Natural do Porto, José Pedro Aguiar-Branco é advogado, foi ministro por duas ocasiões (2004-2005, no governo de Santana Lopes com a pasta da Justiça e, em 2011-2015 esteve na Defesa com Pedro Passos Coelho). Eleito deputado por Viana do Castelo, é Presidente da Assembleia da República, a segunda figura do Estado. No exercício das suas funções, viu-se envolvido em polémicas sobre a condução dos debates parlamentares e os limites da liberdade de expressão no hemiciclo. Defensor assumido de um papel arbitral não intervencionista, tem reiterado que não será “censor” dos deputados e que a liberdade de expressão dos eleitos deve ser amplamente respeitada. Esta linha de actuação, aplaudida pela bancada do Chega e pela direita têm sido duramente contestada por PS, BE e Livre, que alertam para o risco de normalização de discurso de ódio no Parlamento.Recentemente ocorreu mais um episódio tenso, no Debate do Estado da Nação: Aguiar-Branco advertiu o líder do PS, José Luís Carneiro, por este ter chamado “fanfarrão” a André Ventura, exigindo tratamento mais “urbano” entre colegas.Porém, pouco antes, Ventura havia referido que a oposição de Carneiro era a “mais frouxa” de todas, insulto que passou sem reparo da Mesa.A intervenção do PAR foi recebida com indignação pelas bancadas da esquerda – deputados do PS acusaram-no no plenário de “dualidade de critério” e de “não ter coragem de defender” a dignidade do Parlamento face à extrema-direita.Dias antes Aguiar-Branco defendeu como legítima a leitura em voz alta, por um deputado do Chega, de nomes de crianças filhas de imigrantes para ilustrar um ponto sobre creches – ato que gerou queixas formais (Proteção de Dados e Comissão de Transparência) por possível exposição indevida de menores.O PAR enquadrou também esse caso na liberdade de expressão, admitindo que “pode não se gostar, mas não se pode impedir” esse tipo de intervenção.Antes de ir para férias, recebeu o DN nos claustros da Assembleia da República, para esta entrevista.Estamos outra vez com o debate sobre a liberdade de expressão aceso. Está claro que defende o debate sem mordaças. No entanto, há críticas que lhe são feitas porque dizem que isso é à custa de ser conivente com um discurso e retóricas ofensivas, racistas e xenófobos que promovem o discurso do ódio. Há pouco, no seu gabinete, vimos, tinha na sua secretária obras do professor Adriano Moreira e do doutor Salgado Zenha. Imaginaria como é que achariam essas personagens hoje em dia o Parlamento? O que é que acha que podia mudar?Uma coisa tenho a certeza: qualquer uma dessas personalidades seria tão defensora da liberdade de expressão quanto eu. E devo-lhe dizer que não me importo nada de estar associado e ser considerado um defensor da liberdade de expressão. Os louros não são só meus, porque é a própria Constituição e o regimento que a isso obrigam. E a Constituição não refere que a liberdade de expressão seja sob ponderação do que o Presidente da Assembleia da República (PAR) entende que é liberdade ou não. Inclusivamente no debate parlamentar e no que diz respeito à função de deputado, existe consagração constitucional da imunidade do deputado, que não pode ser perseguido, nem criminal, nem disciplinar, nem civilmente por aquilo que é o discurso político que está associado a esse senhor deputado no exercício da função. E quanto mais liberdade, mais responsabilidade. A liberdade de expressão para mim é um elemento crítico da democracia e ao PAR compete garantir que a dialética democrática se faz com igualdade de armas, que o exercício do direito de contraditório está assegurado em qualquer circunstância e que seja permitido que as ideias sejam contraditadas e seja nessa dialética democrática que o discurso político saia vencedor.Como PAR e nessa função de garante da dialéctica democrática, não estou a ser nem conivente, nem cúmplice, nem concordante, nem discordante do que cada um dos senhores deputados diz porque isso é da responsabilidade de cada um. Não tenho obrigação - muito menos faz parte das minhas competências - eu próprio fazer o contraditório do debate político. Tenho é que garantir que essa dimensão está assegurada. Ou seja, o PAR não existe para condicionar o debate. Existe precisamente para evitar