Francisco Sá Carneiro apresentou o PPD como um “grande partido do centro”.
Francisco Sá Carneiro apresentou o PPD como um “grande partido do centro”.Arquivo DN

Ventura quer ser herdeiro de Sá Carneiro, mas quase tudo o separa do fundador do PSD

Da visão de uma economia de mercado regulada pelo Estado à ideia de solidariedade entre classes, passando pela rejeição da demagogia e pelo ataque ao presidencialismo - Francisco Sá Carneiro está muito longe do pensamento de André Ventura.
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“O socialismo democrático que defendemos é garantia de que será o Povo a construir a sociedade em que quererá viver, pondo ele próprio em prática os grandes ideais do Socialismo e da Democracia: Liberdade, Igualdade e Solidariedade”. A frase é retirada do discurso de encerramento do I Congresso Nacional do PPD feito por Francisco Sá Carneiro em novembro de 1974. Basta lê-la para perceber que este enunciado de “socialismo democrático”, que visava assim demarcar-se dos socialismos de PCP e PS, seria difícil de proferir por André Ventura. Mas  foi a Sá Carneiro que Ventura tentou colar a sua imagem, numa Convenção Nacional do Chega em que o fundador do PPD-PSD foi o político mais citado.

“A política sem risco é uma chatice, sem ética é uma vergonha”, foi uma das frases de Sá Carneiro citada por mais que uma vez na Convenção do Chega, que acabou com André Ventura a garantir estar “tão pronto hoje como (...) Sá Carneiro se sentia para ser primeiro-ministro em 1979”. Nesse discurso de encerramento, Ventura recorreu ainda a outra citação do histórico social-democrata para se apresentar como alguém que combate as injustiças. “O que não posso, porque não tenho esse direito, é calar-me, seja sob que pretexto for para lutar contra a injustiça”, declarou, parafraseando Sá Carneiro.

André Ventura citou Sá Carneiro duas vezes no discurso final da Convenção do Chega.
Rui Manuel Fonseca/Global Imagens

Cortar subsídios ou dar mais?

Não é, contudo, difícil encontrar várias frases do fundador do PPD-PSD que muito dificilmente André Ventura incluiria nos seus discursos. O Chega tem feito do combate àquilo a que chama a “subsidiodependência” um dos centros do seu discurso político, anunciando a ideia de cortar em apoios sociais. Num comício na Póvoa de Varzim, em janeiro de 2022, o líder do Chega garantia que, se for Governo, irá acabar com os subsídios “a quem não que trabalhar”. Francisco Sá Carneiro defendia, em janeiro de 1980, no discurso de apresentação do Programa do VI Governo Constitucional na Assembleia da República, que “ao cidadão, o Estado deve dar mais em troca do que lhe pede ou pedir menos do que aquilo que está em condições de reciprocamente lhe dar”. 

Um raciocínio que, como nota ao DN a presidente do Instituto Francisco Sá Carneiro, Maria da Graça Carvalho, vinha na linha de uma “social-democracia próxima da dos nórdicos” que era a defendida por Sá Carneiro. “Ventura não tem nada que ver com Sá Carneiro que  com uma economia de mercado defendia um Estado Social forte”, vinca a social-democrata. De resto, o pensamento sá-carneirista assentava muito sobre a doutrina social da Igreja e numa ideia de solidariedade entre classes, defendendo que “a classe média pode e deve ser uma classe aberta ao progresso das classes mais desfavorecidas e deve ser o espelho de um projeto reformista e progressivo”.

Direita ou centro?

O social-democrata Pacheco Pereira tem várias vezes regressado aos textos fundadores do PPD e da AD para demonstrar que o pensamento sá-carneirista está muito mais próximo de um centro-esquerda do que da visão liberal mais dominante no Chega ou em alas do PSD de hoje. Num texto no seu blogue Abrupto, recupera as “Linhas para um Programa” de 6 de maio de 1974, um texto assinado por Sá Carneiro, Magalhães Mota e Francisco Pinto Balsemão, para o ilustrar. Uma das partes que cita defende o “predomínio do interesse público sobre os interesses privados, assegurando o controlo da vida económica pelo poder político”  e que “a liberdade de trabalho e de empresa e a propriedade privada serão sempre garantidas até onde constituírem instrumento da realização pessoal dos cidadãos e do desenvolvimento cultural e económico da sociedade”. Noções que hoje parecem muito mais à esquerda do que  onde se situam não só o Chega, mas também o PSD e o CDS, que agora recuperam a sigla AD.

“Consideração do trabalhador como sujeito e não como objeto de qualquer atividade. O homem português terá de libertar-se e ser libertado da condição de objeto em que tem vivido, para assumir a sua posição própria de sujeito autónomo e responsável por todo o processo social, cultural e económico”, é uma frase considerada por Pacheco Pereira como “uma das chaves para perceber o pensamento de Sá Carneiro e dos fundadores [do PSD].” O historiador nota que esta ideia “não vem do marxismo, nem do socialismo, nem do esquerdismo, vem da doutrina social da Igreja tal como se materializava no pensamento da social-democracia que se queria instituir”.

