar até 30% da casa, os outros 70% são comprados pelo cidadão. O cidadão, após um período de carência, pode começar a pagar ao Estado também, de uma vez só, ou em prestações, ou pagando só um juro razoável. Mas enquanto o Estado é sócio da pessoa, por assim dizer, há condições que são colocadas sobre a casa. Não pode servir para alojamento local (AL), não faria sentido estarmos a participar na compra de uma casa que serviria para AL. Imaginemos depois que a pessoa comprou casa, teve uma oferta de emprego noutra zona do país e decide arrendar a sua casa. Este programa permite, mas tem de ser arrendamento acessível. Da mesma forma, a revenda também tem de ser a preços acessíveis, ou então a pessoa tem de pagar os 30% que o Estado tem. E aí com uma questão adicional: como a casa terá valorizado, esses 30%, que poderiam ser, vamos dizer, 60 mil euros, já são 70 ou 80 mil euros.
Qual é o custo dessa medida? Calcularam-no?
Pode ser incremental. Podemos começar com um fundo, por exemplo, de 100 milhões de euros. Isso permite ajudar milhares de pessoas e pode ir crescendo, precisamente com a valorização das próprias casas e com os pagamentos de juros ou de prestações, ou até da ajuda de casa por inteiro, que é feita pelas pessoas ao Estado. E quando é feita, como, entretanto, a casa valorizou e 30% já não valem o mesmo, bem, então aí significa que o fundo cresceu e há pessoas que sucessivamente podem ser ajudadas.
Outra das medidas emblemáticas do Livre é o chamado imposto dos “super ricos”, em que as grandes fortunas seriam taxadas de uma forma, digamos, mais grave. Um estudo internacional de 2024 apontava, estimava aqui em Portugal, que 42 mil contribuintes dariam mais de 6,6% da receita fiscal ao Estado. Na opinião do livro, onde é que se pode ir mais longe?
Vou procurar não comentar esses estudos. Há números divergentes. Já ouvi números que andam nos 2/ 3 mil milhões, até bastante mais em termos do que poderia haver de receita. De qualquer forma, o que o Livre propõe é uma medida que seja uma medida aplicável, de preferência, à escala internacional e à escala europeia. E achamos que é possível. Para já, porque uma medida que seja transnacional dificulta a fuga desses contribuintes. Depois, porque a experiência ensina-nos, por exemplo, com a criação de um limiar mínimo para a taxa de IRC, que é possível fazê-lo através da OCDE e através do G20. O próprio Brasil propôs essa medida em conjunto com a Espanha no G20. E os melhores economistas que defendem essa medida, como o economista Gabriel Zucman, defendem que a forma ideal de a implementar é de forma transfronteiriça. Não quer dizer que não haja super-ricos em Portugal. Eles são necessariamente poucos, estamos a falar dos 0,5% mais ricos do país. Certamente, isto não é um imposto novo, nem um acréscimo de imposto para a pessoa comum, nem sequer é para o 1% mais rico, é para metade disso. No entanto, achamos que ao nível europeu e global essa medida deve ser implementada. Para dar um exemplo do próprio Gabriel Zucman também, os gastos em defesa que agora a União Europeia diz que devem ser feitos, investimentos em defesa, com uma taxa apenas de 2% sobre quem tivesse mais de 100 milhões de euros.
Tem insistido muito na ideia de que chegámos às eleições devido à “falta de ética” do primeiro-ministro. Se na noite eleitoral houver um cenário em que a AD lidere, e tudo indica que poderá ser o desfecho, mas não havendo uma maioria estável, garante que não será uma força de bloqueio à governação, ao apresentar moções de censura ou de rejeição?
