Violação passar a crime público divide socialistas
"Desconforto" entre deputados e governo após proposta "intransigente" e declarações "pessoais" da ministra da Justiça. No DN, a história de Helena Santos Carvalho que foi violada e que há seis anos luta por justiça.
"O meu sonho, depois de tratar disto [do processo judicial], é não acordar. Elas [as duas filhas] estão melhor sem mim. Elas têm o melhor pai do mundo. Eu não estou cá a fazer rigorosamente nada. Só dou trabalho. Não sou alegre, não sou feliz. Quero Justiça. Não posso morrer antes. Estou a manter-me viva com esse propósito".
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[Um silêncio, uma respiração profunda].
"Elas ficam tão bem sem mim. Já não tenho muito mais força, muito mais para dar nesta vida. Estou exausta. Já chega".

© Rita Chantre / Global Imagens
As palavras secas, firmes, sem qualquer hesitação são de Helena Santos Carvalho, 48 anos, que foi violada, em julho de 2017, por "um médico conceituado" recentemente condenado a cinco anos de prisão efetiva - o caso está agora no Tribunal da Relação.
"Quero tornar pública a minha história. Perdi tudo, perdi o medo." Helena, prefere que a trate assim, está determinada. A voz solta, desembaraçada, só em alguns momentos, raros, perde vigor.
"Era uma pessoa saudável, capaz, com uma excelente carreira profissional, nadadora de competição quando era miúda, uma vida ativa, casei-me cedo aos 20, tive as filhas cedo e perdi tudo. Tenho 79% de incapacidade definitiva. Vivo à base de medicamentos, em psiquiatras, saio para os médicos, os hospitais e venho logo para casa."
A descrição é feita sem pausas. Na frase seguinte, as palavras saem cadenciadas, quase sem respirar: "Fui a primeira a denunciar, sozinha, completamente sozinha, maltratada, descredibilizada, humilhada, apedrejada, quase que me mataram, tudo o que se possa imaginar."
Helena Santos Carvalho demorou - é a expressão que utiliza - "dois meses a denunciar, sem contar a ninguém. Eu não queria acreditar no que aconteceu, tinha a ideia de que "isto não vai dar em nada, vou destruir a minha vida, vou destruir o meu casamento"".
Primeiro contou a uma amiga, depois ao seu Ginecologista "que meteu as mãos à cabeça e disse: "A Helena tem de denunciar"". Depois aos pais, depois ao marido, depois foi à PJ.
"Ficou chocado. O Nuno [marido de Helena]ficou chocado. Percebeu porque naquelas férias eu pegava no carro e desaparecia. Percebeu porque estava apática, ausente, porque não me podia tocar. Era impossível, não conseguia", diz de voz firme.
"Tinha duas opções: ou fazer alguma coisa ou tentar esquecer. E por tudo o que estava em causa, tentei esquecer. A minha preocupação foi focar-me na Helena e que tivesse o acompanhamento que devia ter. Confesso-lhe, a minha sorte, foi não terem sido as minhas filhas". Teria ido à procura do médico? "Não tenha dúvidas".

© Rita Chantre / Global Imagens
O que Nuno ouviu foi a descrição do que se passou em julho de 2017 no gabinete do "médico conceituado", na segunda consulta. Helena não suspeitava de nada. O médico de 70 anos até era conhecido do seu pai. Quando o clínico de Medicina Interna lhe explicou os exames - "estudo linfático, estudo disto e daquilo... e estudo ginecológico" -, apenas achou estranho o "estudo ginecológico", mas o médico, relata, logo tratou de a tranquilizar dizendo que "tinha idade para ser meu pai". E até falou no "sigilo entre médico e paciente e entre paciente e médico".
"Pediu para me despir, para me auscultar. Foi ver as pernas, fazer a palpação, eu tinha as pernas inchadas, e depois tirou-me as cuecas. Aquela mão entrou dentro de mim, foi doloroso, violou-me com a mão. Entrar e sair... um vaivém, entrar e sair, não parava. Peguei na mão dele, tirei-a... e saí desvairada. Fui à casa de de banho, vomitei. Saí apavorada. Meti-me no carro. Fiquei parada. Só chorava. Aquilo aconteceu e eu não tive reação. Sou muito reativa e não tive reação. Só pensava :"Isto não me aconteceu, isto não me aconteceu"."
O relato da violação é feito num tom de voz calmo. Só a breves espaços a respiração fica mais acelerada. Helena Santos Carvalho ganhou em tribunal, na primeira instância, mas não esquece a "entidade" [prefere por agora esta designação] que a apelidou de "mentirosa, ardilosa, provocadora, com absoluta falta de pudor".
O caso chegou a tribunal cinco anos e meio depois da violação. "Foram muitas audiências porque entretanto descobriram-se mais casos, alguns com 10, 12 anos, o de outra mulher juntou-se ao meu. Falta o desfecho da Relação, não mais de um ano, disseram-me".

