No atual contexto de instabilidade geopolítica da Europa, está em cima da mesa uma estratégia industrial para a defesa da União Europeia? Em que fase é que Portugal está neste momento?Portugal está, com certeza, muito atento e é preciso que esteja. Estão muitas coisas em cima da mesa, muitas coisas a mexer, nesta nova estratégia industrial de defesa para a Europa. Há depois o lado financeiro, com o Fundo Europeu de Defesa, que está significativamente dotado e que vai ser ainda mais dotado e de uma forma bastante sensível no futuro próximo. A Comissão Europeia tem agora um Comissário para as Indústrias de Defesa e até meados de março deverá ser apresentado um livro branco. A EuroDefense, com as suas 16 associações em toda a Europa, está desde novembro a trabalhar intensamente para preparar um conjunto de recomendações.A opinião pública está preparada para este debate?Nem a opinião pública nem para além da opinião pública. O que se passa é um grande desconhecimento. E é um viver muito de costas voltadas uns para os outros. Daqueles que deviam ser os parceiros deste processo. O progresso europeu nesta matéria não será efetivo se não conseguirmos a convergência de três tipos de entidades. Por um lado, o Estado, a Administração Pública, incluindo as Forças Armadas. Por outro lado, a Academia lato sensu e também nela incluindo o sistema científico e tecnológico nacional. Em terceiro lugar, o mundo empresarial e, em particular, o mundo industrial. Há quem chame isso o “Triple Helix”. É o que queremos. Precisamos da propulsão articulada conjugada destes três componentes para que a coisa toda avance. Em Portugal estamos a tentar fazer isto mexer... .Também vemos com grande satisfação que depois de tempos em que o ministério da Economia não mostrou estar disponível para se envolver muito nesta matéria, hoje sinto uma atitude completamente diferente.. Quem devia que fazer isso?Penso que até de um ponto de vista de responsabilidade política, era o Estado, mas tem tido dificuldades. Em boa verdade, quem tem feito mais este tipo de tentativa de articulação entre todas estas partes tem sido o EuroDefense. Não o digo para me vangloriar disso, porque tenho pena que seja preciso uma entidade da sociedade civil a fazê-lo. Acho que o Estado vai assumir um papel maior, forçosamente, seja no quadro de uma Direção de Recursos que tenha uma componente de armamento e equipamento, seja no quadro da criação de uma Direção Geral de Armamento. Não pode deixar de ser o Estado a mexer. Naturalmente, também em articulação com o ministério da Economia. Também vemos com grande satisfação que depois de tempos em que o ministério da Economia não mostrou estar disponível para se envolver muito nesta matéria, hoje sinto uma atitude completamente diferente. Mais atenção, mais empenho de uma leitura mais correta das perspetivas que há, porque vai estar disponível muito dinheiro para se fazerem coisas e em Portugal há capacidade para fazer muitas coisas. . Em Portugal ainda temos como meta, em 2029, ter 2% do PIB em despesas de Defesa, cerca de 6 mil milhões, mas é possível chegar aos 3 ou 4%, com já admitiu Donald Trump, por exemplo. Como se consciencializa as pessoas para isso? Estamos a falar de cerca de 8 mil milhões de euros, como referiu o embaixador Martins da Cruz, seria praticamente a 3º ou 4ª maior despesa pública, a seguir à educação e à saúde…As pessoas têm de perceber que não pode haver políticas de saúde, de educação, de segurança social, não há bem estar e não há desenvolvimento se não houver defesa. São duas faces da mesma moeda que ou se reforçam mutuamente ou se prejudicam mutuamente.É compreensível que, em determinados momentos, as circunstâncias políticas, económicas e sociais haja maior prioridade de uma em relação a outra. Mas isso é uma prioridade conjuntural. Neste momento, a conjuntura sugere que se dê uma muito maior prioridade à componente da Defesa. Acho que se vai abrir um livro novo, porventura com cores que não vão ser muito cor de rosa, a partir do dia 20 de Janeiro. Receio bem isso. Além de tudo o que eu vejo são divisões internas no seio da União Europeia (UE), tudo isso é muito preocupante. .Neste momento, a conjuntura sugere que se dê uma muito maior prioridade à componente da Defesa. Acho que se vai abrir um livro novo, porventura com cores que não vão ser muito cor de rosa, a partir do dia 20 de Janeiro.. Qual acha que vai ser a marca de 20 de janeiro, data em em Donald Trump toma posse como Presidente dos EUA?Como historicamente sabemos, Trump nunca deu grande importância à Europa. Depois aprovou uma estratégia