"Sempre que se fixa preços administrativamente as coisas não funcionam"

Ministro da Economia e do Mar diz que governo está a atento ao aumento do custo dos alimentos, mas salienta que o mercado e a autorregulação são os melhores instrumentos para fixar preços. António Costa Silva garante que hoje se assiste a uma "melhoria significativa" da economia nacional que, no entanto, "ainda não chegou ao bolso dos portugueses" devido ao impacto da inflação.

Começou por ser uma espécie de ministro sombra, à frente da Comissão Nacional de Acompanhamento do Programa de Recuperação e Resiliência, mas passou mesmo a estar ministro depois de uma vida académica e empresarial preenchida. Se o Presidente da República diz que esta é uma maioria cansada e requentada, nenhum dos adjetivos se aplica a António Costa Silva, o ministro da Economia e do Mar. Já remodelou os secretários de Estado que vinham do anterior ministro e, na altura desta polémica, garantiu que estava habituado a ter razão antes do tempo.

Começamos por um tema que agita a atualidade, mexe no bolso dos portugueses e é importante para as famílias: o controlo dos preços dos alimentos até onde pode ir?
Penso que é um grande tema na situação que estamos a viver, porque as pessoas podem abdicar de várias coisas quando os preços sobem, mas não podem abdicar dos alimentos que são absolutamente cruciais para o funcionamento das sociedades e das famílias. O que se tem verificado, e temos de ser rigorosos e sérios na análise, é que tivemos inflação em fevereiro na ordem dos 8,2% e a inflação dos produtos alimentares é quase três vezes superior a esse valor. Mas quando analisamos o período homólogo, entre janeiro de 2022 e janeiro de 2023, Portugal tem a 12.ª inflação mais baixa no conjunto da União Europeia (UE). Quando analisamos o cabaz que a ASAE usa para monitorizar os preços, e comparamos janeiro de 2022 com 2023, temos um aumento de cerca de 25% no seu todo, o que está em linha com o que se verifica no cabaz que a DECO utiliza. Mas quando analisamos os cerca de 20 produtos que o Eurostat utiliza para monitorizar a evolução na UE, cerca de dez produtos têm preços 10% acima daquilo que é a média da UE. É por isso que estamos a falar com os operadores económicos das várias áreas, quer da distribuição, quer os produtores primários, quer da indústria transformadora, para tentar compreender o que se está a passar. Chamava só à atenção de que pelo quarto mês consecutivo a inflação global está a diminuir em Portugal, mas simultaneamente temos o aumento dos preços dos produtos alimentares. Algumas das razões que são indicadas para a subida da inflação, como a questão da energia, estão também em mutação. Chamo também à atenção de que o preço do petróleo hoje é de 82 ou 83 dólares por barril, alinhado com o preço que existia antes da invasão da Ucrânia. A eletricidade e o gás atingiram preços muito expressivos durante o ano de 2022. Por exemplo, o preço do gás no dia 26 de agosto de 2022 atingiu máximos históricos de 339 euros por megawatt por hora, mas hoje está a cerca de 44 ou 45 euros por megawatt por hora.

O que está a dizer é que a inflação desceu, a energia desceu, o petróleo desceu, o gás desceu, mas o preço dos alimentos continua a subir. Essa é a análise?
Exatamente, essa é análise que estamos a fazer e isso também se liga a um facto muito expressivo que é o preço dos fertilizantes. Os fertilizantes têm um índice mundial de preços que era cerca de 169 na altura da invasão da Ucrânia e hoje está a cerca de 147, portanto, também houve uma diminuição aí. É isso que estamos a tentar entender, se aquilo que se verifica ao nível da inflação dos produtos alimentares tem explicações plausíveis como, por exemplo, o ciclo produtivo dos produtos. Pode ter a ver com a escassez da oferta, com o aumento da procura, ou se há outras razões ligadas às margens de lucro.

