Lacerda Sales esteve sempre  acompanhado pela sua advogada
Lacerda Sales esteve sempre acompanhado pela sua advogada JOSÉ SENA GOULÃO

Caso das gémeas. Lacerda Sales chegou e disse: “Não interferi.” Depois calou-se. Aos deputados deixou “mais dúvidas” e “mais contradições”

O ex-secretário de Estado da Saúde do PS esteve na Comissão de Inquérito sobre o caso das gémeas luso-brasileiras com Atrofia Muscular Espinhal tipo 1 que receberam o medicamento mais caro do mundo no Hospital Santa Maria. Foi a 37 ª audição, será a última se o Presidente da República não aceitar ir ao Parlamento.
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Em junho, António Lacerda Sales, o ex-secretário de Estado da Saúde da equipa de Marta Temido, foi o primeiro a ser ouvido na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o caso das gémeas luso-brasileiras, que receberam tratamento no Hospital Santa Maria, com o medicamento mais caro do mundo, o zolgensma, para a doença que têm, Atrofia Muscular Espinhal Tipo 1. Na altura, disse aos deputados: “Não tive interferência pessoal nem política”.

E fez o mesmo nesta sexta-feira, na 37.ª audição, pedida pelo partido Chega, através de um requerimento potestativo. Mas esta pode ser a última desta comissão, antes de os deputados começarem a debater tudo o que foi dito durante estes meses no Parlamento e até em depoimentos escritos para chegarem a conclusões, as quais devem ser vertidas num relatório final, ainda sem data de finalização e de publicação. No entanto, se o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, aceitar ir ao Parlamento, tal como disse no início dos trabalhos da comissão, para esclarecer dúvidas que ainda existiam sobre a participação da presidência neste processo, mais audições poderão ser marcadas. Recorde-se que o que está em causa é se houve ou não interferência política num caso de Saúde, junto de uma estrutura hospitalar, para que as gémeas luso-brasileiras fossem tratadas no nosso país.

Em resumo, e ao fim de uma hora e poucos minutos, Lacerda Sales saiu da Comissão, apenas com uma declaração de princípio, mas sem responder aos deputados, alegando que só ali estava por “um exercício de responsabilidade”, porque a sua condição de arguido no processo em fase de inquérito a decorrer no Ministério Público da Comarca de Lisboa e a sua obrigação ao segredo de justiça o obrigavam ao silêncio - Nuno Rebelo de Sousa, filho do Presidente da República, e o então diretor clínico de Santa Maria, Luís Pinheiro, são os outros arguidos neste processo.

Para os deputados, foi mais uma hora em que o ex-governante acabou por deixar “mais contradições”, “mais dúvidas” e até a “perceção” de que “quem cala consente”, como referiu André Ventura.

O ex-governante, que assumiu na sua declaração que, em 40 anos de serviço público nunca fugiu às suas “obrigações enquanto político” e “responsabilidades”, começou por criticar os contornos que o caso assumiu, considerando que se “transformou nu espetáculo mediático”. “A mediatização excessiva e o oportunismo político que se têm desenvolvido em torno deste caso não contribuem para a busca de soluções ou para o prometido esclarecimento de verdade. Pelo contrário, apenas servem para desvirtuar os verdadeiros propósitos de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que são apurar os factos de forma imparcial e promover um debate saudável e objetivo. Recuso-me a alimentar uma discussão que já ultrapassou largamente o âmbito do apuramento factual e que se transformou num espetáculo mediático. O processo encontra-se sob segredo de justiça e a minha condição de arguido e as responsabilidades legais que daí advém limitam o que possa aqui declarar.”

Ainda assim, disse aos deputados que gostaria de reforçar tudo o que fez enquanto membro do Governo durante três anos e que: “Desde o início toda a minha atuação foi pautada pela transparência e pelo respeito absoluto pelos procedimentos legais e éticos estabelecidos, respeitando sempre os limites das minhas competências enquanto membro do Governo.”

Em seguida referiu que tomou “conhecimento deste caso numa audiência que me foi solicitada e que concedia ao Dr. Nuno Rebelo de Sousa. Na altura deixei claro que este caso seria tratado como todos os casos que nos chegam formalmente ao gabinete, que são sinalizados e encaminhados para as diferentes instituições” e que sempre esteve "disponível para ouvir todos os nossos concidadãos, e como já tive a oportunidade de referir na minha anterior audição nesta Comissão, recebi em audiência a maioria dos que o solicitaram.” Para depois afirmar que da sua parte não houve neste caso “qualquer interferência pessoal ou política que visasse criar no processo assistencial em causa qualquer situação de favor ou vantagem no acesso à prestação de cuidados de saúde para marcação de consulta e muito menos para a prescrição e administração de uma dada terapêutica específica.”