que o debate seja condicionado.Referiu que quanto mais liberdade, maior responsabilidade. Lembro-lhe a posição de um constitucionalista, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que citou até numa sua intervenção, José de Melo Alexandrino, que critica o que diz ser a sua dualidade de critérios quando fala em liberdade de expressão, com responsabilidade, mas, no que toca a esta última ele entende, e os seus críticos também, que podia fazer mais alguma coisa…Mas o quê? Isso é a minha pergunta. Acha que neste momento não há mais nada que possa fazer?A responsabilidade que está associada à liberdade de expressão, por exemplo, pela prática de um crime, ela, no Estado de Direito Democrático, tem uma entidade que deve fazer o impulso daquilo que tem a ver com a eventual prática de um crime: o Ministério Público (MP). Nós vivemos num país democrático, com separação de poderes. A qualificação de uma determinada ação como sendo potencialmente um crime, tem de ser objeto de impulso processual por parte do MP. O julgamento por parte de um político, de uma determinada matéria poder ser dita ou não na casa da democracia, coartando aquilo que é a liberdade e a responsabilidade de quem o diz, em relação àquilo que depois podem ser as consequências do que diz, essa é a do senhor deputado. Lembro que não há nenhum deputado que esteja no Parlamento que tenha sido convidado. Não há nenhum que não tenha tido a legitimidade do voto e um mandato dos portugueses que nele votaram. A minha legitimidade é exatamente igual à de qualquer outro dos senhores 229 deputados que estão na Assembleia. . Quanto menos filtro houver em relação àquilo que é a boa execução do mandato, no sentido daquilo que foram os compromissos eleitorais e que depois o povo português tem a obrigação de, no momento do voto, julgar, aí é que estamos a respeitar as regras da democracia. E ainda acrescento que o próprio Regimento da Assembleia não contém normas sancionatórias do ponto de vista de poder ter algum tipo de atuação diferente daquele que seja o de tentar pela via da palavra que haja urbanidade, sentido de respeito, moderação e que haja tudo aquilo que garanta que, entre deputados, pode ser exercida a dialética democrática normal que se espera de um Parlamento..O MP teria de estar sempre muito atento…Teria de estar atento como a qualquer outro lado. A intervenção no Parlamento é pública, não há órgão de soberania tão escrutinado como o Parlamento. Portanto, não há hipótese alguma de uma situação passar em branco se houver alguma prática que corresponda a um ilícito criminal. Se não houver ilícito, se não for qualificável, então estamos no campo do discurso político, das ideias. Qualquer um de nós pode considerar uma ideia abjeta. Pode considerar uma ideia absolutamente repugnável, não estar de acordo e desejar até combater. É isso que eu tenho de garantir: se isso acontecer, que haja a capacidade e condições para qualquer outro senhor deputado possa exercer o contraditório com a mesma igualdade de armas, com a mesma capacidade de intervenção e com o mesmo tempo garantido. Isso é que se espera da dialéctica democrática. Ideias combatem-se com ideias. Acho que isto é o que se espera do PAR. Tenho 68 anos, estou na Democracia desde que me conheço. Tenho um histórico suficiente e tenho também o rasto curricular para se saber que há muitas coisas que ali são ditas com as quais eu não concordo, nem estou conivente. Mas tenho de assegurar que esse debate se faça com liberdade.Não pondera então fazer nenhuma proposta de alteração de regimento? Há outros parlamentos europeus que sancionam muito deste tipo de intervenção.A proposta de alteração do regimento tem de partir dos grupos parlamentares. Quando foi a tomada de posse da minha primeira investidura [2024], referi que era útil que se fizesse uma revisão do Regimento, porque há muitas regras que estão hoje até desajustadas à fragmentação que o Parlamento tem. Mas esse impulso tem de partir dos grupos parlamentares. E mesmo aqueles que são mais vocais, às vezes, a fazer a crítica, não propuseram nada. Não se pode dizer que o presidente deve fazer qualquer coisa para os quais os próprios grupos parlamentares, embora vocais, não tenham apresentado nada. Até porque