O governo admite chegar ao ponto de congelar os preços?
Digo sempre o que penso e todas as análises que fiz em estudos económicos me dizem que sempre que se fixa preços administrativamente as coisas não funcionam. Aconteceu assim com o presidente Nixon, nos Estados Unidos, na sua célebre intervenção relativamente ao preço dos combustíveis, aconteceu com Jimmy Carter e em Portugal também já tivemos situações do tipo. Penso que o mercado é o melhor instrumento que temos para fixar preços. O que estamos a tentar desenvolver, o governo tem agido em múltiplas dimensões, é tentar a autorregulação, o que significa que as empresas também façam uma oferta de produtos que sejam sensíveis a este clima de preços e que seja uma oferta positiva. Penso que a autorregulação é o fundamental, porque as outras intervenções que temos visto, mesmo na Europa, podem não funcionar.

O governo disse ainda que está disposto a estudar todas as medidas. O que é que isso quer dizer, além da autorregulação?
Há uma discussão, sobretudo no espaço europeu, sobre o caminho que os vários países têm seguido. Por exemplo, há países que reduziram o preço do IVA, como Espanha, e rapidamente a própria redução de preço foi comida pela inflação. Recorde-se que em Portugal, no Orçamento do Estado para 2023, temos uma redução expressiva do IVA para um conjunto de 16 produtos, desde logo conservas, produtos de base vegetal, moluscos. Mas o que acontece é que quando comparamos os preços de janeiro com fevereiro, houve um aumento de 1,4%. Portanto, a redução do próprio IVA - muito expressiva neste caso, de 23% para 6% -, também não contribuiu para baixar os preços, que, pelo contrário, aumentaram.

"O que estamos a tentar desenvolver (...) é tentar a autorregulação, o que significa que as empresas também façam uma oferta de produtos que sejam sensíveis a este clima de preços."

O IVA não deveria ter diminuído para mais produtos?
Pois, isso é uma discussão que está sempre em aberto, penso que essa medida por si só não vai solucionar as questões. É por isso que conto muito com uma das medidas que o governo já desenvolveu, que é convocar a PARCA, plataforma onde estão os organismos públicos envolvidos pelos ministérios da Economia, Agricultura e da Alimentação, em conjunto com representantes de todos os operadores, porque penso que temos um sistema mais participativo em termos da discussão e de vermos como é que a evolução dos preços se proporciona ao longo da cadeia.

O Ministério da Agricultura, e o governo naturalmente, anunciaram a criação de um observatório de preços, que afinal já existia há cinco meses. Por que razão não terá atuado quando era preciso?
Nunca deixamos de atuar e agir, é também por isso que temos este debate muito importante na sociedade que tem de nos conduzir a um caminho, porque é realmente um problema muito significativo para as pessoas.

Mas não acha estranho que haja um observatório de preços parado há cinco meses?
O observatório foi uma medida muito importante da senhora ministra da Agricultura, penso que está em implementação, e vai conjugar-se com os instrumentos que já hoje existem, tal como a PARCA. Já no passado, a PARCA desenvolveu bastante atividade, criou-se subcomissões, desenvolveu-se a agenda de boas práticas para todos os operadores e penso que é por aí que passa, por um diálogo com todos os operadores numa perspetiva de se resolver os problemas.

Este observatório vai identificar quem ganha e quem perde em matéria de preços? O que espera, na verdade, com este instrumento?
Espero que haja uma compreensão de toda a estrutura de preços e de como, no fundo, os mecanismos de preços são fixados ao longo de toda a cadeia para dissipar de uma vez por todas, se for o caso, esta suspeição que hoje em dia existe e que não me parece benéfica para ninguém, começando pelos próprios operadores económicos. É evidente que tivemos ações por parte da ASAE, que investigou em várias situações e comparou preços de aquisição com preços de venda ao público na área do retalho, e há produtos em que os preços são diferentes. Portanto, há margens de lucro brutas na ordem dos 40%, mas atenção que isto não indicia nenhum ilícito, temos é de ver as margens de lucro líquidas. É aí que penso que a contribuição dos vários operadores vai ser fundamental para mantermos uma transparência.

