"Uma reportagem sobre nós?"
Quando o Pedro nasceu, o Zeca estava a cumprir serviço militar nos "obuses" no RALIS e haveria de entrar, cinco anos mais tarde, depois dos tempos de segurança no partido, para o lugar que ocupou até 2017; a Paula que às escondidas, à noite, fumava uns cigarros à janela com a irmã - foi assim que ouviu as duas senhas do 25 de Abril - era aluna do Liceu Nacional de Queluz e estava a nove anos de entrar na "casa da democracia"; o António, que entraria no Parlamento no ano da legalização das rádios piratas e que tanto tinha lutado por uma lei, tinha acabado de abandonar o seminário no Porto - a Ordem dos Frades Menores Capuchinhos - e era escriturário na Câmara de Lisboa.
A Paula, que saiu em janeiro do ano passado, e o Zeca, que morreu em 2019, estiveram 40 anos como assessores. O António ficou por 21 anos. O Pedro, o último dos resistentes, encerrou nestas últimas semanas 20 anos de vida como assessor parlamentar do CDS.
Pedro Salgueiro (CDS), Paula Barata (PCP), António Colaço (PS) e Zeca Mendonça (PSD): quatro nomes que marcaram as últimas quatro décadas da vida parlamentar. Não os conhece? É natural que assim seja. Não são eles as "figuras públicas" dos partidos. O que, aliás, os levou a hesitarem: "uma reportagem sobre nós?".
À hora marcada, a histórica assessora do PCP, que já estava no parlamento - "nunca deixei de cá vir, de vez em quando venho cá" -, desceu e saiu pela porta lateral frente ao jardim da triangular Praça de São Bento. O Pedro Salgueiro chegaria pouco tempo depois. O António Colaço, que vinha de Abrantes, de carro, estava a minutos de chegar.
Entramos. Subimos. Percorremos os corredores ainda vazios de deputados e de jornalistas. Estávamos a dias de saber os resultados da repetição das eleições no círculo da Europa, da tomada de posse dos deputados e do governo. A sala do CDS, apesar de já não ter a placa, ainda era a sala do CDS. Noto no olhar do António Colaço um regresso a tempos passados - por instantes fica à conversa com Nuno Saraiva, atual assessor parlamentar do PS, que encontra na sala dos socialistas. A Paula, pragmática e ágil, de conversa solta, pede-lhe que se despache. "Este António...", exclama. O Pedro, aparentemente sereno, voz baixa, segue na frente. Abre-nos a porta da sala daquele que é o seu partido "há 33 anos". Já pouca coisa parece haver aqui. A mesa comprida, do lado esquerdo, há de ser, dali a minutos, o lugar da conversa. Nota-se um vazio. Na sala ao lado, onde dias mais tarde haveria de estar, para uma entrevista, com Telmo Correia, os armários já estão despejados. Pouco sobra da existência do CDS.
O António entra agitado, animado. Sentamo-nos. A Paula no lado esquerdo; o António, que para alguns é o "Colaço", senta-se no topo; o Pedro, que também é conhecido por "Salgueiro", fica no lado direito. A escolha foi aleatória, ocasional, mas não deixa de ser singular, significativa.
A regra, não parlamentar, dos "cavalheiros" - a expressão é usada porque o António Colaço, logo de início, a cola ao "não ausente" Zeca Mendonça - entrega a Paula Barata o uso da palavra.
"Não cheguei aqui de paraquedas. Sou militante do PCP desde 1975, já tinha uma experiência antes do 25 de Abril porque como tinha uma irmã mais velha na faculdade de letras ia muitas vezes lá ter com ela. Ainda andei a correr à frente da polícia de choque e dos cavalos, já tinha essa vertente daquilo que era o fascismo. Estive na UEC, na JCP e depois o meu partido colocou-me a questão de vir para aqui. Entrei como secretária do grupo parlamentar. E só ao fim de quatro anos de cá estar é que assumi as funções de assessoria de imprensa", resume a antiga assessora comunista que sublinha a ideia [corria o ano de 1981] de não ter "formação do ponto de vista de imprensa, acho que devo ser das únicas pessoas aqui que foi assessora de imprensa sem formação na área da comunicação. Foi aquilo a que se chama uma autodidata. Fui lendo, fui estudando, fui vendo, fui aprendendo e foi também o dia-a-dia, o trabalho com os jornalistas que me permitiu estar estes anos todos nestas funções".