o regimento precisa ser aprovado na própria Assembleia. Tenho bem presente que há três coisas por parte dos deputados que não podem acontecer. Uma é desviarem-se dos temas da ordem do dia quando eles estão definidos. Por outro lado, também devem ser usadas as figuras regimentais para o fim a que se destinam, algo a que muitas vezes se assiste. Faz-se o uso da interpelação à mesa para tentar fazer intervenções. E depois que o debate se faça com urbanidade e que não tenha uma dimensão ofensiva ou injuriosa. Essa dimensão da urbanidade, essa sim, é que é o esforço também que o presidente tem de ter para que, entre deputados, haja respeito e tratamento adequado. Posso e devo adjetivar ideias, mas não devo fazer essa adjetivação em relação a um outro senhor deputado, porque essa situação da adjetivação pessoal já tem a ver com as características e com aquilo que tem a ver o tratamento de urbanidade que devo ter em relação ao outro.. Por isso é que fez aquele reparo ao comentário do secretário-geral do PS?É muito diferente eu fazer uma crítica em relação a uma determinada atitude ou ideia, ou adjetivar e qualificar a pessoa. Aliás, devo dizer que acho que o deputado Pedro Delgado Alves conhece tão bem ou melhor do que eu o regimento e sabe que assim é. Acho que a intervenção dele foi mais de caráter político do que propriamente da dimensão regimental, porque ele conhece bem o regimento. Como sabe, o PAR não faz debate político. Esse fi-lo em Viana do Castelo, quando fui candidato agora para as eleições. Mas aí se resume o combate político.Quando volta a casa e pensa em tudo o que aconteceu aqui durante o dia, pensa nos jovens que vêm muitas vezes visitar o Parlamento? Que imagem acha que deixa aqui?Volto a dizer: a Mesa não existe para estar ela a impor o que deve ser o que os próprios deputados têm de sentir. A responsabilidade pela dignidade do Parlamento é uma responsabilidade coletiva. É de todos os seus deputados. Não podemos achar que a democracia só é boa ou só nos serve quando está inclinada para o nosso lado. A democracia é a expressão correta da vontade popular. O que existe no Parlamento não é a causa, é a consequência. O que se passa no Parlamento é a representação do mandato expresso livremente pelo povo português. Às vezes, até me pasmo, como podem achar que isto não é a essência da democracia. Costumo dizer que a democracia dá muito trabalho e que é muito exigente. Isto obriga a maior participação. Quem for crítico do que se passa tem a obrigação de ser mais interveniente civicamente. Em democracia, só assim se mudam as coisas. No espaço público confrontar as ideias e tentar que as nossas ideias sejam as vencedoras para depois terem essa expressão no Parlamento. E assim estamos a cumprir a democracia e a democracia representativa. É isso que eu espero que aconteça, em vez de até estarmos agarrados às redes sociais, onde muitas vezes as mensagens são passadas de forma manipulada.Quando vemos o Parlamento sem filtro, estamos a ver da forma mais correta para eu fazer um juízo de valor. O Parlamento é muito mais que os incidentes. Muitas vezes são potenciados. Uma coisa que acontece em dois minutos muitas vezes passa e parece que é o alfa e o ómega do que se passa no Parlamento, o que não é verdade. Há muito trabalho no Parlamento, que tem uma dimensão para a resolução dos problemas dos portugueses, muito importante nas comissões, na fiscalização que se faz da atividade do Governo. Eu sei, porque é óbvio, que muitas vezes há essa dimensão do incidente parlamentar (que sempre existiu), porque seja à esquerda ou à direita, vai provocar um tempo de visibilidade. E parece que isso é a ação política. Essa não é a dimensão mais eficaz da ação política para resolver os problemas dos portugueses..Já falou no facto de este ser o Parlamento mais fragmentado. O Governo também não tem maioria e isso obriga a que haja diálogo. Que desafios é que isso traz para o PAR?Os desafios são maiores e mais importantes para o que impacta na qualidade do debate democrático. Ou seja, tenho de garantir ainda com mais eficácia o exercício do contraditório, que haja a possibilidade desse exercício ser feito com o maior sentido de urbanidade, que possa acontecer, é evidente, com posições