A ASAE também vai ter uma intervenção mais musculada?
A ASAE está sempre no terreno e continuará a estar, além de que também faz parte da PARCA. Recordo também que a autoridade da concorrência também participa na PARCA, a Direção-Geral do Consumidor também, o gabinete de planeamento e perspetiva do Ministério da Agricultura, idem.

O Presidente da República disse há poucos dias que "há especulação de preços". É isso que está em causa, na sua opinião?
Nesta altura, o senhor Presidente emitiu as suas opiniões e isso é muito importante porque exerce um magistério de influência, devemos sempre olhar com muita atenção as suas declarações. De facto, nos relatórios da ASAE, quando se olha para os números, pode haver essa indicação, mas ainda é cedo para afirmarmos com clareza. Confio nas empresas e nos operadores económicos, o Ministério da Economia trabalha ao lado das empresas, portanto, não queria lançar nenhuma suspeição. Temos de aguardar os números e as próprias empresas já disseram que vão contribuir para a reunião da PARCA, para se ver qual é o mecanismo de formação dos preços. O pior que pode acontecer é vivermos num país com uma suspeição generalizada contínua, temos de acabar com isso. É por isso que digo sempre uma frase que acho extraordinária, da autoria de um pensador israelita, que diz que "a espécie humana tende a pensar por narrativas e não por factos, por números e por equações", mas temos de partir dos factos e dos números para depois podermos tirar conclusões. Penso que isso é fundamental.

"Temos de aguardar os números e as próprias empresas já disseram que vão contribuir (...) para se ver qual é o mecanismo de formação dos preços. O pior que pode acontecer é vivermos com uma suspeição generalizada contínua."

Nesta discussão toda de preços, pode ficar a sensação de que supermercados, agricultores e indústria alimentar empurram as culpas uns para os outros. Por exemplo, a APED, que representa os retalhistas, diz que aumentou os preços em 19%, disse também que o índice de preços na produção agrícola subiu 35% e que o índice de preços na indústria alimentar aumentou 31%. São também estes os indicadores que o governo tem?
Não queria comentar os números porque estamos a preparar uma reunião da PARCA e estamos a recolher toda a informação, exatamente para ver em todo o segmento da indústria alimentar e da cadeia de abastecimento como se formam os preços. Queremos conseguir essa transparência para depois falar a verdade às pessoas.

Ainda não consegue perceber onde está o ónus?
Consigo perceber algumas coisas, mas não queria partilhar, acho que isso tem de ser discutido com os operadores e depois disso chegarmos a uma solução conjunta.

A APED, um dos operadores, já disse algumas palavras um pouco duras, como "o ministro da Economia não está a contar a história toda, porque o preço de um bem tem uma composição e, ao referir-se ao nosso setor de forma dúbia e generalizada, levanta suspeição sobre todo o setor". Que resposta dá o ministro a esta posição?

​​​É a opinião da APED, não é a minha opinião. Procuro sempre ser justo e equilibrado em relação a todas estas questões, mas temos de perceber que nestas alturas o Estado corporiza o interesse público e esse é clarificar o mais depressa possível estes mecanismos de preços. De forma alguma emito juízos de valor antes de se verificarem os factos e foi essa a minha posição. Não lancei nada sobre ninguém, agora acho que é responsabilidade dos operadores e de toda a cadeia de abastecimento avançarem com os números, partilharem informação e chegarmos a uma conclusão.

