Quando Spínola explicou a um jornalista americano o golpe de 11 de Março no avião a caminho do exílio
Dennis Redmont tem sobre a mesa da sua casa em Lisboa vários jornais de há 50 anos e mostra-me um International Herald Tribune ligeiramente amarelado em que se destaca na primeira página o título “Spínola afirma que apoiou o golpe para impedir massacre”. A peça, que foi publicada também em jornais como o New York Times ou o Estado de São Paulo, é assinada “Em Buenos Aires” e datada de 16 de março de 1975, cinco dias depois do golpe falhado spinolista que acabou por reforçar a orientação de extrema-esquerda do processo revolucionário português, o célebre 11 de Março. O então chefe da delegação da Associated Press (AP) no Brasil obteve um exclusivo mundial, pois foi o único jornalista a conseguir falar com o antigo Presidente da República, que viajara de Madrid para o Rio de Janeiro para pedir asilo político. A conversa foi a bordo do avião, que seguiu do Rio para Buenos Aires com António de Spínola, pois o governo brasileiro exigiu que o pedido de asilo fosse formalizado na Argentina.
“Eu só sabia que o general ia aterrar no Rio porque na época era escala dos aviões que vinham de Espanha para a Argentina. Não fazia ideia se ia ficar no Brasil ou se tinha pedido asilo político. Estavam 150 jornalistas à espera no aeroporto. Spínola era uma figura muito conhecida. Tinha sido capa da Time, com o seu monóculo. Era mais conhecido do que Mário Soares ou Álvaro Cunhal. Eu sabia alguma coisa do que se passava em Portugal. Tinha sido correspondente da AP em Lisboa nos anos 60. E continuava a acompanhar a situação. E pensei que tinha de aproveitar essa vantagem competitiva, fazer algo de diferente em vez de estar com o microfone à espera. Comprei um bilhete em 1.ª Classe, para poder circular à vontade no aeroporto e tentar ser o primeiro a falar com Spínola quando ele desembarcasse. Os outros jornalistas viram-me a entrar na zona de embarque e perguntaram o que estava lá a fazer”, conta Redmont, com um sorriso de satisfação. Sabe que fez a aposta certa ao seguir o seu faro jornalístico. A frase que arrancou a Spínola pouco depois não foi só a primeira daquele dia, foi a única.
“Quando percebi que Spínola não desembarcava, embarquei eu. Entrei no avião e sentei-me no meu lugar na 1.ª Classe. Sento-me e fico uma fila à frente dele, mas do outro lado. Spínola estava a dormir. Eu tinha comprado o bilhete com o meu American Express e ninguém sabia que era jornalista. E espero que o avião descole para finalmente falar com o oficial que ia sentado ao seu lado e apresentei-me".
“De repente, uma confusão enorme. O governo brasileiro não autorizou o desembarque do general e da sua comitiva de 15 oficiais e a esposa. E a habitual escala em São Paulo foi cancelada e os passageiros que iam para lá obrigados a sair do avião, o que quase levou a que batessem na tripulação. O avião iria direto para Buenos Aires, onde Spínola teria de formalizar o pedido de asilo ao Brasil”, explica o jornalista, que fala português, aprendido naquela experiência de trabalho em Lisboa, ainda com Salazar no poder, e depois reforçado pelos anos em que viveu no Rio de Janeiro.
E foi o domínio do português, e também o ter sido ameaçado de expulsão, depois de interrogado pela PIDE por uma notícia sobre estudantes oposicionistas e pelas reportagens sobre a vida durante o Estado Novo, que, admite, facilitaram o que se passou a seguir, quando chegou junto de Spínola. Era um exilado como golpista falhado, mas também um militar prestigiado pelo desempenho em África, o autor do livro Portugal e o Futuro que desafiou Marcelo Caetano, e a primeira figura da Junta de Salvação Nacional que assumiu poder no 25 de Abril de 1974.
“Quando percebi que Spínola não desembarcava, embarquei eu. Entrei no avião e sentei-me no meu lugar na 1.ª Classe. Sento-me e fico uma fila à frente dele, mas do outro lado. Spínola estava a dormir. Eu tinha comprado o bilhete com o meu American Express e ninguém sabia que era jornalista. E espero que o avião descole para finalmente falar com o oficial que ia sentado ao seu lado e apresentei-me. Tirei uma fotografia dele ainda a dormir. E uma outra depois, que foi a publicada. Contei a Spínola quem era, a minha história de problemas com a PIDE, e perguntei se estava disponível para falar, porque ninguém no mundo sabia por que tinha feito o golpe. E ele deu-me a sua declaração dizendo que era uma resposta para evitar a matança da Páscoa que os comunistas iam fazer. Disse que quis fazer um golpe de Estado para prevenir essa matança de 1500 pessoas, entre militares e civis. A lista nunca apareceu, pelo que sei, mas Spínola estava convicto de que era verdade. Se foi uma armadilha em que caiu, não sei”, explica.
Em Buenos Aires, no aeroporto, o embaixador do Brasil informou Spínola de que o asilo seria concedido, mas com o compromisso de que o general se remeteria ao silêncio. Assim, a declaração a Redmont aconteceu antes desta negociação, e a AP esclarecerá isso no próprio despacho posto em linha. O rigor ético e o profissionalismo da agência noticiosa americana tem uma longa tradição e nota-se até pelo pormenor de um jornalista da AP em Buenos Aires, informado pela delegação do Rio de que Redmont deveria estar a bordo (pois ninguém sabia dele!), ter esperado no aeroporto com pesos no bolso para que o colega pudesse ter moedas para usar a cabina telefónica e ligar para o escritório da capital argentina, onde datilografaram o artigo e o puseram em linha para uso de jornais do mundo inteiro.