mais emocionais, mais fragmentadas. A dimensão às vezes da tensão é mais forte e obriga a que o próprio presidente esteja mais atento para que tente, na medida do possível, que não haja desigualdade no que diz respeito a essa capacidade da dialética. É evidente que sou humano e, numa fracção de segundo, posso fazer uma avaliação mais ou menos conseguida. Não tenho a pretensão de ser eu sou o senhor da verdade absoluta. Mas isto corresponde a um sentido de equidistância, em que tenho a minha consciência muito tranquila e até estatística. É isso que me move. Se virmos o que se passa em Espanha, em França, no Reino Unido ou noutras geografias, os Parlamentos estão muito fragmentados. São objeto de debates políticos muito fortes. O que é que digo? Dentro desta geografia, temos o Parlamento a funcionar, a aprovar leis, a aprovar legislação que resolve os problemas dos portugueses. Umas vezes com geometrias de maioria diferentes, outras não. Na legislatura anterior tivemos vários diplomas que foram aprovados com o PS e com o Chega contra a vontade do que era a vontade da Aliança Democrática [AD]. Temos algumas legislações que são aprovadas com a geometria da AD e com o Chega, que não vão ao encontro daquilo que era a vontade do PS, por exemplo. Isto faz parte da normalidade democrática. E nós, nos nossos 50 anos de democracia já tivemos maiorias muito mais a direita ou à esquerda. O meu conselho é que não vale a pena ficar muito deprimido democraticamente quando temos representações mais frágeis, porque já houve isso no passado. Nem devemos ficar deslumbrados quando temos representações mais fortes. Os portugueses, sabiamente, têm demonstrado que sabem fazer essas maiorias conforme aquilo que sentem, que em cada momento vai mais ao encontro da resolução dos seus problemas.Quando tomou posse, na segunda legislatura, previu que seria uma das legislaturas mais “exigentes da nossa democracia”, mas expressou que “o consenso seria possível”. Com toda esta fragmentação, que consensos julga serem alcançáveis? E, já agora, se está confiante que o Orçamento do Estado vai ser aprovado?É desafiante, porque nem é só no quadro nacional. Vivemos momentos muito exigentes e desafiantes à escala europeia e mundial. Coisas que tínhamos como garantidos, como a paz, a liberdade de circulação, de expressão ou de imprensa em países que nunca imaginávamos que poderiam ser postos em causa e estão a ser postos em causa. Tenho a noção que a minha função é altamente importante em função do que diga, faça ou decida, porque impacta na qualidade da democracia. Isto é desafiante porque vivemos momentos onde esses dados que tínhamos como adquiridos não são tão adquiridos assim. Como costumo dizer, não se trata de salvar a democracia. Trata-se de construirmos, todos os dias, essa exigência de prática democrática que permita que a democracia continue a ser como acredito que é e desejo que seja o regime. E isto é desafiante porque nesta configuração não é só a dimensão do consenso, porque há uma paridade maior entre forças do que havia no passado. Diria, que até mais do que o consenso é exigível uma dimensão de dinâmica negocial muito mais forte, muito mais capaz e muito mais, aí sim, exigente à negociação que conduza à possibilidade do governo governar. Esse espaço de negociação tem de ser mais fluido, tem de estar mais garantido, porque os portugueses elegeram um Governo para quatro anos, elegeram uma Assembleia da República que desejam que tenha estabilidade. A negociação faz parte da ferramenta normal da democracia. Temos de ver isso com naturalidade e não achar que quando se está a negociar mais à direita ou mais à esquerda, ou quando se está numa determinada matéria a tentar uma convergência mais alargada, que isso seja uma coisa absurda. Não faz parte da normalidade democrática. Estávamos mais habituados a situações mais simples, estamos agora numa situação mais complicada do ponto de vista de método, mas que é normal em democracia. Em relação ao OE, ainda muita água vai correr.Acredita que, tal como o primeiro-ministro já afirmou, o Chega será mais responsável enquanto segundo partido com maior número de deputados?Enquanto presidente da Assembleia da República, não devo estar a fazer uma avaliação