O senhor ministro diz que não pode ainda responder a algumas coisas, porque está à espera do diálogo e de mais dados para poder tomar decisões. Entretanto, a guerra começou há um ano e todos os consumidores estão a pagar bastante mais pelos alimentos. Essas avaliações de que fala agora já não deviam ter sido feitas, sobretudo logo no princípio quando a inflação disparou?
A inflação é a variável mais difícil que temos na economia, é a mais complexa e a que tem de ser tratada com grande parcimónia, no sentido de perceber como funciona. Repare, temos hoje um paradoxo no país, porque tivemos um crescimento do PIB no ano passado de 6,7%, o maior desde 1987, tivemos um crescimento da produtividade de 4,6%, o maior desde 1990, temos todas as indicações no início deste ano de que vamos ter um ano de desempenho económico também extremamente positivo, a taxa de ocupação dos hotéis no Algarve é a maior de sempre em janeiro. Temos as exportações que pelo terceiro mês consecutivo subiram cerca de 14,5% em janeiro e são maiores do que as importações. Temos um país cada vez mais exportador, até porque em 2022 atingimos praticamente os 50% do PIB em exportações. Temos uma economia cada vez mais exportadora, mais competitiva, temos setores como o turismo que superaram todas as expectativas. Mas a economia portuguesa não é só turismo, apesar dos recordes batidos. O setor da metalomecânica, pela primeira vez em 2022 atingiu receitas de 23 mil milhões de euros. A nossa indústria de componentes é um caso singular: enquanto várias outras indústrias de componentes na Europa estão em declínio, nós estamos a crescer 3% ou 4% ao ano e atingimos 12 mil milhões de euros de receitas em 2022. E no meio disto tudo, por causa da inflação e sobretudo pela inflação nos produtos alimentares, o país não tem a perceção destas mudanças que estão a ocorrer. Por isso, acho que estas indicações da inflação são indicações consistentes, inclusive a inflação subjacente quando removemos o componente volátil. A inflação subjacente diminuiu pela primeira vez em janeiro, aumentou ligeiramente em fevereiro, mas penso que estes indicadores são claros. É por isso que estamos a trabalhar em relação à inflação, sobretudo dos produtos alimentares. Se conseguirmos tomar medidas que possam propiciar um cabaz alimentar aos portugueses, sobretudo às franjas mais desfavorecidas da população, que seja um cabaz compreensível e fundamental para as pessoas, aí estaremos a fazer um caminho para também estabilizarmos esta questão da inflação.

Aí não disse a frase politicamente conhecida, e entendo que seja por inteligência e argúcia política, mas quase disse e queria confirmá-la consigo. Podemos dizer hoje aquilo que disse à altura Luís Montenegro, quando era líder parlamentar do PSD: Portugal está melhor, os portugueses é que ainda não sentem isso. É assim?
De certa forma, a economia portuguesa está a recuperar e, com os indicadores que mencionei, isso aconteceu.

Mas a pergunta é se Portugal está melhor e os portugueses é que não estão a sentir isso?
Sou uma pessoa independente, estou com muito gosto a participar neste governo, sobretudo porque tenho um grande reconhecimento pela liderança do senhor primeiro-ministro - penso que ele fez um trabalho notável, sobretudo durante a pandemia. Digo sempre o que penso, independentemente das consequências, e o que estou a dizer não é muito afastado disso que mencionou. Realmente, temos uma melhoria significativa da economia, mas que ainda não chegou ao bolso dos portugueses pelo impacto da inflação. É a isso que temos de dar toda a atenção neste próximo ciclo.

"Realmente, temos uma melhoria significativa da economia, mas que ainda não chegou ao bolso dos portugueses pelo impacto da inflação. É a isso que temos de dar toda a atenção neste próximo ciclo."

Os portugueses têm dificuldades a lidar com os preços dos alimentos, mas também com os preços da habitação. A oposição criticou o excesso de Estado nas medidas apresentadas pelo governo e o senhor ministro da Economia e do Mar já veio defender publicamente até um equilíbrio entre habitação e expectativas do alojamento local. Há realmente um excesso de Estado e um desequilíbrio nesse caso?
Não direi um excesso de Estado, porque realmente a habitação é outro grande problema que temos no país. Temos este pacote que está em discussão [parte das medidas foram aprovadas ontem em Conselho de Ministros, ver página 10] e o que diria é que no fim da discussão haverá um equilíbrio entre as necessidades de resolver o problema da habitação e simultaneamente ter em atenção os investimentos que foram feitos no alojamento local e que são muito importantes. Trabalhei toda a minha vida nas empresas e no setor privado, mas a coisa mais importante para os investidores é haver estabilidade e continuidade no quadro fiscal e das políticas financeiras. Tudo o que sejam oscilações pode ter impacto importante. No caso do alojamento local, acho que temos de calibrar, até porque não podemos esquecer o efeito que teve nas cidades, no turismo e no desenvolvimento da oferta, mas sobretudo fora das grandes cidades na própria dinamização da economia local e de múltiplos setores. Penso que tudo isso tem de ser ponderado, calibrado e chegar-se a uma posição equilibrada. Acho que é isso que vai acontecer depois do debate público, do debate no Parlamento e no entendimento final que venha a ser feito.