No caso do António Colaço a rádio, a época das rádios "piratas", acabou por ser a porta de entrada: "Foi alguma notoriedade que tinha por causa das rádios livres que levaram a que fosse convidado. E vim com aquela sensação de passar ter passado para o outro lado da trincheira. Eu vinha da Rádio Ribatejo [em Santarém], e na altura, antes de ter decidido aceitar, até falei com algumas pessoas. Lembro o Fernando Alves, o Adelino Gomes..."aceito, não aceito?" Vim sempre com a ideia de que seria uma experiência breve, foram 21 anos".
Na altura, em março de 1989, sublinha o antigo assessor socialista, "vim substituir o António Manuel que foi para o Rato [sede do PS] com o Jorge Sampaio. Comecei com o António Guterres. Foram com ele três anos de colaboração. E eu acho que ajudei a mudar alguns procedimentos e a valorizar no seio dos jornalistas o que os políticos tinham de melhor e no meio dos políticos o que de melhor tinham os jornalistas".
A ligação ao CDS, a Paulo Portas e ao jornal O Independente, no caso do Pedro Salgueiro, criaram o caldo político para a entrada no Parlamento. "Vim eu em 2002, sendo que já era do CDS, já sou filiado há 33 anos. Ainda antes de ir para o Independente, onde estive 12 anos, e de ter conhecido o dr. Paulo Portas já era do CDS. Entrei na altura em que andava no Liceu Camões, até ganhámos lá a associação de estudantes", recorda.
E 2002, sublinha, foi "quando fomos para o governo do Durão Barroso. Foi nessa altura que me convidaram. Ainda passei pelo Caldas [sede do CDS], estive lá a fazer secretariado da direção do dr. Paulo Portas, e depois é que passei para aqui para assessor de imprensa. E eu também vinha", diz olhando para o António Colaço, "com aquela coisa do outro lado. Aqui chegavam-me a dizer às vezes: "eh pá, tás sempre a proteger os jornalistas...".
Ainda a frase não tinha terminado e já o antigo assessor do PS, emocionado, que já tinha escutado de Paula Barata a garantia de que "nunca menti a uma jornalista", interrompia o antigo assessor do CDS para dizer, prometeu, uma única frase: "É altura de evocar o nosso saudoso Zeca."
A promessa durou segundos. Faltava outra frase: "Talvez o sentido de eternidade seja isto: falamos de ti, quando estamos a falar de nós."
Paula Barata é do tempo em que "as sessões eram intermináveis", da altura em que "entrava aqui às nove da manhã e saía às nove do outro dia". Lidar com jornalistas "era mais complicado. Era tudo completamente diferente. Era tudo na base dos jornais". Foi até o tempo em que duvidaram que fosse comunista. "A senhora é do PCP? Não pode ser. Está tão bem vestida", disse-lhe um jornalista. Na memória, entre inúmeras histórias, há duas que prefere destacar: o dia em que Mário Soares confundiu um dirigente do PCP com um "membro das FP-25" e aquele dia em que o Parlamento "foi ocupado" por causa da visita de Ronald Reagan em maio de 1985.
No primeiro caso tudo aconteceu num plenário. Soares era primeiro-ministro e estava a discursar quando chegou a notícia de que "tinham sido presos alguns membros das FP-25". Alguém o informa do "sucedido" com o nome de um dos detidos: António Dias Lourenço. "E ele [Soares"] vira-se para o PCP e diz: "Vocês são os culpados das FP-25". Foi uma situação brutal. Houve o abandono completo do plenário da bancada do PCP. Claro que depois o dr. Mário Soares deu o braço a torcer quando percebeu que aquele António Dias Lourenço não era o António Dias Lourenço, dirigente do PCP no tempo da clandestinidade".
