Rui Tavares é co-porta-voz do Livre, em conjunto com Isabel Mendes Lopes, líder parlamentar.
Rui Tavares é co-porta-voz do Livre, em conjunto com Isabel Mendes Lopes, líder parlamentar.FOTO: Reinaldo Rodrigues

Rui Tavares: "A esquerda, muitas vezes, não tem o pragmatismo necessário para chegar ao poder"

Em entrevista ao podcast Café da Manhã, da Folha de São Paulo, o deputado do Livre defende que "a esquerda não precisa de fingir que não é de esquerda para conquistar o apoio da opinião pública"
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Numa conversa com os jornalistas Gabriela Mayer e Gustavo Simon, sobre esquerda e direita, esta manhã Rui Tavares faz uma espécie de viagem pelos desafios e dificuldades que a esquerda enfrenta atualmente para se afirmar num mundo que tem estado dominado pela direita.

O historiador, que é também colunista do jornal brasileiro, admite que "a esquerda passa de uma posição muito desfavorável, está isolada e o seu espaço tem estado a diminuir", e identifica três razões principais para que isto aconteça:

"A primeira tem que ver com o facto de a esquerda precisar de reivindicar uma ideia de liberdade e não o ter feito. A esquerda tirou os olhos da bola, mesmo com uma direita – seja a liberal ou a extrema-direita – que o tempo todo fala de Liberdade. É como se a esquerda tivesse deixado que se criasse uma espécie de estereótipo em que a direita liga à Liberdade e a esquerda à igualdade. Ou a direita liga ao indivíduo e a esquerda ao Estado. Deixámos que isso nos acontecesse. Alguma esquerda, porventura, acredita que isso é mesmo verdade. Mas a Liberdade é o valor político primordial. Sem ela não existe sequer política. A politica é as maneiras como conseguimos organizar o coletivo e é inevitável que essas entrem em tensão com a nossa vontade individual de Liberdade", continua.

A liberdade que a direita defende é uma farsa – a extrema-direita não quer, nunca quis saber de Liberdade. Ela quer conquistar o poder, e depois de conquistar o poder é a mais autoritária de todas as famílias políticas; ou mesmo a direita liberal, que acho que tem uma visão sincera e genuína da Liberdade, mas é uma noção muito, eu diria, reducionista...uma espécie de Liberdade desidratada. É: menos imposto, mais Liberdade; menos Estado, mais Liberdade; menos burocracia, mais Liberdade... e não sai disso".

A Liberdade é o valor político primordial. Sem ela não existe sequer política

Rui Tavares

"Ora a esquerda devia, em primeiro lugar, reinvindicar uma ideia de Liberdade que é mais ampla. Que é uma liberdade maior. Uma política vista pelo prisma da Liberdade, entendida numa noção progressista, com uma noção maior da liberdade, que ajuda a transcender aquela briga que tem existido na esquerda – entre a esquerda clássica da luta de classes e esquerda das identidades e do imaginário".

"O segundo elemento" que Rui Tavares considera essencial ter em atenção "é a condição de recursos. Como o estado social, hoje, tem menos dinheiro do que tinha antes, o Estado, ao invés de ter políticas universais" apoia apenas os casos considerados prioritários.

"E o terceiro elemento é que falta pragmatismo. Muitas vezes, a esquerda não tem o pragmatismo necessário para chegar ao poder", considera o historiador.

"Eu sou de uma esquerda que claramente não é centrista, mas que claramente também não é extremista", salienta, admitindo que "é sempre bom quando vemos um político a ser mais assumido". Mas considera que a esquerda tem ainda muita estrada para andar, até conseguir voltar a afirmar-se como alternativa sustentada.

