Cumprem-se esta terça-feira 18 anos após o referendo que validou o direito ao aborto por decisão exclusiva da mulher, a 11 de fevereiro de 2007. 18 anos depois, a lei mantém-se inalterada, com o prazo mais curto da Europa (dez semanas de gravidez) e, inspirada na legislação britânica de 1967, com imposição de um período de reflexão de três dias e exigência de dois médicos no processo. Três aspetos que o ex-ministro da Saúde Manuel Pizarro, que esteve em funções até 1 de abril de 2024, assume ao DN lamentar não ter alterado: “Não consegui promover a alteração legislativa que era decisiva, muito importante.”Penaliza-se também por “não ter feito mais” para resolver os problemas de acesso à interrupção de gravidez no Serviço Nacional de Saúde que uma investigação do DN, cuja publicação se iniciou em fevereiro de 2023, denunciou existirem - e que auditorias subsequentes da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) e da Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS), conhecidas em setembro do mesmo ano, confirmaram. “Hoje sinto uma enorme tristeza por não ter feito a alteração legislativa. Porque além de tudo o mais teria sido relativamente consensual na sociedade portuguesa. Uma alteração que agora foi chumbada no parlamento porque há um ressurgimento de um certo obscurantismo”, diz o ex-governante, que passa a explicar o que teria mudado e porquê.“Primeira alteração: não há nenhuma boa razão para se manter hoje as 10 semanas de gravidez como limite - só isso, passar para as 12 semanas, resolveria o problema, que é retratado no estudo da ERS de 2023, de 10% das senhoras que vão à consulta prévia e já não puderam fazer a interrupção voluntária da gravidez [IVG] porque tinham passado o prazo legal. Também não se encontra nenhuma boa razão para que a datação da gravidez, no início do processo, tenha de receber um diagnóstico por parte de dois médicos. Porque de facto isso em certas regiões do país, onde há poucos médicos não objetores de consciência, ainda aumenta mais a dificuldade de acesso ao sistema. É mesmo o único ato médico que exige a participação de mais do que um profissional, e nem consigo compreender como não é a própria Ordem dos Médicos a reclamar a abolição dessa exigência, porque se trata de uma norma que apouca a legitimidade profissional dos médicos, insinuando que podem falsificar os dados… O terceiro aspecto é o período de reflexão obrigatório de três dias. Que é paternalista e diz mais respeito à dignidade que à dificuldade do acesso. Seriam as três alterações que me fariam sentido.”Num governo de um partido - o PS - que dispunha de maioria absoluta no parlamento, por que motivo não foram essas alterações propostas e aprovadas? O ex-ministro suspira. “Porque entre preparar alterações legislativas e implementá-las o tempo esvaiu-se”. Passou um ano desde o alerta do DN sobre as dificuldades de acesso e o fim do governo PS. “Sim, foi um ano, mas um ano é muito e pouco conforme o ângulo em que estamos. Não desvalorizo nada esta questão, mas não era a única que nos ocupava. E depois, estávamos a montar - é laborioso e demorado mas íamos fazê-lo - o sistema de modo a permitir que o acesso à IVG fosse feito inteiramente nos cuidados de saúde primários. Isso não tem nada de espectacular - aliás em Portugal já foi feito, era feito no Centro de Saúde de Amarante, foi interrompido durante a pandemia e não tinha sido retomado - e estávamos a trabalhar para desenvolver um normativo a esse respeito e criar condições para que em certas zonas do país, como a região de Lisboa e Vale do Tejo, e certas regiões do interior, o acesso pudesse ser feito a partir dos cuidados de saúde primários. O acesso pleno - porque estamos a falar da possibilidade, na esmagadora maioria dos casos, de fazer a IVG por métodos farmacológicos e de confirmar se está tudo bem por métodos imagiológicos. Nada disto exige a tecnologia de um hospital.”Em todo o caso, e malgrado a evidência de que um terço dos hospitais não tem consulta de IVG devido à objeção de consciência dos obstetras - de acordo com as contas da ERS e da IGAS serão mais de 80% os médicos dessa especialidade objetores -, Manuel Pizarro insiste em que o balanço da legalização da interrupção de gravidez por vontade exclusiva da mulher é um sucesso.“Valorizo muito e valorizei na altura, quando o DN o revelou, aquilo que para mim foi uma autêntica descoberta - a existência de inúmeros casos de dificuldade de acesso à IVG. Ainda assim quero realçar que na minha análise o que caracteriza a situação portuguesa não é a dificuldade de acesso, é que o país e o SNS resolveram a realidade do aborto clandestino. Com isso não desvalorizo em nada os casos registados, conhecidos, divulgados, em que as coisas não funcionaram, em que as pessoas encontraram barreiras, isso tem de ser visto. Mas vamos lá ver, há 20 anos havia um problema dramático de aborto clandestino no país, causando gravíssimos problemas de saúde às mulheres atingidas, e um enorme problema de dignidade, porque as mulheres tinham de recorrer à IVG num ambiente de clandestinidade, havendo perseguições policiais e judiciais, e isso foi resolvido. E isso faz do país um caso de sucesso. Em média as pessoas têm acesso em tempo oportuno e são adequadamente acompanhadas e são na sua esmagadora maioria, mais de 90%, orientadas para as consultas de planeamento familiar. Não devemos desvalorizar o que corre mal, porém acho deletério deitar fora o que fizemos - porque me lembro bem de outro país, o país anterior a 2007.”Ainda este domingo o DN entrevistou uma mulher que foi várias vezes questionada, em 2023, quando estava no processo de IVG, por médicos sobre por que motivo queria interromper a gravidez - uma mulher que diz agora que, caso soubesse que ia ser assim tratada, teria ido abortar ao privado. E nesta segunda-feira, o jornal ouviu de uma funcionária de um hospital, questionada sobre como se processa a IVG ali, “não fazemos isso aqui, tem de ligar para outro hospital”. É isto que é suposto suceder? Manuel Pizarro escandaliza-se: “Não, de maneira nenhuma, as pessoas têm de ser tratadas com respeito, carinho, encaminhadas dentro do sistema, não pode acontecer isso de mandarem a senhora ligar para outro hospital. Nunca me ouviu dizer que está tudo a correr lindamente.”