A partir daqui, deixou ainda mais dúvidas aos deputados ao referir que “o regulamento do Sistema Integrado de Referenciação e Gestão de Acesso à Primeira Consulta de Especialidade Hospitalar, nas instituições do Serviço Nacional de Saúde, designado por consulta a tempo e horas, aprovado pela Portaria 95-2013 de 4 de Março, repito, 95-2013 de 4 de Março” é muito claro, já que remete “a responsabilidade pela marcação de consultas de especialidade” para “os cuidados de saúde primários, médicos de clínica geral e familiar, serviços hospitalares como urgências e outras especialidades e entidades do setor social, com acordo de cooperação com a SNS, bem como por entidades externas. A prioridade para a marcação depende da urgência clínica.” Mas questionado mais tarde sobre o que queria dizer com esta declaração, o deputado não deu mais explicações.

Embora, tenha sublinhado nesta audição que, “nem eu, nem outro secretário de Estado ou qualquer responsável político, nem a minha secretária, o meu chefe de gabinete ou qualquer pessoa que desempenhasse funções na Secretaria de Estado, o podia fazer. E eu não fiz. Posso repetir, significa à luz desta portaria, que nem eu, nem outro secretário de Estado ou qualquer responsável político, nem a minha secretária, o meu chefe de gabinete ou qualquer pessoa que desempenhasse funções na Secretaria de Estado, o podia fazer.” Da mesma forma que “a disponibilização de um medicamento como o zolgensma utilizado para tratar crianças com atrofia muscular espinhal é efetuada após a avaliação de um grupo de peritos, que atestam que as mesmas cumprem os requisitos para se submeterem ao tratamento, como se veio a verificar, e que é exatamente o mesmo procedimento para outras doenças e outros medicamentos.”


Por fim, e já depois de dez minutos de declaração, Lacerda Sales recorda aos deputados que este caso “envolve vidas inocentes e um sistema de saúde que se esforça por responder ao sofrimento humano foi transformado numa narrativa confusa, repleta de insinuações, pontas soltas e suspeitas, absolutamente infundadas no que me diz respeito.” E como alguém que “sempre se pautou pela transparência, não consigo aceitar que este episódio seja utilizado para alimentar desconfianças ou narrativas políticas mal intencionadas, ou ainda ataques pessoais ou institucionais, especialmente quando tantos casos verdadeiramente graves na política portuguesa permanecem na sombra e provavelmente são intencionalmente esquecidos. Ou será que a conveniência se sobrepõe e este caso servirá apenas de biombo?”, questiona.

“Este caso não pode e não deve ser reduzido a uma mera disputa política. A proteção dos direitos das crianças, o acesso a cuidados de saúde de qualidade e a utilização responsável dos recursos públicos devem ser as nossas prioridades. Reforço o compromisso que sempre tive com a defesa de um Serviço Nacional de Saúde acessível e justo para todos. Por isso, apelo a que nos afastemos de retóricas incendiárias, hoje mais do que nunca em moda, que apenas contribuem para minar a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas. Não devemos instrumentalizar situações delicadas, sobretudo quando envolvem crianças, para ganhos eleitorais ou partidários. A dignidade das pessoas envolvidas e o respeito pelo sofrimento da família devem estar acima de qualquer outro interesse.” E “uma vez que o processo se encontra em segredo de justiça e após este esclarecimento, limitado pelo segredo de justiça, nada mais direi para além do que aqui afirmo.”

Para o PSD foi “uma declaração que nada acrescentou” e com “contradições”

O deputado António Rodrigues, do PSD, foi o primeiro a intervir na ronda das questões, começando com um comentário: “A declaração que o Sr. acabou de fazer aqui não acrescentou uma única linha à intervenção que tinha feito quando cá veio da última vez. E fiquei na dúvida, mas esclarecer-me-á já de seguida, se vale a pena fazer perguntas ou se apenas vou comentar. Da outra vez o Sr. também disse que não iria responder, porque assumia a sua condição de arguido e acabou por responder quando lhe convinha”. Lacerda Sales confirmou que não iria responder. E António Rodrigues esclareceu também que o objetivo “desta comissão não era encontrar alvos, não era ir atrás de ninguém, era tentar esclarecer uma situação para a qual fomos convocados no âmbito do direito potestativo de um partido.” O que foi feito, sublinhou este deputado, "nos últimos meses, não foi isso. O que assumimos, e estou certo que outros aqui presentes também o assumiram, foi a necessidade de querer esclarecer aquilo que estava aqui em causa e era, como se sabe, uma participação de titulares casos políticos nesta condição."