ou um juízo de valor concreto em relação ao partido A ou B. O que espero – e acho que isso é uma exigência que os portugueses, no ato eleitoral também manifestaram – é que todos tenham esse sentido de responsabilidade. Todos. Seja Chega, PS, Livre, IL ou AD, sabendo que nenhum sozinho consegue resolver os problemas que os portugueses desejam que seja resolvido, sabendo que o povo português quando votou, votou. A meu ver, acho que não é nenhum erro de interpretação com duas vontades claras. Uma é que haja estabilidade para levar, se se levar, um mandato a quatro anos. As pessoas estão fartas de serem chamadas a votar e que depois haja crises políticas..Mas também não há uma maioria absoluta como já houve.É verdade. Ao terem reafirmado este leque de representação, estão também a dizer que estão a eleger pessoas. Estou a eleger partidos aos quais também exigem o sentido de responsabilidade de todos. Nenhum está ao arrepio dessa responsabilidade. Saber interpretar corretamente é saber encontrar os pontos de convergência que permitam que, pela negociação e quando falamos em negociação nem todos ganham o que querem, nem todos perdem aquilo que não desejam perder. Mas ela tem de se ver com normalidade democrática. Às vezes custa-me compreender como é que as pessoas acham uma coisa quase anormal que esta dinâmica negocial aconteça em democracia. O Orçamento é o momento em que se vai votar muita coisa. Vai correr na negociação, na troca de, digamos, de situações que são impotentes para resolver os problemas dos portugueses. Quero acreditar que, no final, o total sentido de responsabilidade se irá impor para que a vontade de encontrar soluções para os problemas dos portugueses seja conseguida..A aproximação e a negociação que houve com o Chega foi relativamente a um tema que tem a ver com a imigração, em relação ao qual este partido costuma ter um discurso bastante estigmatizante, mas o Governo conseguiu negociar alterações à lei de estrangeiros [entretanto enviada para o Tribunal Constitucional]. Onde vê que possa haver também essa negociação e aproximação à esquerda?O senhor primeiro-ministro referiu que em relação a todas as matérias, não tinha, digamos assim, parceiros privilegiados. Acho que há um elemento importante: não considerarmos que há matérias que são coutadas de qualquer partido. À esquerda e à direita, havendo matérias que parece que só podem ser tratadas, faladas ou avaliadas em função de algum grupo ou alguma força política, isso em si também é um estigma que se cria e até, muitas vezes, inibitório. Todas as matérias da democracia são passíveis de serem discutidas, avaliadas e votadas. Isto faz parte da regra do nosso sentido de comunidade. Quando se vai tratar o tema da imigração, que é importante nas múltiplas valências que ele tem, muitas vezes foca-se só na questão da segurança, mas não tem a ver só com isso. Tem a ver com a dimensão humanitária. Tem a ver com aquilo que é o viver de uma forma inclusiva na nossa sociedade e chocam-nos muitas situações onde as pessoas vivem em situações degradantes e que vivem também como vítimas de situações de gangues ou máfias que controlando esses fluxos, acabam por ter consequências na qualidade de vida de cada uma dessas pessoas. O problema é multifacetado. Não se pode achar que é um tema que não pode ser objeto de conversação, de negociação e de tentar encontrar o que pode ir ao encontro de um sentido maioritário no Parlamento.. Portanto, não há nem uma aproximação nem um afastamento na forma como vejo a convergência em relação a um determinado número de situações que devem ser consideradas. Noutras matérias, seguramente, o Governo não tem uma porta fechada a tratar outros temas seja mais à esquerda ou com outras forças. Não vi até hoje haver uma afirmação dizer assim nós não abrimos negociações com outro que não seja A. Acho que isso nunca ouvi. E acho que não seria saudável, na medida em que, nesta geometria variável que temos, o ponto de partida que o Governo referiu, que é a necessidade de ter os os pontos de negociação e as convergências que permitam resolver os problemas das pessoas, independentemente da força política, é importante. E é isso que os portugueses esperam. Acho que foi esse o sentido da interpretação