nacional em que dedicava meia linha, literalmente, à Europa, dizendo que a UE era um rival comercial. E disse aquela coisa extraordinária de que a NATO era um ser obsoleto e sem qualquer interesse. Houve mais coisas pelo meio, mas depois veio a guerra na Ucrânia e tudo se alterou. Como é que as coisas se vão passar? Ninguém sabe. E eu não tenho nenhuma bola de cristal para saber. Mas sei bem que o senhor Trump vai expressar uma atitude muito transacional. Não é bem o nacionalismo ou isolacionismo americano. Vai ser mais uma atitude transacional. Eu dou se tu me deres…É sempre um homem de negócios…Mas isto, obviamente, terá como consequência que temos de investir mais. Outra potencial dificuldade se for adotada esta postura transacional, é os Estados Unidos decidirem fazer uma leitura caso a caso do artigo 5º. Seria o colapso da NATO. Houve sempre uma preocupação na NATO de nunca tipificar muito o artigo 5º quinto, que era exatamente criar flexibilidade por um lado, e, por outro lado, introduzir o potencial adversário, fosse qual fosse, o elemento de alguma ambiguidade. Se houver uma tentação norte-americana, de entre aspas, regulamentar o artigo 5º, será politicamente muito mau.O ex-Chefe de Estado-Maior da Armada, Gouveia Melo falou recentemente sobre a necessidade do reforço orçamental na Defesa, afirmando: “o que interessa termos despesas sociais se não tivermos país?” Acha que estamos já a esse nível?É uma expressão que o Senhor de La Palice não diria melhor. Mas sim, é verdade. Precisamos realmente das duas coisas ao mesmo tempo. Por exemplo, no período de intervenção da troika aqui em Portugal, não tenho nenhuma dúvida que se tinha de dar prioridade às questões da economia, mesmo em detrimento de outras coisas, como a defesa. Agora não tenho nenhuma dúvida que tem de se dar uma grande prioridade à defesa. Podemos ter a convicção e a tranquilidade de saber que não estaremos isolados. Teremos connosco a UE e na UE vemos por todo o lado uma reforçada atenção e uma clara convocação de importantes recursos para ajudar todos os países nisso. .Hoje a preocupação é criar condições para que todo o progresso que se faça sem por em causa a harmonia e a coesão entre todos os países da UE e que haja um lugar inequívoco para as pequenas e médias empresas.. Estamos a falar de maior investimento em equipamento para guerra convencional ou também de duplo uso, compatível com os objetivos de coesão social, económica e territorial, citando aqui o parecer do deputado José Luís Carneiro sobre o Programa da Indústria de Defesa Europeia?Na Europa houve um tempo histórico, não muito recuado, em que a tese predominante era que tinha de ter campeões europeus, tipo Airbus. Hoje a perspetiva é outra, porque dessa forma muitos países de pequena e média dimensão ficam fora do jogo. Hoje a preocupação é criar condições para que todo o progresso que se faça sem por em causa a harmonia e a coesão entre todos os países da UE e que haja um lugar inequívoco para as pequenas e médias empresas.Quais podem ser os nossos setores chave?O nosso setor chave está na imaginação, em primeiríssimo lugar. Depois a vontade. Mas temos coisas que funcionam muito bem. Por exemplo, a nossa indústria de drones é extraordinária, a indústria aeronáutica, a de sistemas de comunicações e de informações. Temos, certamente, que nos centrar em nichos. Claro, também podemos fazer coisas mais pesadas, como as munições, cuja carência é enorme na Europa.Ainda não se definiu quais vão ser esses setores em que Portugal deve apostar?Não há clareza quanto a isso. Devia haver. A EuroDefense está a fazer uma coisa que eu acho absolutamente fantástica: prospetiva. Infelizmente não se faz muito em Portugal. Convidámos 16 entidades, 14 das quais aceitaram, para fazer um estudo para ver como é que neste progresso de hoje até 2035, que capacidades militares e indústrias de defesa portuguesas se podem casar virtuosamente. Estamos a fazer outra coisa que tem aberto muito espíritos aqui em Portugal. Fizemos, pela primeira vez, no ano passado, em 2024, dois cursos avançados em estudos de Economia e de Defesa, um deles com a Faculdade de Economia de Coimbra, outro com ISEG, aqui em Lisboa, em que mais uma vez procurámos ter junto a Academia e gente das Forças Armadas, portanto, do Estado, e das indústrias de grande sucesso. Isto nunca foi feito na Europa e causa aos nossos parceiros e o maior interesse e a maior curiosidade. . A nossa lei de contratação é exigente suficiente, uma vez que a área da Defesa está identificada como uma de maior risco de corrupção?Temos em Portugal