"Acho que a esquerda, neste momento, precisa de ter uma teoria da atenção, uma teoria da mobilização, uma teoria da mudança e uma teoria da memória. E a tudo isso, eu chamo uma Teoria de Objeto de Desejo Político. Ou seja, não basta o político posicionar-se mais à esquerda ou mais ao centro e a gente ficar só aí nessa discussão. É preciso que a esquerda ofereça ideias concretas de como melhorar a vida das pessoas. Ideias que não sejam abstratas, que não sejam metas, que não sejam objetivos só numéricos, que às vezes os políticos gostam de ter. São coisas que têm que ver com a casa, com a rua, com o transporte público, com a comida... as coisas têm de ser visualizadas, têm de ser concretas e palpáveis. Têm de ser conquistadas de forma coletiva, mas devem colocar o desejo no centro da política", salienta.

E continuou as críticas à forma como alguma esquerda tem feito o seu caminho.

"Já chega dessa história de a esquerda estar sempre a opôr o medo e a esperança. Há os candidatos do medo, que são os da extrema-direita, e a esquerda concorre com a esperança. Ora, a esperança acaba por ser uma arma muito débil na luta contra o medo. Eu creio que para conseguirmos mesmo vencer o medo, as pessoas precisam de desejo. E nós temos de oferecer políticas públicas que concretizem esses desejos das pessoas.

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Durante a mesma entrevista, Rui Tavares lamentou o distanciamento das pessoas da política, um movimento que acredita que acontece porque, ao contrário do que acontecia no final do século XIX e início do século XX, há uma falta de promoção da socialização. E deixa um aviso aos políticos que se esquecem das pessoas para quem falam:

"Eu acredito que, tal como no passado, as pessoas não se interessam por política nem entram num partido, num sindicato, num movimento feminista, por gostarem de ter reuniões intermináveis até tarde, à noite, por gostarem de ouvir discursos longos, discutir emendas...tudo isso é chato. 99% das pessoas não querem isso para a sua vida. 1% gosta. Mas esse 1% que gosta de política o tempo todo tem de pensar que se não falar para os outros 99% nunca vai ganhar".

O deputado do Livre explica: "os 99% gostam de saber que a sua vida vai melhorar e gostam de saber que estão numa luta que é feliz e alegre por coisas felizes para a sua vida. Tenho visto isso aqui em Portugal. Gente a tentar dizer: “Olha, mas está ali o super rico que não paga impostos", e as pessoas a dizerem: "mas o super rico está muito longe. O que eu sei é que o meu vizinho tem subsídio e passa o dia no café. E eu não, porque tenho de trabalhar". Ou seja, as politicas, se não forem universais, não geram o mesmo sentimento de coesão social de que precisamos", considera.

Por isso mesmo, Rui Tavares aponta caminhos: "O que eu defendo é que a esquerda tem de encontrar a sua própria maneira de chamar a atenção porque os elementos que a direita usa para chamar a atenção das pessoas são eficazes: a indignação, o escândalo, a atitude de choque permanente, de conflito permanente. E muitas vezes a esquerda fica com uma certa inveja dessa capacidade da direita de chamar a atenção e pensa: se fizermos uma versão disso mas à esquerda", talvez funcione. Tavares rejeita a ideia, afirmando que pode ser um ponto de partida mas nunca um ponto de chegada, sob pena de dificultar ainda mais o caminho das políticas da esquerda. "A direita usa bem esse ódio e divisão para causas e objetivos que, no fundo, são bem de direita...desse egoísmo social em que vivemos agora. E a esquerda, se começa por aí, não vai conseguir ter a base social de apoio para fazer as politicas que quer fazer".

"E vemos isso muitas vezes: o político de esquerda até consegue eleger-se, mas depois tem um programa curto para implementar políticas que mantenham a sua base social de apoio. A esquerda tem de conseguir mobilizar a atenção das pessoas com ideias que são próprias da esquerda: ideias de generosidade, de solidariedade, e aí a coisa funciona.

A esquerda tem de conseguir mobilizar a atenção das pessoas com ideias que são próprias da esquerda: ideias de generosidade, de solidariedade, e aí a coisa funciona.