© Rita Chantre / Global Imagens
A vida do casal ficou suspensa, tudo mudou. Nuno sente esse "afastamento" que é "natural, a Helena ficou retraída em tudo. Estou aqui para cuidar dela, para o que for preciso".
Helena fala dos "flashes, dos muitos flashes, ao mínimo toque tenho muitos flashes: o olhar do violador, o arfar, a cara encarnada. E eu não consigo, não consigo". E regressa à ideia inicial: "Não sei o que ando cá a fazer. Não tenho muita vontade de andar por cá. É só fechar os meus capítulos".
O crime de violação deveria ser crime público? "Absolutamente, não tenho dúvida nenhuma".
Socialistas divididos
A certeza de Helena Santos Carvalho, e dos 106 991 portugueses que pedem a mudança da lei, divide os socialistas do grupo parlamentar e no governo, apurou o DN.
Cláudia Santos, deputada socialista, diz que não se pode "instrumentalizar a vítima, obrigando-a a ir a um processo penal, a perícias médico-legais, se ela não o desejar. Não pode haver um crime em que a vontade da vítima não interesse nada".
A garantia da deputada de que "não é um projeto seu, mas do grupo parlamentar", e portanto unânime, tem a oposição de vários deputados e até, de forma menos visível publicamente, de alguns membros do governo.
Berta Nunes, deputada do PS, fala numa incongruência legislativa que precisa de ser sanada: "O que se passa é que na grande maioria dos casos a violação já é crime público quando, por exemplo, acontece dentro do contexto de violência doméstica; é crime público quando a pessoa está institucionalizada; é crime público para menores. Não vejo nenhum sentido que se uma jovem de 16 anos for violada o crime é público, mas que se tiver 18 anos já não é, porque se quer proteger a autodeterminação da vítima".
"Há pessoas no meu grupo parlamentar que partilham da minha visão, que é preciso avançar e proteger mais estas vítimas e conseguir punir os agressores". E a votação amanhã? "É uma situação que não está definida. Está a haver uma reflexão. No meu caso e no de outros deputados nós temos esta opinião".
Miguel Costa Matos, deputado e líder da JS, que há "muitos anos" defende que a violação seja "crime público com as devidas garantias de proteger a vítima", e que releva a importância da petição, não tem dúvidas: "Votarei de acordo com a minha consciência."
Elza Pais, líder das mulheres socialistas, considera "um absurdo pensar que não punindo os agressores estamos a proteger melhor as vítimas. E não podemos esquecer que, apesar de o crime, poder ter natureza pública os processos podem não ser públicos. Tal não significa que a privacidade e intimidade da vitima não sejam devidamente acauteladas no decurso do processo penal".
E há um "desconforto" no governo depois de a ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, ter dado publicamente "opinião pessoal" dizendo que "apesar de poder haver alterações de aprimoramento na parte legislativa, [o crime de violação de adultos] deve depender de queixa".
"Foi como se o governo no seu todo fosse contra, quando não é verdade. Teria sido melhor evitar fazer declarações", diz ao DN fonte socialista.
Outra fonte, relata o "desconforto" da ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, que também tem tutela nesta área, e não terá sido ouvida nesta matéria, ao contrário de Catarina Sarmento e Castro, por "haver uma posição estabelecida, de força, de ser contra o crime público".
"Há um claro e crescente apoio no grupo parlamentar de vários deputados para que a mudança aconteça. O PS já evoluiu na IVG, no casamento entre pessoas do mesmo sexo, por que razão não há de evoluir numa matéria tão importante?", diz a mesma fonte.
Há, no entanto, a expectativa de que, na especialidade, após a votação de sexta-feira, não se ignore a petição com 107 mil pessoas e que depois seja aberto um amplo debate público sobre a matéria.
O "inadmissível"
Dulce Rocha, procuradora, presidente do Instituto de Apoio à Criança, questiona a incongruência do sistema jurídico atual defendendo que a lei tem "mesmo" que mudar.
E a explicação, parte dela, reside nestas duas questões: "Se a violação for no matrimónio, é crime público, se não for, já não é? Isto é inadmissível. Uma mulher que chegue ao hospital, toda rasgada, amassada, e disser que foi violada, os médicos ficam impedidos de recolher prova? Não podem fazer nada? É uma coisa absolutamente anacrónica".
Outro anacronismo, explica a antiga procuradora é o facto de, dos países do Conselho da Europa, "só nós, Portugal, e San Marino é que continuamos com essa velha ideia, ancestral, discriminatória e patriarcal de exigir queixa da mulher. Os franceses e os espanhóis mudaram recentemente".
Teresa Pizarro Beleza, professora catedrática de direito, doutorada em estudos de género, e que afirma que "já é altura de as pessoas se mentalizarem de que a vergonha deve ficar do lado do agressor e não da vítima", contraria a tese de que a atual legislação já permite a intervenção do MP sem queixa da vítima [referência ao pressuposto no n.º 2 do artigo 178.º do Código Penal] "sempre que o interesse da vítima o aconselhe".
"É uma solução de compromisso infeliz - porque o que está em causa não é apenas o interesse da vítima (se fosse, então o Direito Penal não deveria intervir). Mas também e sobretudo porque não explica o paradoxo de o crime de violação ser público se a vítima for criança ("menor", na linguagem legal) ou se envolver um caso de violência doméstica", afirma.
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