Esquerda unida, direita dividida nas alterações à lei do aborto. Todos os projetos chumbados
Todos os projetos apresentados esta sexta-feira com alterações à lei 16/2007, ou “lei do aborto”, foram chumbados devido à posição do PSD, que votou contra todos, inclusive o do CDS/PP, seu parceiro de coligação.
Ficaram assim sem efeito as propostas de alargamento do prazo da interrupção de gravidez das 10 atuais semanas para as 12 (proposta de PS e PCP) e 14 (BE e Livre) e também a do CDS, que visava repor as medidas que a maioria PSD/CDS aprovou em 2015, no último dia da legislatura, e que o líder parlamentar do CDS assumiu, na campanha das últimas legislativas, terem o efeito de “dificultar o acesso ao aborto”. O projeto de lei do Chega, que entre outras medidas sem relação com a interrupção da gravidez queria obrigar as mulheres que pretendem fazer um aborto a “ouvir o batimento cardíaco”, foi igualmente chumbado, colhendo apenas votos favoráveis do partido autor e do CDS.
Tal como a votação, o debate, iniciado às 10 da manhã em ponto desta sexta-feira, ficou marcado pela divisão da direita, quer pela posição do PSD, que manifestou o seu propósito de manter tudo na mesma, quer pela da Iniciativa Liberal, que não apresentou qualquer proposta mas, pela voz de Mariana Leitão, fez a defesa das alterações da lei propostas pelos partidos de esquerda.
“Este debate é necessário”, declarou a deputada, “porque o acesso à interrupção voluntária da gravidez [IVG], consagrado pela lei, não é acessível a todas as mulheres. Há mulheres que numa das decisões mais difíceis da sua vida enfrentam obstáculos. Em vez de encontrarem um sistema de saúde que as apoia e respeita, são empurradas para longe, obrigadas a deslocar-se para outras cidades, com custos emocionais, físicos e financeiros que poderiam ser evitados. Em variados casos, as limitações deste mesmo sistema de saúde tornam impossível o acesso básico ao direito consagrado na lei.”
Frisando que “nenhuma mulher deve ser forçada a continuar uma gravidez para a qual não está preparada, e não pode ser privada do direito de decidir”, Mariana Leitão lembrou que “as barreiras que muitas mulheres enfrentam prolongam o processo”, e que “Portugal é dos países da União Europeia com a legislação mais restritiva” pelo que “alargar o prazo é um ato de justiça, um ato de justiça e humanidade.”
Quanto à regulamentação da objeção de consciência, outro aspeto dos projetos de lei da esquerda, que quer balizá-la e certificar que se trata de um direito individual dos profissionais e que não há unidades de saúde objetoras, a deputada da IL afirmou: “A objeção de consciência não pode ser uma capa para a negação de direitos. Não pode ser usada para perpetuar desigualdades no acesso à saúde, e muito menos pode ser uma barreira que obriga mulheres a enfrentar julgamentos morais, que não têm lugar numa sociedade desenvolvida, num Estado laico e numa democracia liberal. Como tal, é evidente que existe a necessidade de equilibrar esse direito com o direito de as mulheres a terem acesso à IVG se for essa a sua vontade.”
E terminou, dizendo: “Assegurar o acesso efetivo à IVG é assegurar que os direitos consagrados na lei não são apenas palavras mas realidades, é dizer a todas as mulheres deste país que confiamos nelas, que respeitamos as suas decisões e que não permitiremos que ninguém as impeça de exercer os seus direitos. Porque o que está aqui em causa não é apenas a alteração de uma lei mas o nosso compromisso com a liberdade, a dignidade e os respeito.”
Também Mário Amorim Lopes, do mesmo partido, falando em tempo cedido pelo PSD, quis certificar que a decisão de 2007, de mudar a lei para permitir o aborto por decisão exclusiva da mulher, está alinhada com os valores da IL. Considerando o período de reflexão é “uma infantilização das mulheres”, que o partido rejeita, e que “é preciso encontrar um equilíbrio entre o direito de acesso à IVG e o direito à objeção de consciência”, Amorim Lopes reconheceu que o alargamento do prazo “pode fazer sentido”, lembrando embora que nesta matéria há “uma tensão entre liberdades - a liberdade da mulher de decidir e o direito à vida do feto.” Perante um pedido de esclarecimento do BE, por Joana Mortágua, que perguntou qual era afinal a posição da IL sobre as propostas, o deputado respondeu: “Neste partido não pensamos em bloco. Uns de nós acham que o prazo se deve estender até às 14 semanas, outros até às 12.”
Esquerda para PSD: “Decidam se querem ficar ao lado do Chega”
Foi Isabel Moreira, pelo PS, partido que agendou este debate, a iniciar os discursos desta sexta-feira, sublinhando que o projeto do seu partido pretendia “manter o essencial da lei atual e aprimorá-la, porque em caso algum uma mulher pode ser abandonada por esta lei.”
Elencando as evidências de que a lei atual não está a ser cumprida em todo o território português e defendendo as alterações proposta pelo PS - que alargavam o prazo da interrupção de gravidez por decisão exclusiva da mulher das atuais 10 para 12 semanas, acabavam com o período de reflexão e a obrigatoriedade de dois médicos no processo e estabeleciam balizas para a objeção de consciência, deixando claro que esta não pode impedir o acesso ao direito nem aplicar-se a cuidados de saúde antes e após o procedimento abortivo em si - a parlamentar socialista terminou o seu discurso apelando ao PSD e citando membros do partido que lutaram pela legalização do aborto, como Leonor Beleza, Teresa Leal Coelho, Paula Teixeira da Cruz e Rui Rio.