“Spínola falou comigo no avião surpreendido e disse-me que eu ou tinha muita sorte ou amigos em lugares importantes. Depois da declaração, posta num documento manuscrito, conversámos mais algum tempo. Deu-me os parabéns pela ideia de entrar no avião. E depois até foi ele que me fez várias perguntas. Quis saber que opinião tinham os brasileiros dele. Falei que tinham muita simpatia. Também me perguntou como era São Paulo. Disse-lhe que era muito grande e poluída. Ele acabou por ir viver para o Rio de Janeiro”, acrescenta o jornalista americano, que depois manteve, até 1976, contacto com o ex-presidente português, mas com as informações a serem atribuídas a fontes próximas do general.
Entre os jornais que Redmont me vai mostrando, enquanto conta aquele momento da sua carreira, estão alguns outros documentos, como um texto interno da AP a elogiar a engenhosidade por trás da reportagem, citando a própria admiração de Spínola, ou uma carta do editor do Estado de São Paulo a dar-lhe os parabéns pelo artigo exclusivo. Também guarda as duas fotos que tirou ao general no avião: a com a máscara de dormir posta, e a outra que foi publicada, neste caso mais tarde autografada pelo próprio Spínola. Também está em cima da mesa a biografia de Spínola da autoria de Luís Nuno Rodrigues, onde descobri esta história da conversa de Redmont com o general do monóculo, algures no espaço aéreo entre o Rio de Janeiro e Buenos Aires, faz esta semana meio século.
Numa entrevista que fiz ao biógrafo de Spínola nos 50 anos da publicação de Portugal e o Futuro, livro que criticava a Guerra do Ultramar em vésperas do 25 de Abril, este explicou que nesse período que viveu no Brasil, o general “desempenhou um papel ativo na criação e consolidação do MDLP, um movimento político-militar com o objetivo de resistir à alegada implantação de uma ‘ditadura comunista ’que, na sua opinião, estava em marcha desde março de 1975. O MDLP seria responsável por uma grave onda de violência em Portugal, com atentados a sedes de partidos políticos e com assassinatos”.
Já depois da tomada de posse do I Governo Constitucional, no quadro da normalização da vida política e militar do país, acrescentou Luís Nuno Rodrigues, “Spínola regressou a Portugal em agosto de 1976 e foi imediatamente preso e levado para o Forte de Caxias, onde seria ouvido a propósito da sua ligação aos acontecimentos do 11 de Março de 1975 e também da sua ligação ao MDLP. A falta de indícios formais e claros ditou a sua libertação a 12 de agosto de 1976. Meses depois publicaria o livro intitulado Ao Serviço de Portugal, no qual reuniu discursos e intervenções públicas dos períodos em que foi Presidente da República e em que esteve no exílio. Em novembro de 1976, seria formalmente ilibado no processo relativo ao 11 de Março”. Spínola seria reintegrado nas Forças Armadas em março de 1978 e promovido a marechal em 1981. Morreu em 1996, nunca tendo deixado de ser uma figura polémica.
Esta segunda-feira à tarde em Lisboa, no Picadeiro Real, a sessão evocativa “O 11 de Março, 50 anos depois” tentará trazer mais alguma luz aos acontecimentos que acabaram por resultar no exílio de Spínola, que fora Presidente da República até 30 de setembro de 1974, sendo substituído pelo também general Costa Gomes.
Redmont, que tem numa parede do escritório, em casa, fotografias com gente tão famosa como Henry Kissinger ou Sofia Loren, também com Mário Soares e Eusébio, conta ainda que, quando soube do 25 de Abril em Portugal, tentou convencer a AP a enviá-lo para Lisboa. Mas que a resposta da direção da agência foi de que seriam os jornalistas já na Europa a cobrir a Revolução Portuguesa, pois havia muito para ele noticiar na América do Sul - afinal era a época do golpe do general Pinochet contra Salvador Allende e, pouco depois, viria o regime dos generais na Argentina. No próprio Brasil, vivia-se a época retratada no filme Ainda Estou Aqui, vencedor recente de um Óscar, um tempo em que a ditadura militar prendia e torturava os opositores.
Quem veio a Portugal em reportagem logo a seguir à Revolução de 1974 foi Bernard Redmont, pai de Dennis, então na delegação da televisão CBS em Paris. Visitei um dia Redmont pai, em Boston, e comento agora com o filho uma velha fotografia, que me recordo de ver exposta, de uma caminhada de Bernard por Paris ao lado de JFK e com a Torre Eiffel em fundo. E volto a vê-la agora, mostrada com orgulho por um filho que se apaixonou pela profissão do pai.
“Eu, nessa altura, no Rio, a seguir ao 25 de Abril, em vez de escrever sobre o MFA, escrevi um pouco sobre o MFB. Sim, o MFB. O Movimento dos Foragidos para o Brasil, de Caetano a Spínola”, diz Redmont, entre risos. A entrevista que fez a um desses “foragidos” no avião faz parte da história da AP.