Segundo o deputado do PSD, Lacerda Sales deixou mais uma contradição na sua declaração desta audição: “Apresentou uma questão que nunca foi evidenciada durante todo este processo da Comissão de Inquérito, que foi assumir que houve uma audiência a Nuno Rebelo de Sousa, especificamente para tratar deste assunto. E disse-o hoje aqui, o que é uma novidade”. António Rodrigues pediu a ex-governante que esclarecesse a situação, mas a resposta foi que “eu e a minha advogada entendemos que não existe qualquer vantagem na minha audição, porquanto irei remeter-me ao silêncio, respeitando assim o segredo de justiça que me é imposto”.


Deputada do PS diz a Lacerda Sales que o seu currículo não está em causa, mas as contradições

A deputada Ana Abrunhosa, também membro do Governo PS na mesma altura que Lacerda Sales, também quis deixar claro que “se há algo que aqui ficou claro é que todos nos norteámos pela procura de perceber se houve ou não intervenção política, e essa é a única componente que podemos trabalhar neste processo”. E, sendo hoje, “a última audição que temos, vemo-nos confrontados com uma série de contradições”, relembrando ao colega de Governo que, nesta comissão, “não está em causa o seu currículo enquanto médico ou dirigente político”, mas, no fundo, as contradições entre o que foi dito por Lacerda Sales, pelo e-mal do seu gabinete a pedir uma consulta, e por quase todos as outras pessoas ouvidas neste caso. Não querendo prolongar a sua declaração, já que não ia haver respostas por parte do ex-deputado do PS, Ana Abrunhosa acaba por dizer que se há algum comentário à declaração de hoje “é que ficamos com muitas contradições, com muitas coisas que se disseram e para as quais nós não temos qualquer evidência e até leituras diferentes para o mesmo mail”.

Chega insistiu em obter respostas até porque como “político deve esclarecer os portugueses”

André Ventura falou pelo Chega, partido que tinha pedido mais esta audiência, pergunta a Lacerda Sales, após estes meses de audições e de ter havido uma série de pessoas que alo foram dizer que havia interferência da sua parte, “como é que pode vir a uma comissão de inquérito e não nos dizer, pelo menos, isto – 'olhe que estas pessoas estão a tentar conspirar para me incriminar' ou que 'estas pessoas estão a mentir' ou que 'estas pessoas estão influenciadas politicamente'. O que seja, mas dar-nos uma resposta, porque estamos a chegar ao fim.” Ventura diz também que a comissão “vir à comissão não é como ir ao tribunal. Eu não sou procurador, nenhum de nós é, nem juiz. Isso responderá no tribunal. Aqui, há uma questão política. Estas pessoas implicaram-no diretamente? Como é que responde a estas pessoas? O que tem para lhes dizer?” O líder parlamentar do Chega insistiu, mas Sales respondeu: “Mantenho a posição inicialmente anunciada, não vou responder.” André Ventura vota a insistir comentando, mais uma vez: “Como é que o Sr. pode vir à comissão de inquérito, perante os deputados de todos partidos e dizer que não responde. Pode não dizer nada a mim, pode não dizer nada ao Ministério Público, pode não dizer nada quando chegar ao julgamento, se ele vier a existir, mas o senhor não é só um cidadão português, é um político também. Foi político durante muitos anos e tem o dever de esclarecer os portugueses”. Lacerda Sales apenas referiu que “o meu silêncio não é nenhuma confissão”. Ao que André Ventura retorquiu que fica a percepção que “quem cala consente”.

IL considerou que esta era a oportunidade de esclarecimento

Joana Cordeiro, deputada do Iniciativa Liberal, começou por recordar que a esta comissão leva já tanto tempo porque se calhar logo no início “não foram dadas dadas explicações que deviam ter sido dadas”, porque desde o início a posição da comissão foi a de que “estas crianças tinham direito ao tratamento. Portanto, isso nunca esteve em causa. O ponto fundamental desta comissão de inquérito é tentar perceber aquilo que ficou escrito no processo clínico é, de facto, uma interferência da Secretaria de Estado e do Secretário de Estado.” A deputada disse mesmo a Lacerda Sales que esta última audição era “a oportunidade para que, perante todas as pessoas, esta situação ficasse resolvida”, sendo este o único ponto que gostaria de ver esclarecido e até par mudar a imagem que fica dele próprio neste processo .