De resto, num testemunho para o livro 40 anos, 40 testemunhos sobre Sá Carneiro, Rui Rio lembrava o rumo definido pelo fundador do PSD para o partido: “seria um partido de centro, mais exatamente, de centro esquerda”. Nesse mesmo livro, Marcelo Rebelo de Sousa recorda que quando Sá Carneiro apresentou em 1974 o PPD a António Spínola lhe disse que este “seria o ‘grande partido do centro’, quando a maioria o via mais como um partido liberal de espaço muito questionável”.

Já André Ventura não hesita em prometer. Na Convenção do Chega, fez promessas aos pensionistas (a quem garantiu um aumento das pensões mínimas para o salário mínimo nacional em seis anos), aos professores (com a reposição do tempo de serviço congelado) e aos polícias da PSP e GNR (com a equiparação salarial à PJ).

Promessas ou contenção?

Conceição Monteiro, secretária pessoal de Francisco Sá Carneiro frisa ao DN a forma como o líder da AD fez em 1979 uma campanha muito contida em termos de promessas. “Nunca prometeria nada que soubesse que não conseguiria dar”, diz. O próprio, numa entrevista ao jornal A Tarde, fazia questão de se afastar de discursos demagógicos. “A nossa campanha é de esclarecimento, de verdade e serenidade, centrando-se sobretudo nos problemas concretos, mais do que, num discurso teórico. É uma campanha sem qualquer demagogia”.

Idolatrado pelos militantes do Chega, André Ventura é muitas vezes apresentado como um líder excecional e o seu rosto está em inúmeras representações nas sedes do partido e até numa das bandeiras usadas nos seus eventos partidários. Essa visão pessoalizada da política era rejeitada por Sá Carneiro. “O que é preciso é que se acabe com os mitos, e que, em lugar de termos políticos vanguardistas que defendem grandes slogans e grandes ideologias, tenhamos vontade de aprender com os portugueses o seu dia-a-dia, os seus problemas concretos e com eles, com a participação de todos, ir encontrando soluções”, disse no discurso de encerramento do Encontro das Autarquias Locais da Área Metropolitana de Lisboa, em 1979.

“Para Francisco Sá Carneiro, o ‘eu’ nunca foi importante. Basta recordar o que disse num célebre discurso no Vimieiro, em 1976: ‘O Partido não é uma pessoa, não é um grupo, não é a sede nacional.’ Não obstante, a personalidade que foi Francisco Sá Carneiro merece ser protegida de todas as tentativas de apropriação, em benefício de agendas pessoais, que ponham em causa a sua verdadeira essência e valores e possam conduzir a interpretações equívocas e manipulações da história”, lê-se num comunicado emitido pelo Instituto Sá Carneiro em reação à Convenção do Chega.

Presidencialismo? Sim ou não?

Em abril de 2021, André Ventura apresentou 17 propostas de alteração à Constituição. Numa delas, propunha que “a chefia do Governo passará a caber ao Presidente da República, com um Governo mais reduzido e em que as funções executivas são simultaneamente de chefia do Estado”. Nada mais diferente do que pensava Francisco Sá Carneiro. “Sou estruturalmente antipresidencialista e sempre entendi que, em Democracia, a política deve ter no Parlamento a sua razão e o seu objetivo”, afirmou numa entrevista ao jornal Tempo em 1979.

Mas o que procura Ventura com esta colagem? “Percebo o intuito. Ventura quer ter uma relevância crescente à direita e despir-se da sua génese de extrema-direita e não é possível falar da direita democrática em Portugal sem falar de Sá Carneiro, mas não há comparação possível. Há uma usurpação”, diz ao DN Guilherme Silva, membro da direção do Instituto Sá Carneiro.

Já em 1990  Vasco Pulido Valente, que foi secretário de Estado adjunto e da Cultura no Governo da AD, escrevia que o fundador do PSD “viveu (e vive) muito mais na imaginação do que na realidade”. E talvez isso ajude a perceber as tentativas de apropriação e até mesmo uma certa reescrita das suas posições políticas. Ainda assim, Maria da Graça Carvalho acha que “não cola” a tentativa de Ventura se apresentar como herdeiro político de Sá Carneiro.

E Conceição Monteiro diz-se mesmo “enojada” ao ouvir Ventura. “Ao ofender seres humanos como tem feito, Ventura não tem direito de falar de Sá Carneiro”, diz ao DN a militante número dois do PSD, que destaca o espírito humanista de Francisco Sá Carneiro. “Tinha um respeito enorme por cada pessoa, por cada português”, vinca, repudiando a forma como André Ventura “hostiliza, ofende, magoa pessoas que estão cá, que vieram para cá para trabalhar e ajudar”.

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