que quiseram que os partidos tivessem em função do voto eleitoral.Acha que podemos ter uma convergência ampla à esquerda e à direita, nomeadamente PS e Chega, na área da Defesa — que é uma área onde também teve experiência e que necessita agora de um amplo consenso?Espero que sim. Está a tocar numa área onde, por exemplo, eu acho que era muito importante que essa dimensão suprapartidária se exprimisse de forma conseguida. Essa é obviamente uma delas, até porque os tempos que estão para vir — e que já vivemos — são exigentes. Nisso vejo um grande sentido de convergência nacional. Mas, por exemplo, também reformas como a que estão em curso, e que precisam de ser mais diversificadas — e sei que a senhora ministra da Justiça também tem essa intenção —, têm a ver com a reforma da Justiça. É uma matéria que, não tendo uma carga ideológica muito forte, pode permitir que se encontre uma forma de reforçar a credibilidade e a celeridade da Justiça, que todos desejamos.Aliás, eu tinha lançado uma iniciativa no Parlamento com todos os operadores judiciários, com o Governo e com os grupos parlamentares, para um encontro de trabalho aqui na Assembleia, em março do ano passado. Só não aconteceu porque a Assembleia foi dissolvida, mas espero fazê-lo. Penso que em setembro ou outubro podemos voltar ao tema para organizar essa matéria. A mesma lógica aplica-se à reforma da Administração Pública, que é também uma matéria absolutamente crítica na relação entre o cidadão, o Estado e a administração. São temas com uma carga ideológica menor e onde seria positivo termos grandes consensos — para passarmos do exercício da vontade para a consequência.Permita-me recuar agora até 2010, ano em que se candidatou à presidência do partido contra Pedro Passos Coelho, que acabou por ganhar a liderança do PSD e depois se tornou…Depois fui ministro da Defesa dele.Exatamente. Como é que vê a evolução do próprio partido, mas também do sistema político desde essa altura? O período que se seguiu foi muito marcado pela crise da troika. Considera que os eleitores estão hoje reconciliados com o PSD?Se eu não estivesse aqui como Presidente da Assembleia da República, responder-lhe-ia em relação ao meu partido com uma avaliação política concreta. Mas nesta qualidade, relativamente ao meu partido ou a qualquer outro, não quero estar a fazer avaliações — seja das lideranças políticas, seja da atual liderança.Posso dizer o seguinte: acho que é importantíssimo, numa democracia representativa, que os partidos existam, tenham credibilidade, capacidade de recrutar quadros, e que as pessoas se sintam motivadas para a participação política. Não existe democracia sem participação. Não existe democracia sem partidos políticos. Podemos chamar-lhes partidos, associações ou movimentos — mas a dimensão grupal é essencial na democracia liberal representativa.É também uma forma de contrariar os populismos e o caudilhismo, que estão mais associados à lógica da democracia direta — como hoje acontece muito nas redes sociais — e que traz riscos para a qualidade democrática.Claro que para que isso funcione, há muitas condições que devem ser melhoradas. É preciso rever o regime das incompatibilidades, o estatuto remuneratório, criar mais motivação e exigência para que as pessoas aceitem cargos de responsabilidade política. Não podemos fechar os olhos e apenas criticar uma alegada degradação dos atores políticos, como se fosse fruto do acaso. Não é. É fruto de regimes excessivamente restritivos, que impedem muitas pessoas de se dedicarem à causa pública.Sou favorável ao máximo de transparência, ao registo de interesses, à penalização sempre que haja violação desses princípios. Mas também sou favorável a que haja menos incompatibilidades, que permitam a participação de pessoas da sociedade civil. E temos de ter cuidado com a forma como se pratica a transparência — não podemos confundi-la com voyeurismo. Essa é uma linha ténue que deve estar presente: devemos praticar transparência máxima, mas sem que isso iniba a disponibilidade das pessoas para estarem ao serviço da causa pública. O estatuto remuneratório também tem de ser repensado nesse quadro..Tem usado um mote de que “a democracia dá trabalho”. Que desafios identifica então