Isso seria uma má notícia para o país. Estamos nesta situação porque Luís Montenegro não tomou decisões éticas básicas, fáceis de explicar e de entender, que estiveram em cima da mesa durante semanas. O Livre propôs a gestão profissional independente das empresas na sua esfera familiar, que é uma medida que não prejudicaria em nada a sua família ou os seus projetos de futuro. Nunca comentou essa medida, o que deixa muito claro que a Spinumviva tinha como potencial função saber quem eram os clientes que lá punham dinheiro e os clientes saberem que o primeiro-ministro sabia. Isso pode convertê-la num potencial veículo de influência. É inexplicável para um primeiro-ministro que levasse a sério a sua função como chefe de Executivo, manter a situação como ele manteve, e ainda por cima, com outras notícias, virar-se contra os jornalistas, e basicamente atacar o mensageiro. Isso significa que Luís Montenegro é uma má notícia para o país, não está à altura das responsabilidades de um primeiro-ministro. Estou muito empenhado para que nestas eleições este esclarecimento seja feito. Costuma dizer-se para nos tirarem deste filme, mas não somos nós que temos de sair deste filme, porque é o nosso país, é Luís Montenegro que tem de sair do nosso filme, porque o filme acaba mal. Acho que há três semanas para esclarecer as coisas, e acho que devemos ser claros que temos uma alternativa de governação. Se formos claros todos, e infelizmente à esquerda eu acho que o Livre tem sido mais claro, mas outros não o têm sido. O PS não tem sido claro em relação a isso, não tem dito como é uma alternativa. Está apenas na busca de ver quem é que tem um voto a mais ou um deputado a mais. Já percebemos que a AD fará uma aliança com a IL, e a IL dizia que estas ações do primeiro-ministro eram irresponsáveis, e agora está disposta a varrer para debaixo do tapete essa irresponsabilidade. Temos é de dizer às pessoas que, pelo contrário, há uma alternativa política do progresso e da ecologia para governar. Espero que o bloco da esquerda e o bloco da direita democrática percebam que tem de haver sentido de responsabilidade para não deixar nem que a oposição caia nas mãos do Chega, nem facilitar aquilo que são as tendências da extrema-direita para a criar instabilidade permanente. Ao rejeitar as moções de censura do Chega, e embora tenhamos aprovado a moção de rejeição do PCP, acho que o Livre já provou que somos claramente da oposição a um governo de direita, e isso também é muito claro. Somos parte da solução se houver uma maioria progressista, somos oposição se houver uma maioria de direita.
Para terminar, vou-lhe dar três objetos. Aquele clássico que se costuma fazer antes das campanhas eleitorais, tendo de dar cada um deles a um líder partidário à sua escolha, para os levar em campanha eleitoral ou não, pode ser para a vida, peço-lhe só uma justificação breve para cada uma das três escolhas. Primeiro objeto seria, quero-lhe perguntar, a que líder é que dava uma cópia do livro Esquerda e Direita, um guia histórico para o século XXI, que, deduzo, conheça bem o autor?
Conheço bem o autor. Acho que dava a Inês de Sousa Real para que o PAN pudesse escolher esquerda ou direita, que é a grande divisão da nossa modernidade política e não, por acaso, toda a gente precisa da utilizar, e perceber que ela é produtiva. O livro, por exemplo, fala para toda a gente, mas fala a partir de um lugar de esquerda. Não enganamos ninguém em relação a isso. Há pessoas de centro ou de direita que votam no Livre, ou que dizem que votam, eu já vi isso até assumido publicamente. E não há problema nenhum com isso. Mas, para nós, é muito importante que as pessoas saibam que estão a votar num partido de esquerda. Não estão a votar num partido que diz que não era nem de esquerda nem de direita.
Sei que gosta de andar de bicicleta, aqui por Lisboa, quando consegue. Por isso, a quem é que oferecia uma, para se deslocar?
A quem é que ofereceria uma bicicleta? Deixe-me pensar um bocadinho. Não, porque não é um dos líderes de coligação. Podia oferecer ao Nuno Melo, porque o CDS tem sido muito antimobilidade suave... Mas, não. Acho que ofereceria ao próprio primeiro-ministro Luís Montenegro. Para o lembrar da necessidade de apostar na mobilidade suave.
E, por fim, a quem oferecia um jantar no contexto da campanha eleitoral? E qual seria o menu?
Acho que o repto era um mano-a-mano entre a Mariana Mortágua e eu. Ela com comida alentejana, eu com comida ribatejana. Eu podia fazer uma tomatada. E ela certamente que conhece... Eu sei que ela gosta de cozinhar e gosta de comida alentejana. Acho que ficava um bom repasto.