"No alojamento local, acho que temos de calibrar [as medidas previstas pelo governo], até porque não podemos esquecer o efeito que teve nas cidades, no turismo e no desenvolvimento da oferta."

O PRR é outra pasta que tem em mãos, tendo sido responsável pelo documento orientador para o PRR em Portugal. Hoje os empresários continuam a queixar-se de atrasos, de morosidade e de baixa execução. O Presidente da República já confessou preocupação. O senhor também está preocupado?
Estou preocupado com algumas áreas que penso que temos de acelerar e responder, sobretudo naquilo que me diz respeito que é na resposta às empresas e às candidaturas das empresas. Mas queria só referir que o PRR vai terminar dia 31 de dezembro de 2026 e temos todo o planeamento da execução, que implicava que executássemos 8% acumulado até ao fim de 2022, o que implicava o pagamento de 1400 milhões de euros. Isso foi atingido. O que temos em 2023, e este ano é um ano chave e decisivo, é chegar ao fim do ano com um pagamento acumulado de 5,5 mil milhões de euros, o que significa que durante este ano temos de pagar 4 mil milhões de euros. O que se passa relativamente aos números mais recentes é que já pagámos cerca de 1,6 mil milhões de euros, portanto, estamos a aproximar-nos dos 10%. Quando vemos tudo o que são investimentos que estão aprovados, estão na ordem dos 12 mil milhões de euros e em termos de anúncios já passámos os 13 mil milhões de euros. Portanto, esta fase inicial que era muito importante para lançar os anúncios e ter as coisas no terreno está a funcionar. O que não está a funcionar nesta fase são algumas áreas decisivas, mas que são novas como, por exemplo, a questão da descarbonização. Temos um grande pacote de 715 milhões de euros para a descarbonização da economia e cerca de dez milhões de euros eram para os roteiros de descarbonização. Recebemos dezenas e dezenas de candidaturas, já foram selecionadas aquelas que vamos apoiar e esses dez milhões de euros já estão decididos. Mas os restantes 705 milhões de euros foram divididos por dois avisos: o primeiro era muito complexo, recebemos 268 candidaturas que deviam ter sido analisadas até ao fim do ano passado, mas os serviços não conseguiram analisar e isto porque é uma coisa nova. Começa logo pela questão de como vamos avaliar o processo de descarbonização de uma empresa, portanto, a ideia era partir de um estudo de base das empresas, mas isso ia demorar muito tempo. O que fizemos foi inverter completamente a situação, o segundo aviso já foi simplificado e terminou no dia 17 de fevereiro. Recebemos mais de 1600 candidaturas e deste segundo aviso já mais de 1100 estão analisadas, portanto, espero que nos próximos dois meses tenhamos as respostas no terreno e a sinalização às empresas. Nunca o país fez um programa deste tipo para a descarbonização, envolve as empresas, envolve os indicadores, envolve uma simplificação dos processos, portanto, são coisas novas que estamos a fazer. Penso que os serviços públicos estão a aprender, o próprio IAPMEI está nesta altura num processo de reestruturação e dinamização para dar essa resposta. Ainda hoje estive na Batalha com muitos dos empresários da zona centro, exatamente para discutir e identificar essas questões, e também vou estar sempre no terreno porque o Ministério da Economia vai lançar jornadas de economia com os empresários, nos vários setores do país, para sentar o ministério com os organismos e o sistema empresarial e identificar quais são os obstáculos.