para a democracia, além desses que já referiu?A participação. Acho que temos que criar condições, devemos criar condições para que haja uma maior capacidade de disponibilidade das pessoas para a causa pública e, portanto, para a intervenção cívica em democracia. Nós só conseguimos fazer qualquer coisa, mudar qualquer coisa, aplicar as nossas ideias, participar, se estivermos intervenientes e tivermos condições para isso. Não é pelas armas, não é por ter mais ou menos carros de combate. É pela participação.E essa, diria, essa prioridade da participação tem de ter aqui um binómio: que as pessoas sintam que isto está em risco em muitas coisas, e que é da participação delas que se pode fazer diferente. Costumo dizer que a pior expressão que há em português é “é preciso”. “É preciso”, “é preciso” — e nós rapidamente encontramos um diagnóstico do que é preciso. E depois: quem é que faz o que é preciso? Quem é que está disponível para intervir?Temos vários fóruns — o Parlamento, outras dimensões de intervenção — e, quando queremos criar condições que sejam motivadoras para a pessoa estar disponível, temos as incompatibilidades de tal maneira que ou uma pessoa não lhe faz diferença nenhuma na vida, ou então tem fortuna.E isso aplica-se, por exemplo, ao caso Spinumviva que levou à queda do anterior Governo?A observação que eu estava a fazer não tem nada a ver com o caso Spinumviva. Não estava sequer a pensar nisso. Isso tem o seu curso normal, tem os seus espaços de análise e tem os seus momentos de conclusões.Estava referir-me à primeira pergunta que colocou: o que é que são os desafios que se colocam a um regime democrático onde toda a gente diz que é preciso intervir mais, é preciso que as pessoas estejam mais disponíveis, é preciso que haja mais participação? E depois há aquela expressão jurídica: quid iuris? O que é que se faz para isso?Isso, a meu ponto de vista, tem a ver com as incompatibilidades, com a remuneração, com a criação de condições — do ponto de vista do exercício da transparência — que façam com que todas estas ligações das coisas, esta forma articulada, seja mais mobilizadora. Porque neste momento, ou uma pessoa tem fortuna e pode ter o luxo, numa determinada área, de estar disponível — o que, em si, é uma discriminação democrática — ou então já está num patamar de discriminação em relação a quem tem. E isso leva-nos para os regimes feudais, em que os grandes senhores é que podiam dedicar-se à política porque tinham condições para isso.Não. Nós temos que criar condições para que um cidadão médio que tenha vontade, que tenha competência, que tenha qualidade e que tenha desejo, possa intervir na ação política. Até numa lógica de missão temporária.Hoje, se nós não queremos — e eu acho que bem — que, por exemplo, o Parlamento seja uma profissão, que seja uma carreira, as pessoas vão exercer um mandato, cumprir um exercício cívico. A pessoa pode abdicar da sua vida quatro ou oito anos, mas tem que ter condições para, depois desses quatro ou oito anos, poder retomar e não ter um grande choque do ponto de vista das suas condições de vida. Porque isso é limitador para o recrutamento..Sabemos que tem em andamento iniciativas de aproximação do Parlamento aos cidadãos. Pode adiantar também alguns projetos que tenha previstos?Fico satisfeito — e penso não andar muito longe da verdade — por, já neste meu mandato, mais de mil escolas terem visitado o Parlamento. Isso vai ao encontro de um objetivo que eu tinha: que este seja um espaço com grande frequência, onde as pessoas sintam essa dimensão de pertença. Que este é o espaço delas. Quando se fala da casa da democracia, de todos nós, é importante que haja uma maior proximidade entre o cidadão e a sua casa da democracia.Foi simbólico, mas quando mandei tirar as grades à volta do Parlamento foi também para dar esse impacto — para que as pessoas não sintam uma fronteira ao quererem estar cá. E tenho desenvolvido um projeto que se chama “Parlamento de Proximidade” ou “Parlamento Próximo”, que visa, para além da atividade dos deputados nas suas circunscrições eleitorais, permitir que o Parlamento, como instituição, se dê a conhecer melhor nas diversas regiões do país.Eu próprio, enquanto Presidente da Assembleia — embora