Rui Tavares

Ou, por outras palavras, "a esquerda não precisa de fingir que não é de esquerda para conquistar a atenção e o apoio da opinião pública. Acho que a esquerda tem de explicar bem porque quer as coisas que quer e convencer a opinião publica. E a opinião publicar convence os congressistas...há maneiras mais táticas de fazer isso, mas há acima de tudo um caminho estratégico que temos de seguir", considera.

Falava do Brasil, mas aproveitou para deixar o seu próprio exemplo - aliás, recorde-se que o Livre foi um dos partidos que mais cresceu nas últimas eleições, passando de quatro para seis deputados em apenas um ano - e tendo em conta que foi criado apenas em 2014.

"Por exemplo, aqui em Portugal, o Livre conseguiu muito rapidamente propor uma ideia de subsídio de desemprego que funcionaria a pedido da própria pessoa, em determinadas condições, sendo a principal quando a pessoa é vitima de violência doméstica. Taticamente podemos ganhar isso – noutros casos a gente ainda não ganhou e o exemplo mais claro disso é a semana de quatro dias, que me parece que é uma causa de futuro e chama muito a atenção de toda a gente".

Questionado também sobre o papel do mercado na sociedade e da sua importância na construção de políticas e dos discursos políticos, Rui Tavares é perentório: "Muitas vezes vivemos na angústia de ver que as políticas que a esquerda defende seriam melhores para uma grande maioria de pessoas e que, por essa razão, elas não deviam ser maioritárias no voto. Deviam ser hiper maioritárias. E porque é que o mercado não deixa que isto funcione? Porque é que eles ganham as brigas?", começa por questionar. Por uma série de coisas, considera.

"Aí entramos numa série de justificações: são eles que controlam os media, o discurso público, utilizam o seu dinheiro para virar as narrativas a seu favor... mas eu acho que não é só isso. Acho que, na verdade, o mercado, para muita gente, é outra coisa. É um aspeto muito sedutor da sociedade, em que as pessoas têm escolha e fazem o que querem. Sabemos que em parte isso é falso, mas o mercado tem pouco atrito, pouca fricção. A única grande fricção do mercado – de consumo, mesmo – é “tem dinheiro ou não tem dinheiro?” Mas os jovens, o que pensam é: se eu tiver dinheiro eu compro esses ténis ou não...". Mas há algo mais complexo, considera ainda, que é a complexidade da causa social.

"Se compararmos uma pessoa ficar rica e comprar uma casa boa e um carro ótimo com alguém que tem uma atitude mais social perante a vida, que quer fazer uma associação, que quer ajudar a melhorar o bairro...tudo isso é hiper complicado e burocrático. Daí que na briga entre o mercado e esse lado mais social da vida, dá a sensação de que o mercado ganha sempre", lamenta.

"A direita liberal está a dizer uma coisa muito simples, e funciona muito bem para a classe média e os jovens: com menos impostos fica mais dinheiro no teu bolso e tu podes, no mercado, comprar aquilo que quiseres. Claro que aquilo que escondem é que essa baixa de impostos em geral, vai beneficiar ainda mais os mais ricos e deixaer o estado sem dinheiro para dar apoio aos mais pobres. Mas no indivíduo, resulta", salienta ainda.

Claro que esse pensamento, quando é distribuído pela sociedade toda, vai dar-nos uma sociedade má. Agora, a esquerda tem de parar de se iludir acerca do poder que a ideologia do mercado tem. Ela não funciona só com os ricos, mas muito com os pobres. Com quem quer ter uma pequena independência, com quem não tem vontade de ter um contrato clássico de trabalho, vive numa cultura popular que glorifica o consumo e que pensa que a política é demasiado complicada, e a política social ainda mais...", nota.

"Acho que há uma maneira de dar a volta a isso, mas não é apenas pensando que a maioria dos pobres e da classe média consegue fazer uma aliança contra os ricos da Faria Lima", continua, referindo-se a uma das artérias financeiras mais relevantes da cidade de São Paulo. "Tem de ser sustentado por uma narrativa e encontrar outra maneira de a gente chegar a esses objetos políticos, de outra forma, que é coletiva e não individualista", conclui.

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