BE considera que comissão conseguiu evidência sobre várias questões

Joana Mortágua do Bloco de Esquerda disse a Lacerda Sales que estava de acordo com que quem já tinha referido que a sua “postura relativamente arbitrária, ou aparentemente errática, sobre não falar, também nos deixa na dúvida”, porque “já respondeu em determinadas circunstâncias, portanto sou levada a tentar a minha sorte, acabando por questionar o ex-governante sobre o que queria dizer pelo facto de “ninguém ter feito nada até este caso chegar até a si”. Ou seja, “a ação que fez com que com estas crianças fossem tratadas devia ter sido tomada antes por outra entidade por outras pessoas?, que se deveriam ter comovido ou, de alguma forma, deviam ter intervindo sobre o caso. Pergunto-lhe: era isso que queria dizer com estas palavras?”. Lacerda Sales não respondeu e a deputada do Bloco fez questão de referir que chegados à última audição já era possível verificar algumas coisas: “A primeira é que a atribuição da nacionalidade das crianças em causa cumpriu os trâmites normais e esteve em linha com a demora dos casos deste tipo, menos complexos, porque existem ascendentes com a nacionalidade portuguesa e por serem bebés, com a complexidade do caso de saúde que tinham. A segunda é que ao contrário do que se dizia, a nacionalidade não foi atribuída em 15 dias, isso apenas se refere à tramitação no IRN e que não contabilizou os procedimentos feitos anteriormente pelo próprio consulado, em cujos trâmites, apesar de termos verificado e constatado alguns procedimentos estranhos em relação a este caso em concreto, não encontramos nenhuma irregularidade. Em terceiro lugar, que as crianças, sendo portuguesas, eram beneficiárias do Serviço Nacional de Saúde. Em quarto lugar, que as crianças tiveram indicação clínica para o tratamento em causa, assim como outras crianças, não havendo prova de que a aplicação desse tratamento fez com que essas crianças passassem à frente de outras ou que tenham retirado a possibilidade de outras crianças acederem ao mesmo tratamento. Estas são as conclusões que nós tiramos”, sublinhou Joana Mortágua, embora persistam dúvidas pela falta de esclarecimento da parte do ex-governante. 

Livre: “Se era uma situação tão simples como parece; porque houve envolvimento do secretário de Estado?”

Paulo Muacho disse a Lacerda Sales que, “quando falamos da questão da marcação da consulta e com tudo que aqui ouvimos e todos os documentos que temos, a explicação mais simples é, provavelmente, que foi o dr. que ordenou à sua secretária, ou pediu à sua secretária, para marcar a consulta. Pelo menos, foi o a impressão que ficou do depoimento de Carla Silva (secretária) aqui na comissão. Várias outras pessoas também confirmaram que a indicação que ela deu foi sempre de que, no fundo, estaria a tomar aquelas diligências a seu pedido. E, portanto, fica a questão porque é que tentou empurrar essa responsabilidade para a sua secretária”, questionou, continuando: “Porque é que toda esta situação acontece se era tão simples, porque havia duas crianças que tinham nacionalidade portuguesa, que tinham direito à nacionalidade portuguesa poderem, simplesmente, dirigirem-se ao Serviço Nacional de Saúde, pedir a marcação de uma consulta e pedir, se a isso tivessem direito, um tratamento?” No fundo, “porque há envolvimento do secretário de Estado?, porque há envolvimento do dr. Nuno Rebelo de Sousa e  porque há o envolvimento de todas estas pessoas numa coisa que, aparentemente, era muito simples?” Mas Lacerda Sales remeteu-se de novo ao silêncio.


CDS concorda com contradições que persistem mas não vê silêncio como “confissão”

O deputado João Almeida do CDS foi o último a intervir antes de o presidente da Comissão dar por terminada audição, uma vez que Lacerda Sales se recusava a responder às questões dos deputados. O próprio deputado centrista disse mesmo que ia resistir à tentação de fazer comentários, porque, os deputados vão ter tempo para debater tudo o que ali foi dito. “É a última audição, mas não é a última reunião da comissão, o relatório vai ter de ser debatido”. Mas disse a Lacerda Sales que “há contradições manifestas entre aquilo que disse parcialmente no depoimento da primeira vez que cá esteve, nas questões às quais respondeu, e os depoimentos das pessoas que vieram a ser prestar depoimento nesta comissão”. O deputado diz não interpretar os silêncios de Lacerda Sales como “ uma confissão”, mas que esta poderia ter sido a oportunidade para prestar alguns esclarecimentos.

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