Quando vai lançar essas jornadas?
No final de março ou início de abril. E vamos fazer isto consecutivamente, para cobrir todo o país e identificar os problemas.

O que leva na pasta é o PRR?
Não tenho o PRR todo, tenho outras coisas como a capitalização das empresas que para mim é uma das áreas mais importantes que está a ser executada pelo Banco de Fomento.

O Banco de Fomento tem tido também atrasos. Parece-lhe que é desta, com uma nova presidência, que vai cumprir a sua missão?
Tenho muita crença, quer na dra. Celeste Hagatong, quer na dra. Ana Carvalho pela experiência que têm. Trabalharam na banca, trabalharam em seguradoras e conhecem muito bem o tecido empresarial em Portugal. Elas começaram há muito pouco tempo, em meados de novembro do ano passado. O Banco de Fomento tem um fundo de capitalização e resiliência de 1300 milhões de euros e chamo à atenção de que este é um dos programas mais importantes que temos. Uma das razões pelas quais o país não cresce mais e que as empresas têm problemas, é porque o índice de capital por trabalhador nas empresas portuguesas é dos mais baixos da UE e precisamos de mudar isto. E destes 1300 milhões de euros, com a ação da administração nestes meses, já cerca de 533 milhões de euros estão contratados e 333 milhões estão em pagamento, o que já é uma percentagem significativa deste fundo de capitalização e resiliência. Evidentemente, às vezes há coisas que demoram mais e temos de ser sempre humildes para corrigir aquilo que não está a funcionar e implementarmos o que está a funcionar bem. Mas, globalmente e a meu ver, o Banco de Fomento vai ser o grande banco promocional do Estado português e queria ver se conseguíamos fazer esta transformação de paradigma. Sou das pessoas que defende que temos de ter uma banca comercial saudável para termos uma economia saudável, mas o que acontece é que banca comercial não financia projetos a médio, longo prazo, como projetos de inovação ou transformação tecnológica. O Banco de Fomento também tem feito o seu caminho ao nível das instituições europeias. Quando cheguei, em junho do ano passado, lembro-me numa discussão com o comissário Paolo Gentiloni que ele tinha algumas dúvidas sobre como o Banco de Fomento haveria de desenvolver o seu caminho, que havia várias coisas em atraso. Expliquei-lhe o plano de ação que tínhamos montado nessa altura para cumprir tudo até ao fim do ano, o que eram objetivos essenciais do PRR e que estavam também relacionados com o desembolso que a Comissão Europeia tinha de fazer para esse segmento do PRR, e tudo isso foi executado. O Banco de Fomento pode ser um parceiro a tempo inteiro do InvestEU e isso significa depois ter acesso ao mercado de garantias e de equities do InvestEU, o que pode conferir ao Banco de Fomento um protagonismo financeiro em todas estas áreas que é significativo e diretamente relacionado com todo o desenvolvimento do sistema empresarial. Se conseguirmos fazer isso, vamos mudar o paradigma financeiro e marcar um caminho importante para o futuro.

O novo CEO da Siemens sugeriu que se prolongasse a aplicação do PRR para lá de 2026. Há alguma ideia nesse sentido?

Sim, no sentido em que há uma discussão sobre a reprogramação do PRR, mas não direi que a conclusão será essa. O custo das matérias-primas aumentou, há projetos que se atrasaram e é muito importante que quando o mundo muda, a Comissão Europeia também mudar um bocado e às vezes isso não é tão assumido como isso.

Mas podemos estar a falar de dois anos, tal como o CEO da Siemens chegou a comentar?
Não queria comentar o espaço temporal, acho que é um assunto muito difícil, porque a nível do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia quando se começa a discutir reprogramação eles começam a ficar inquietos e nervosos. Temos de discutir isso, mas ao mesmo tempo que cumprimos as metas todas. E queria dizer que as 38 metas do ano passado foram todas cumpridas e é por isso que o país recebeu já dois desembolsos do PRR. Portanto, também estamos relativamente confortáveis a esse nível, embora existam atrasos numa ou noutra área.