O mesmo fez o BE, pela voz de Isabel Pires e Joana Mortágua: “Não pedimos que se encontrem com o PS, pedimos que se encontrem convosco.”
Na sua intervenção, e em resposta a críticas do CDS e PSD sobre o facto de a esquerda ter estado em maioria no parlamento sem ter alterado a lei, Joana Mortágua reconheceu: “Demorámos alguns anos a perceber que o direito ao aborto estava a ser posto em causa. Não por uma proibição explícita contra a qual nos pudéssemos manifestar na rua, mas de uma forma perversa - nos interstícios da lei. Essa demora na perceção do que estava a acontecer tem responsabilidades - mas falar agora dessas responsabilidades não vai resolver o problema." E prosseguiu: "É política e democraticamente inaceitável que um direito consagrado seja alvo de boicote na prática. Se reconhecemos o direito das mulheres ao aborto, porque é que as obrigamos ao tormento da humilhação, porque é que depois de lhes reconhecermos o direito as castigamos na prática quando tentam aceder a esse direito?"
Também esta bloquista apelou ao PSD: "O que queremos propor aqui é reforçar, consagrar e efectivar o mesmo direito pelo qual lutaram tantos homens e mulheres da direita portuguesa e do PSD. Presto a minha homenagem a Paula Teixeira da Cruz, a Leonor Beleza, a Teresa Leal Coelho, a José Raul dos Santos, a Emídio Guerreiro, a José Eduardo Martins, a Vasco Rato, a Miguel Relvas, a tantos que se juntaram ao Movimento pelo Sim [no referendo de 2007] para consagrar este direito fundamental para a dignidade das mulheres. A única coisa que queremos agora é efectivar esse direito. e garantir pela lei que ele não é boicotado de cada vez que uma mulher tenta aceder-lhe num hospital em Portugal. É isso que se pede hoje aos deputados do PSD."
"Direito ao aborto está estabilizado e consolidado", diz PSD
Mas o PSD, como se previa, não respondeu ao apelo. Pela voz da deputada Andreia Neto, garantiu que o direito à interrupção da gravidez é "um direito estabilizado e consolidado" e que o partido não diria no debate "qualquer palavra que possa ferir, desconsiderar ou melindrar os direitos das mulheres que lhes foram outorgados pelos portugueses, quer no que respeita ao acesso à saúde sexual e reprodutiva quer no que diz respeito à sua autonomia. Não temos esse direito, ninguém tem. Neste assunto a nossa fidelidade é una e indivisível."
E, em remoque ao PS, que "tendo governado oito longos anos, não verificou em momento algum que, tal qual diz hoje, a lei devia ser alterada", a deputada lembrou a promessa de Luís Montenegro durante a campanha das últimas legislativas, após o CDS, através de Paulo Núncio, ter garantido ser propósito da AD "dificultar o acesso ao aborto", de "não mexer na lei".
"O PSD assumiu em plena campanha que em relação a esta matéria não tencionava proceder a qualquer alteração legislativa. Para nós, palavra dada é mesmo palavra honrada. Estamos empenhados em garantir que os direitos que os portugueses consagraram são para ser cumpridos. Connosco, os direitos das mulheres são para ser cumpridos. Não servem para ganhar luz na oposição e ser conduzidos à clandestinidade no governo", concluiu Andreia Neto, sob o aplauso de pé da sua bancada, que não deu qualquer resposta em relação às comprovadas falhas no acesso ao direito que afirmou estar "consolidado e estabilizado" e consequentemente ao facto de os direitos das mulheres não estarem a ser cumpridos.
Ausente do parlamente esteve, como notou a deputada do Livre Isabel Mendes Lopes, o governo e o ministério da Saúde, dirigido por Ana Paula Martins, que enquanto presidente do Conselho de Administração do Hospital de Santa Maria, como o DN lembrou esta sexta-feira, interveio em fevereiro de 2023 para custear a interrupção de gravidez que uma mulher, perante a falta de resposta em tempo daquele hospital, teve de fazer a suas expensas na Clínica dos Arcos, sob pena de ultrapassar o prazo legal de 10 semanas. Foi a notícia do DN sobre o caso que suscitou a intervenção de Ana Paula Martins, que quis falar diretamente com a mulher em causa para lhe pedir desculpa pelo sucedido. A governante tem assim necessariamente - até porque durante o tempo que esteve em Santa Maria o hospital ultrapassava em muito o prazo legal máximo, que é de cinco dias, para atendimento das mulheres que ali se dirigiam para obter a primeira consulta do processo de IVG - noção das dificuldades que as mulheres enfrentam no acesso ao direito que o PSD assegura estar "consolidado".
Como resumiu Miguel Costa Matos, do PS, glosando a intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa, atual Presidente da República, no debate que antecedeu o referendo de 2007 (quando este disse "é proibido mas pode-se fazer"): “Passou-se do 'é proibido mas pode-se fazer' para o 'é permitido mas não se pode fazer'”.