O segundo caso irritou sobremaneira a assessora comunista. "A ocupação que foi feita desta casa por membros dos serviços secretos das forças americanas foi completamente surreal. O que mais me chocou foi a ocupação completa e a autorização por parte do governo português e daquilo que eles fizeram. Tive duas americanas à porta do meu gabinete que não nos queriam deixar entrar nem sair. Era ir a janela e ver os snipers, no cimo dos prédios da Calçada da Estrela, com as espingardas viradas para aqui. Eu vi, são coisas que eu vi".
DestaquedestaqueOs jornalistas sabiam que o que lhes dizia era verdade. Às vezes chegavam a ir ao grupo parlamentar do PCP para perceber se aquilo que lhes diziam de outros partidos se confirmava ou não. [Paula Barata]
O antigo assessor dos centristas guarda o "momento daquela manifestação dos estivadores" e da "carga policial, os polícias a levaram pedradas e a só reagirem quando lhes foi dada a ordem". Na altura, recorda, "a segurança aconselhou-nos a não sair daqui. Fecharam tudo". E depois, acrescenta, houve "aquela manifestação dos polícias, quando tentaram entrar cá dentro. Foram momentos complicados".
E claro, sublinha, "o tempo em deixámos de falar a uma só voz, quando foi o Ribeiro e Castro. Aí houve um conflito entre o grupo parlamentar e a direção do partido".
DestaquedestaqueTínhamos, no tempo de Paulo Portas, uma máquina muito bem oleada. Aquilo parecia a laranja mecânica. Era rápida a tomada de decisão. Tentávamos sempre falar antes do PSD para marcar a agenda. [Pedro Salgueiro]
António Colaço recorda, a rir, quando "trouxe aqui o [Mário] Viegas. E ele deu cabo disto tudo... e ainda bem". E, com um largo sorriso, lembra o momento de "uma célebre reunião muita animada" em que o "Guterres não deixava falar um jovem". Perante a insistência do "jovem", diz, "escrevi um bilhetinho: "sr. engenheiro, não se esqueça do Evangelho. Não vim para ser servido, mas para servir. Deixe-o falar". E ele deixou. Curiosamente foi o líder parlamentar com quem as coisas correram menos bem. Estou a falar do nosso primeiro-ministro".
DestaquedestaqueHouve fases extremadas entre as várias sensibilidades do partido. E confesso: uma vez ou outra patrocinei algumas fugas de informação quando o que estava em causa era gritante. [António Colaço]
Paula Barata, que por instantes me pareceu alheada, da conversa, por estar a pesquisar no telemóvel, traz à memória - afinal estava à procura de um poema - um dos episódios marcantes no plenário. "Natália Correia, o primeiro debate sobre a IVG, aquele deputado do CDS: o Morgado. Ver a Natália Correia em pleno plenário a falar do "truca-truca" foi uma coisa que me marcou. Um poema lindíssimo, fiquei surpreendida".
Duas páginas de jornal são pouco, provavelmente nem uma edição inteira chegaria, para contar os 40 anos da Paula Barata, os 21 do António Colaço - que promete escrever um livro, e os 20 do Pedro Salgueiro.
Todos estão certos de terem sempre, mesmo nos momentos de maior tensão interna nos respetivos partidos, sabido "falar a verdade, o máximo que se podia fazer era omitir".
A Paula diz não "ter arrumado as botas. Continuo a vir cá, continuo a ter atividade partidária. E levo bons amigos de todos os partidos, quer dizer não são todos (risos)... não levo más memórias, se as tivesse não tinha estado aqui tanto tempo".
O António que abdicou, como diz, da atividade partidária continua "empenhado do ponto de vista cívico... retomei a minha a anterior condição".
O Pedro confessa, a frase sai-lhe sincopada, ter tido a "sensação de ter estado a jogar na liga dos campeões. É aqui que tudo se passa. É o palco principal. Foi estar presente, fazer parte da história. Fiz grandes amigos".
Esse "foi" é uma saída que custa?, pergunto. E logo, de imediato, me arrependo quando lhe vejo os olhos, a emoção que nem tenta disfarçar. "Sim, custa muito, custa-me bastante. Porque foi... porque foram muitos anos... muito trabalho... e custa sempre... custa..."
"Tens amigos, Pedro. Tens amigos...", diz a Paula Barata.