"A nível do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia quando se começa a discutir reprogramação [dos prazos do PRR] eles começam a ficar inquietos e nervosos."

O senhor disse que "não é uma boa solução a Iberia para a privatização da TAP". Porquê?
Não queria fazer muitos comentários sobre a TAP, até porque é um dos assuntos que o Ministério da Economia não gere. No ministério estamos é preocupados com a conectividade aérea do país. Quando se olha para os estudos sobre a economia portuguesa, a conectividade aérea é uma das variáveis que mais tem impacto sobre todos os setores. Dito isto, a TAP é muito importante, é uma empresa importante, mas mantenho a opinião. Queria era que o processo fosse competitivo até ao fim, já participei em muitos e o que acontece é que se só existir uma empresa, depois a empresa exige tudo e mais alguma coisa ao Estado. E nós podemos ter dois ou três competidores, ter um processo competitivo e depois a escolha final é consoante um conjunto de parâmetros que o governo tem de identificar. E a preservação do hub em Lisboa parece-me extremamente importante. A conectividade do país parece-me extremamente importante. Não se esgota na TAP, mas a TAP é um pilar dessa conectividade. Mas não podemos esquecer as outras regiões do país e a necessidade de multiplicar as ligações a todas elas, porque isso tem um impacto no desempenho económico do país.

Quando isto se discute no Conselho de Ministros, os ministros das Finanças e o ministro da tutela da TAP ouvem a sua opinião?
Não queria fazer comentários sobre isso. O Conselho de Ministros é reservado, o que posso dizer é que se discute e os argumentos vão para cima da mesa, depois há uma decisão final tomada. Penso que a discussão é sempre benéfica e que dela saia luz.

Vamos até Sines. Além do porto, a cidade concentra uma série de novos projetos e até um data center. Quais são os seus planos para Sines até ao fim da legislatura?
O governo tem planos que são muito significativos: temos hoje um conjunto de 22 mil milhões de euros de investimentos em Sines. Cerca de dois mil milhões na logística, que é muito significativo para ampliar o cais. Sines vai quadruplicar a sua capacidade de manusear contentores para estar próximo da que têm portos europeus como Roterdão e isso é extremamente significativo. Depois, temos 14 mil milhões de investimentos na energia e são sobretudo relacionados com hidrogénio. A EDP vai reconverter a central termoelétrica para ser um centro de produção de hidrogénio verde. Temos ainda o projeto da Galp Green H2 Atlantic, também para produção de hidrogénio. A Galp, na refinaria que tem, já apresentou um projeto de reconversão para produzir biocombustíveis. Queremos transformar Sines numa espécie de hub de greenshipping, para produzir hidrogénio verde, mas também metanol e amónia verde, a nova geração de combustíveis que vai mover os transportes marítimos. Mas depois há outros projetos em Sines, como o vale do hidrogénio com uma empresa portuguesa. A grande vantagem de Sines é que congrega o epítome da transformação portuguesa, porque temos a geografia e a centralidade do Atlântico, temos as energias renováveis e a produção de hidrogénio também é com recurso a renováveis. Temos outras duas grandes áreas em que o país se pode posicionar: a eletrólise da água através das energias renováveis e a pirólise e gasificação a partir da biomassa. Mas Sines também tem um investimento significativo de seis mil milhões de euros na parte dos cabos submarinos: Portugal vai ser um dos países do mundo pioneiro na ligação a todos os continentes. Temos hoje o cabo que liga Sines a Fortaleza, portanto, todo o tráfego de informação da América do Sul vai passar por aí, temos o cabo de 11700 quilómetros que liga Sines à Cidade do Cabo e vai ter 11 ramificações em África. O que se passa é que estamos a tentar sediar em Sines os centros de tratamento de dados - somos uma civilização que acumula dados como nunca antes na história. Podemos aproveitar esses dados com estes centros de dados, aplicando a inteligência artificial e as máquinas que aprendem. Já temos em Sines o maior projeto da Europa que é o Centro de Dever de Processamento e Tratamento de Dados e já temos várias companhias interessadas, incluindo a Google. Vamos começar com um piloto pequeno de 15 megawatts, mas é um projeto em desenvolvimento. E se conseguirmos sediar isto aqui, vamos conseguir atrair cada vez mais os nossos engenheiros, reter talento no país e transformar Sines num grande centro de tratamento de dados. Mas a economia portuguesa não é só Sines, temos o quadrilátero industrial em que estamos a trabalhar e vou, em breve, a Barcelos, Braga, Guimarães e Famalicão - temos aí 67 mil empresas, quase 4% do PIB e grande parte da capacidade de produção industrial do país. E o grande desafio é começarmos a fabricar em Portugal os equipamentos, quer para a indústria de saúde que se está a desenvolver, quer para eólica offshore.

