Viagem presidencial ao Qatar, a mais divisiva deslocação de Marcelo

Deputados deram assentimento à presença do Presidente da República na estreia da seleção no Mundial, mas com uns raros 19 votos contra. Há dois meses deslocações a Angola também já tinham provocado divisões.
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O Parlamento aprovou esta terça-feira a visita de Marcelo Rebelo de Sousa ao Qatar, para assistir ao jogo inaugural da seleção portuguesa no campeonato do mundo, mas com uns raros 19 votos contra, que se estenderam da Iniciativa Liberal ao BE, passando por quatro deputados da bancada socialista, e pelos parlamentares do Livre e PAN. Pela abrangência, é o voto mais divisivo do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, muito embora uma anterior deslocação a Angola já tenha valido ao chefe de Estado 21 votos contra, então concentrados nas bancadas da IL e do Chega.

Conhecida a votação, Marcelo reagiu afirmando que Portugal mantém "relações diplomáticas com a maioria dos Estados do mundo ", sendo que boa parte "não é democrática". E voltou a garantir que não esquecerá a questão dos Direitos Humanos: "Depois de amanhã [quinta-feira] estarei a falar de Direitos Humanos no Qatar". Sobre a votação na Assembleia da República, Marcelo admitiu que "houve uma ponderação política". "Já em anteriores votações tinha havido. Já me tinha deslocado a países vários com votos contra, por haver a ideia, daqueles que votavam contra minoritariamente, de que não sendo democracias, não fazia sentido lá ir ou que qualquer contacto seria uma legitimação" sustentou Marcelo, sublinhando que "não é essa a orientação da política externa portuguesa". "Ainda agora foi marcada a COP [Conferência do Clima das Nações Unidas] do ano que vem para os Emirados Árabes Unidos. Realizou-se este ano no Egito. Têm regimes muito diferentes dos nossos e tem acontecido isso, sistematicamente, nas reuniões internacionais", disse Marcelo, defendendo que se trata "da única maneira de democracias poderem falar com não democracias sobre problemas do mundo". Na passada semana o Presidente da República tinha afirmado que "o Qatar não respeita os direitos humanos", mas pediu que o foco se concentrasse na seleção: "Enfim, esqueçamos isto. É criticável, mas concentremo-nos na equipa". Uma declaração que foi recebida com críticas.

A obrigatoriedade de autorização da Assembleia da República às deslocações do chefe de Estado ao estrangeiro está inscrita na Constituição. E com uma sanção pesadíssima em caso de incumprimento - nada menos que a perda de mandato presidencial. Esta autorização é, habitualmente, uma formalidade institucional: a esmagadora maioria das viagens são aprovadas por unanimidade e nunca, na história da democracia, uma deslocação do Presidente da República foi travada pelos deputados. Nem nunca ficou, sequer, perto disso.

Mas, ainda assim, esta não é a primeira viagem divisiva do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa. Basta recuar até setembro para encontrar duas deslocações presidenciais que não obtiveram o pleno das aprovações na Assembleia da República - ambas a Angola. Votada já depois do regresso do Presidente da República, a presença de Marcelo no funeral de Estado do antigo presidente angolano José Eduardo dos Santos teve os votos contra da IL e do BE e a abstenção do PAN. Também a presença do chefe de Estado português na tomada de posse do presidente angolano reeleito, João Lourenço - cerca de duas semanas depois da anterior deslocação a Luanda - não obteve a unanimidade dos deputados. Neste caso, a viagem teve os votos desfavoráveis da Iniciativa Liberal e do Chega (21 votos contra), e a abstenção do BE e do PAN.

Votações que se explicarão mais pelo evento concreto que motiva a deslocação, como ressalta do facto de outras viagens a Angola terem merecido o consenso do hemiciclo: Marcelo esteve em Angola em julho de 2021 para participar na XIII Conferência de Chefes de Estado e de Governo da CPLP, uma viagem aprovada por unanimidade; em novembro do mesmo ano, outra deslocação a Luanda, então para participar na Bienal de Luanda "Fórum Pan-Africano para a Cultura de Paz", obteve igualmente total concordância.

Os próprios exemplos esta terça-feira apontados por Marcelo Rebelo de Sousa constam da lista de deslocações aprovadas na Assembleia da República. O atual Presidente da República já esteve no Egito, numa viagem que recebeu parecer favorável de todas as bancadas. No caso dos Emirados Árabes Unidos é preciso recuar até 2014, quando Cavaco Silva se deslocou ao país em visita oficial, também com o beneplácito de todo o hemiciclo.

Numa declaração de voto, no Parlamento, Rodrigo Saraiva, líder parlamentar da IL, defendeu que "este campeonato do mundo está a ser usado pelo regime do Qatar como uma ferramenta de geopolítica para ter uma validação internacional de uma credibilidade que não tem". Já o bloquista José Soeiro sustentou que "nenhum órgão de soberania" deveria estar presente neste mundial, legitimando um regime que comete "violações reiteradas e chocantes dos direitos humanos".

Em sentido contrário, o líder parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias, sustentou que "o Parlamento não se constitui para caucionar as opções políticas de viagens e de relações internacionais do Presidente da República". Na bancada do PS votaram contra a deslocação os deputados Pedro Delgado Alves, Isabel Moreira, Alexandra Leitão e Carla Miranda. No PSD abstiveram-se os deputados Hugo Carneiro, António Topa Gomes e Fátima Ramos. O mesmo fizeram os socialistas Maria João Castro, Miguel Rodrigues e Eduardo Alves.

Além de Marcelo Rebelo de Sousa, também o presidente da Assembleia da República e o primeiro-ministro vão marcar presença no Qatar.

susete.francisco@dn.pt

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