Da lei dos solos à empresa de Montenegro: como se chegou à queda do Governo e às eleições antecipadas?
Como se chegou aqui?
Tudo começou em janeiro. Nessa altura, soube-se que, alegadamente, o então secretário de Estado do Desenvolvimento Regional, Hernâni Dias, terá constituído duas empresas já enquanto governante, ambas ligadas ao imobiliário e à construção civil, que eram áreas na sua tutela direta. O primeiro-ministro chamou a este caso “uma imprudência”. Hernâni Dias demitir-se-ia dias mais tarde na sequência destas notícias. Depois deste caso, passou a ser o próprio Luís Montenegro a estar debaixo de fogo, devido à Spinumviva, uma empresa familiar, cujas ações eram detidas, em parte, pelo primeiro-ministro. Na sequência das notícias, o chefe do Governo esclareceu que, em 2022 (antes de ser eleito líder do PSD), vendeu essas participações à sua mulher - negócio considerado nulo, uma vez que são casados em comunhão de adquiridos. Já depois de todo o caso ser conhecido, o primeiro-ministro garantiu que a empresa passara, entretanto, a ser detida apenas pelos seus filhos, Hugo e Diogo, que passaram a gerir a Spinumviva.
Com isto, o Governo sobreviveu a duas moções de censura, apresentadas pelo Chega e pelo PCP. Entretanto, perante a "falta de explicações" (como alegou o PS), o Governo acabou por cair, ao apresentar uma moção de confiança, que acabou por ser chumbada.
Quem são os clientes da Spinumviva?
Depois de vários dias de polémica, a própria Spinumviva divulgou uma lista de clientes. Num comunicado, a empresa esclareceu que a Lopes Barata, Consultoria e Gestão, Lda; o CLIP - Colégio Luso Internacional do Porto; a Ferpinta; a Solverde; e a Rádio Popular eram seus clientes. E, alegadamente, a Solverde pagaria uma avença de 4500 euros por mês à Spinumviva, para atualizar a política de privacidade da empresa.
Isto pode representar um conflito de interesses, uma vez que o primeiro-ministro tem a responsabilidade de negociar a concessão de licenças aos casinos, como a Solverde.
O que falta esclarecer?
Para o PS - que anunciou uma Comissão Parlamentar de Inquérito - faltam “os esclarecimentos necessários” por parte do primeiro-ministro. Quais? “Qual a atividade da empresa, que serviços eram efetivamente prestados, quem o fazia e a quem eram oferecidos esses serviços”, disse o deputado Pedro Delgado Alves, no Parlamento. “Só sabendo isso se podem cruzar as informações do Governo sobre eventuais conflitos de interesses”, rematou.
Que esclarecimentos deu Montenegro?
Ainda que não tenha respondido diretamente ao PS, o primeiro-ministro deu respostas ao Bloco de Esquerda e ao Chega, que lhe enviaram questões.
Não obstante não ter apontado os valores recebidos por cliente e tipo de serviço (uma vez que é "matéria interna" das relações entre empresa e cliente), Montenegro mostrou-se convicto de que a cedência de quotas da empresa à mulher foi legal, alegando que as transações entre cônjuge são permitidas desde 1986.
Ao Chega, recusou a eventual influência pessoal na angariação de clientes para a Spinumviva, dizendo que os primeiros chegaram por conhecerem os sócios e os colaboradores da empresa. A "mistura entre atividade empresarial e política de qualquer interveniente nas prestações de serviços em análise" é, disse Montenegro, "abusiva".
Ao PS, poucos ou nenhuns foram os esclarecimentos, explicando apenas que a atividade Spinumviva tinha a ver com consultoria relacionada com a proteção de dados. Mas, perante a falta de mais explicações, os socialistas recusaram dar confiança ao Governo - que caiu.
Além disso, os socialistas quiseram ainda constituir uma Comissão Parlamentar de Inquérito, com a duração de 90 dias - algo que o Governo recusou e, com isso, deu mais um argumento ao PS para votar contra a moção de confiança que foi apresentada.
Quais os próximos passos?
A agenda política é bastante agitada nos próximos meses. No final deste mês, há eleições para a Assembleia Regional da Madeira, antecipadas, devido às suspeitas de corrupção que recaem sob o Executivo madeirense, liderado por Miguel Albuquerque. Antecipadas serão também as eleições legislativas (que deviam acontecer só em 2028). Para isso, há duas datas possíveis, nas contas do Presidente da República: 11 e 18 de maio. Antes, Marcelo Rebelo de Sousa terá de ouvir os partidos (o que acontece esta quarta-feira), e, no dia seguinte às 15.00, vai auscultar o Conselho de Estado. Depois, em setembro ou outubro, haverá eleições autárquicas. E, em janeiro do próximo ano, os portugueses irão novamente às urnas para eleger o próximo Presidente da República.
O que acontece ao Parlamento? E ao Governo?
Depois de ouvir o Conselho de Estado, o Presidente da República irá, então, dissolver a Assembleia da República, que cessará funções. É aí que entra a Comissão Permanente, que trabalhará - com poderes limitados - até à instalação de um novo Parlamento, resultante destas legislativas antecipadas. De acordo com o artigo 179.º da Constituição, a Comissão Permanente funciona nestes hiatos temporais e é “presidida pelo Presidente da Assembleia da República”, José Pedro Aguiar Branco, sendo composta “pelos vice-presidentes” do Parlamento e por “deputados indicados por todos os partidos com assento parlamentar”, consoante a representatividade no hemiciclo.
Em relação ao Governo, o Executivo deixará de ter plenitude de poderes, entrando em funções de gestão. Ou seja, segundo a lei, está limitado à “prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos” (número 5, artigo 186.º da Constituição).