Ao que parece há vários investidores internacionais interessados em apostar em Portugal nas eólicas offshore. O que se pode esperar desse impulso a esse tipo de investimentos?
Espero o melhor, até porque os nossos recursos são muito bons. Vemos que os investidores internacionais estão muito interessados porque olharam para o atlas do recurso eólico e também do recurso das ondas. No recurso eólico, a velocidade de propagação do vento, a velocidade horizontal, é muito significativa em todas as áreas já identificas e varia entre seis e 8,5 metros por segundo. A potência de incidência do vento é também muito significativa, varia entre 300 watts por metro quadrado até mais de 650 watts, e Viana do Castelo é a área mais atrativa. Há previsibilidade de investimento e também estamos num processo de transformação da matriz energética, não só em Portugal e na Europa, mas em todo o mundo. As renováveis vão desempenhar um papel cada vez mais relevante e a eólica offshore vai nascer se conseguirmos desenvolver toda esta fileira são investimentos muito significativos, bem como um impulso grande para a economia do país e para a atração e retenção de investimento.

Relativamente às ligações energéticas ibéricas, fizeram algum caminho mas falta passar a tradicional barreira dos Pirenéus. Considera que a Península Ibérica perdeu o braço de ferro com Macron?
Sempre que vou aos conselhos de competitividade da UE em representação do país, uma das coisas em que insisto é que na Península Ibérica temos mais de 50% da receção do gás natural liquefeito e isso deveria ser ligado ao resto da UE. Foi sempre recusado, recorrendo a que a Rússia era um parceiro fiável, mas sempre levava comigo um mapa que mostrava a dependência que a Europa tinha da Rússia e dizia que um dia esta dependência enorme dava para o torto. Hoje, temos de aprender com o erro e ligar a Península Ibérica ao resto da Europa. Essas ligações vão existir do ponto de vista das redes elétricas, através do Golfo da Biscaia para exportarmos energias renováveis, mas o meu sonho também é sermos um dos grandes países e potências em termos de produção e exportação de energias renováveis. Estamos do lado certo da história, pelo menos com a geografia, o mar e as energias renováveis, temos um triângulo virtuoso que pode funcionar, mas depois também há outra ligação para exportarmos hidrogénio, sobretudo hidrogénio verde, através da ligação de Celorico da Beira a Zamora e depois de Barcelona para Marselha. Vamos ver como vai acontecer.

"Custa muito [ter razão antes do tempo], é como se estivesse a ver todo um complexo humano ir contra uma parede, tentar chamar à atenção e ninguém ligar."

Acaba dizer, mais uma vez sem ter dito, que teve razão antes do tempo em relação à dependência da Rússia. Às vezes custa ter razão antes do tempo?

Custa muito, é como se estivesse a ver todo um complexo humano ir contra uma parede, tentar chamar à atenção e ninguém ligar. Depois, bate-se com a cabeça na parede que foi o que aconteceu com a invasão bárbara que a Rússia fez à Ucrânia. Tenho a certeza absoluta de que [não aconteceria] se a Rússia não tivesse este poderio imenso que tem, até porque repare que durante a guerra fria a Rússia nunca interrompeu o abastecimento de gás e petróleo à Europa, mas começou a fazê-lo em 2007, em 2009 e com repetidos exemplos. Portanto, só não via mesmo quem não queria ver.

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