uma lei da contratação pública em matéria de armamento e equipamento, que é mais papista do que o Papa, mais exigente do que o normativo comunitário. Isso, obviamente, tem que ser revisto. .Temos em Portugal uma lei da contratação pública em matéria de armamento e equipamento, que é mais papista do que o Papa, mais exigente do que o normativo comunitário. Isso, obviamente, tem que ser revisto.. Em Espanha há muito tempo que isso não é assim, tem alguma tranquilidade em não observar o mecanismo comunitário, porque às vezes é mais fácil pagar a multa. E Espanha tem uma dimensão que nós não temos, por causa do mercado latino americano. Temos cerca de 400 empresas que contribuem para o setor da Defesa. Há bocado não tive oportunidade de falar do duplo uso. Temos de explorar o duplo uso nas tecnologias, porque isso leva essa preocupação mais abaixo e, portanto, alarga a possibilidade de intervenção às nossas empresas. O núcleo das tais 400 empresas têm uma taxa de internacionalização que ninguém tem na economia portuguesa. São capazes porque são muito boas tecnologicamente também e têm mercado, tem esse. Têm taxas remuneratórias para os seus funcionários que ninguém mais têm em Portugal.Que alterações propõe à lei de contratação?Devia, no mínimo, não ir mais longe do que a imposição europeia desde o Tratado de Roma, em 1950, o qual previa exceções nos mecanismos da livre concorrência europeia. Não estou a sugerir que Portugal assuma uma atitude, como ainda há pouco referi, que alguns países adotam, de desrespeitar a lei e depois pagar as multas. .Entendo que é absolutamente indispensável não ir mais longe do que a exigência europeia. Tem sido um colete de forças para a indústria defesa em Portugal.. Entendo que é absolutamente indispensável não ir mais longe do que a exigência europeia. Tem sido um colete de forças para a indústria defesa em Portugal.O primeiro-ministro admite rever de novo a antecipação do prazo para alcançar os 2% do PIB, que já antecipou para 2029. O que acha que seria razoável tendo em conta todos os constrangimentos do país?Seria desejável que se atingisse tão cedo quanto possível. A nossa convergência não pode ser em termos de indicadores macro financeiros, tem que ser em termos de capacidades militares. Precisamos que as nossas forças sejam, do ponto de vista qualitativo, completamente análogas em termos de capacidades e possibilidades às europeias. Isso é que é importante. Que o batalhão português seja igual ao holandês, que a fragata portuguesa seja equivalente à dos italianos. Que o caça português seja equivalente ou igual ao que usam os dinamarqueses ou os belgas. Isso é que é o nosso objetivo. E isso custa dinheiro. Não é o 2%, Não é uma coisa mágica. Agora eu percebo que é uma coisa que se usa para dar sensibilidade, para sensibilizar a opinião pública. Mas o que é importante é que haja essa convergência em termos de capacidades. No passado, quando nós éramos menos capazes, militarmente falando, por causa das limitações de equipamento ficámos um bocadinho atrás. Quando isso acontecia, não éramos interoperáveis com os nossos aliados e parceiros. Isso era mau. Não conseguimos funcionar bem em conjunto. Agora o tempo já é outro. .Estamos num tempo em que também na Defesa está a chegar, em particular para a Europa, o modelo da soberania partilhada. Portanto, se ficarmos de fora em termos de soberania partilhada, ficaremos claramente um país muito, muito, muito baixo na escala.. Estamos num tempo em que também na Defesa está a chegar, em particular para a Europa, o modelo da soberania partilhada. Portanto, se ficarmos de fora em termos de soberania partilhada, ficaremos claramente um país muito, muito, muito baixo na escala. No contexto da UE isso não pode acontecer.Como é que essa “soberania partilhada” se vai conciliar com o crescimento dos nacionalismos europeus que se verifica?Pois é um enorme desafio e um enorme problema para lhe dar uma espécie de medida da inquietação que isso provoca. O que está a formar se na Europa Central é extraordinariamente preocupante. Quando vamos a uma reunião internacional europeia, percebemos, sem nenhuma sombra - não vou dizer se está certo ou se está errado - os países escandinavos, os países do Báltico, a Polónia, estão em pé de guerra. Só não estão a combater, mas estão em pé de guerra. Nós estamos aqui com estas discussões e estamos a ver no centro da Europa a conjugar se uma espécie de um núcleo, se não é pró-Putin, pelo menos não é contra, com todas as suas agressões ao direito internacional, ao direito humanitário e à boa convivência das nações.