acompanhado pelos deputados de cada uma das regiões — tenho tido essa iniciativa, que se desenvolverá ao longo de todo o mandato. Já fomos, salvo erro, a cinco distritos, onde reunimos — enquanto dimensão mais institucional — com as forças vivas da região, com a academia. Tenho tido encontros com estudantes das diversas universidades, com uma presença que devo dizer que é muito motivadora.Ao contrário do que muitas vezes se diz — que os jovens não estão disponíveis ou não participam —, tenho estado em reuniões em Évora, no Algarve, nos Açores, em Vila Real, com mais de 100, 150, 200 jovens das respetivas academias e politécnicos, que questionam com interesse. E isso contribui muito para perceberem melhor o funcionamento das regras do próprio plenário, que muitas vezes, como dizem, não entendem. E, com a explicação que dou, acabam por conhecer melhor e aprender melhor.E até esse sentido do que é a casa da democracia. Se nós — e bem — dizemos que a casa da democracia é o espaço maior onde ela se exerce, eu diria que é nesse espaço que a liberdade de expressão se pode exprimir de forma mais conseguida. Se eu posso dizer algo num espaço público, tenho que poder dizê-lo no Parlamento. Porque é a casa da democracia. É o lugar onde se espera que o diga, onde sou sujeito ao contraditório.E isto é uma mensagem que tenho sentido que tem sido muito bem apreendida e que ajuda à tal proximidade entre o eleitor e o eleito. Assim como ao juízo de julgamento que compete a cada um. Porque cada um vê, analisa, tem essa responsabilidade. A democracia é isto — é o “win-win” dos eleitores e dos eleitos. Os eleitores têm a responsabilidade de exercer esse julgamento sobre o discurso político, de estarem mais atentos e mais interventivos. E isto é o que pretendo com estas iniciativas.Também os municípios, ao virem ao Parlamento — temos consagrado o Dia do Município — permitem que, com esse movimento de gente, as pessoas que vêm sintam esse sentido de pertença a este espaço que é delas. Como disse o Rui Veloso no concerto que deu aqui: “Isto é tão bonito.” Estava a dar o concerto e disse: “Estamos na vossa casa.” Era dirigido ao público que assistia. “Não há lugar melhor para fazer este concerto do que na casa de todos. Esta é a vossa casa.” Eu acho que isso exprime aquilo que eu queria..Para terminarmos: que apelo faz aos deputados para que consigam ver além das diferenças e trabalhem em defesa do interesse nacional?Quero acreditar que todos fazem o seu melhor para, na visão que cada um tem, estarem a priorizar o interesse nacional. Portanto, não quero cometer a injustiça de achar que cada deputado — desde a deputada Mariana Mortágua até qualquer um dos deputados do grupo parlamentar mais à direita do Chega —, quando está a exercer a sua função, não esteja a pensar no país.Acho que esse é o mandato que cada um recebe e que exerce da forma que considera mais convergente com a legitimidade que recebeu — e depois, periodicamente, será julgado por isso. Da esquerda à direita, essa dimensão está sempre presente.O que posso dizer é que os tais incidentes parlamentares, que muitas vezes acabam por ficar na primeira visibilidade, criam uma imagem que, não sendo, é impossível evitá-los, porque fazem parte da história do Parlamento. Se olharmos para a história do Parlamento, há inúmeras situações em que esses incidentes aconteceram. Não é uma originalidade deste momento.Mas tudo o que pudermos fazer para que isso não seja o principal da ação política, para que isso seja o mais residual possível, e para que possamos discutir aquilo que realmente importa — para resolver os problemas das pessoas —, devemos fazê-lo.Porque todos nós, nas microsondagens que fazemos, percebemos que essas situações são muitas vezes muito efémeras. Têm aquele momento, impactam imediatamente, mas depois passam — porque não é isso que conduz ao que os portugueses esperam: a resolução dos seus problemas.Esse esforço de negociação, esse esforço de procurar — pela via da negociação — que haja legislação naquilo que é preciso haver para resolver os problemas das pessoas: é isso que eu gostava de deixar como mensagem. .Iniciativa Liberal defende Aguiar-Branco.Rui Tavares acusa Aguiar-Branco de ter "medo do Chega". "Não tem condições"